Made in Portugal
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Domingo 16/7/2006
Depois de dois anos de ausência voluntária, surjo novamente a manifestar-me nas páginas do Local. A notícia do desaparecimento do Jardim Cinema despoletou o acto. O acontecimento ilustra e confirma um tema fundamental para a cidade, com especial relevo estratégico para o futuro da Baixa: o do comércio tradicional com alto valor patrimonial e detentor de forte identidade emocional e funcional, confrontado com mudanças de função determinadas pela dinâmica da globalização.
Durante a minha estadia na Câmara Municipal de Lisboa (CML), tive a oportunidade de pôr em prática e testar os valores relativos a esta temática e já anteriormente defendidos por mim nas páginas deste jornal. A oportunidade surgiu quando um estabelecimento com importantes características patrimoniais e completamente preservado na sua autenticidade ao longo de três gerações, a Alfaiataria Rosado Pires, na Rua Augusta, foi comprado por uma poderosa multinacional italiana de lingerie feminina. O desafio que se punha era: como persuadir os promotores a abdicarem da sua imagem estabelecida e a reconhecer o alto prestígio e a mais-valia emanante de uma imagem cultural completamente preservada?
Para Lisboa e para a Baixa isto representava, na dialéctica entre identidade local e globalização, uma síntese vitoriosa entre mudança e preservação de valores fundamentais, que constituem uma mais-valia insubstituível para o turismo cultural. Este sucesso foi determinado por um diálogo permanente com membros da Unidade de Projecto da Baixa-Chiado e por um diálogo construtivo com o Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) e, claro, com as entidades promotoras. Mas, acima de tudo, o que este processo ilustra é o de um método oposto ao do governo por decreto. Inspirado por este caso, quando a segunda oportunidade surgiu, agora em plena Rua Garrett, na antiga Perfumaria Pompadour, com projecto de Raul Lino mas que não tinha sido classificada pelo Ippar tal como a Gardénia, também do mesmo arquitecto, o único desfecho só podia ser uma vez mais o sucesso.
Foi aí que, agora em profunda colaboração com o pelouro da Cultura e com o Núcleo de Estudos de Património, importante departamento da CML incompreensivelmente "neutralizado" pelo actual executivo, se começou a desenvolver um projecto sistemático de classificação de lojas tradicionais, que iria garantir a sua preservação perante os desafios descritos neste texto e o compasso de espera que se vive na Baixa. Inexplicavelmente, o Ippar recusou este Projecto de Classificação Municipal das Lojas Tradicionais da Baixa que constam no inventário municipal do património.
Do grupo de importantes interiores propostos para classificação fazia parte a Ourivesaria Aliança, estabelecimento com um valor patrimonial, sem exagero, comparável ao do Café Majestic, no Porto, agora reconhecido por todos como importante "âncora" da cidade para o turismo cultural e fonte de orgulho da identidade local. Ora, a Ourivesaria Aliança, na Rua Garrett, funciona irregularmente e bate-se com problemas de preservação determinados pelo estado de conservação do edifício, que entretanto mudou de proprietário. Daí - e esta é a razão fundamental deste texto - eu fazer aqui e em público, como morador na Baixa, como cidadão português e como historiador de arquitectura, um apelo directo ao Ippar para classificar a Ourivesaria Aliança na sua totalidade (fachada e interiores) como Imóvel de Interesse Público! Existe já, pelo anterior descrito, um dossier suficientemente completo para abrir um processo de classificação.
Isto poderá reactivar novamente o processo num fenómeno de "bola de neve" que, na sua abrangência, iria contrariar o torpor medíocre e o ambiente de "terra de ninguém" que impera neste interlúdio de expectativa sobre as conclusões estratégicas do Comissariado da Baixa-Chiado. O comissariado já anunciou as suas grandes linhas estratégicas, que criaram expectativas: projecto de desígnio nacional, representado por uma entidade única de gestão e, acima de tudo, garantia de transcendência dos ciclos políticos e das flutuações da "partidocracia". Também já anunciou, em linhas gerais, a sua visão estratégica para a área dos desenvolvimentos urbanísticos. A história ensina-nos que sem uma visão global, sem grandes legisladores, não existem grandes sucessos. Mas enquanto o "macro" espera pode-se intervir no "micro", mais que não seja para ir chamando a atenção para a importância que esta dimensão de vivência quotidiana tem para uma zona que quer reencontrar o seu equilíbrio entre área residencial, city e centro histórico.
Não há campanhas do ICEP que compensem a impressão deixada no turista pela Rua Augusta, atravessando em busca do glorioso arco "barreiras" sucessivas de check-points de inquéritos, vendedores e pedintes. Ou o terreur exercido pelos músicos ambulantes em tudo quanto é esplanada. Agora que sublimámos tantas frustrações, que depositámos tantas esperanças nas aventuras dos nossos "gladiadores" na Germânia, é importante lembrarmo-nos que é em cada dia, no aqui e agora, que o nosso futuro, o futuro do nosso espaço vital, da nossa identidade, é determinado. Historiador de Arquitectura
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