Baixa - Chiado ... E Agora ?
A OPINIÃO DE António Sérgio Rosa De Carvalho
Domingo 3/12/2006 in Público
Mais um texto sobre a Baixa e a sua Revitalização. A ilustre equipe de comissários fez bem em denominar o documento apresentado como proposta, pois trata-se de uma visão global, um conjunto de macro-propostas que precisa de descer a plataformas estratégicas de actuação, ao passo-a-passo de acções coordenadas visíveis e capazes de empolgar e entusiasmar.
Como morador da Rua dos Fanqueiros, "entalado em sanduíche" entre o trânsito ascendente da Rua da Madalena e descendente da Rua dos Fanqueiros, a proposta de diminuir em 70 por cento o trânsito de passagem - assim como a de transformar o Convento Corpus Christi num hotel de charme, além de criar um conceito de comércio qualificado por uma garantia de qualidade ou "marca Baixa" - soa-me quase paradisíaca. A questão está em como e a que ritmo ela pode ser alcançada.
Portanto aqui vão algumas reflexões :
O Edificado - Até agora, a garantia da formulação de um conjunto de regras, de uma "gramática de valores e princípios" para a dinamização do conjunto urbano e unidade patrimonial que constitui a Baixa residia na candidatura a Património Mundial. Todos sabemos como a realização da visão de Pombal evoluiu "organicamente", ao longo do século que durou a sua construção, a partir dos arquétipos de Eugénio dos Santos e Mardel para o aumento de volumetrias que caracterizam o "pombalino" do séc. XIX, com os seus andares "extras" de varandas corridas e águas furtadas. Também sabemos como novos edifícios foram introduzidos posteriormente (banco Totta, agência Havas , etc...) . Tudo isto, tal como as notáveis intervenções em estabelecimentos comerciais do séc. XIX "afrancesado" - que só vieram enriquecer a Baixa culturalmente, mantendo a sua unidade cultural como conceito urbano. É (ou devo dizer era ?) esta unidade civilizacional que se pretende candidatar a Património Mundial.
É por isso que acho preocupante a ligeireza com que se fala em demolições de edifícios do séc. XIX menos "puros" e da possibilidade da sua substituição por arquitectura contemporânea de "qualidade", assim como a recusa radical do neo-pombalino.
Também se fala na possibilidade de compartimentação (três fogos por andar) dos interiores pombalinos. Ora todos nós sabemos que há uma grande variedade na autenticidade dos interiores pombalinos ("betonização", alteração estrutural da "gaiola", alteração espacial das divisões originais , etc), mas também muitos interiores de altíssima qualidade e autenticidade sobreviveram. Foi para separar o "trigo do joio" que foram desenvolvidos sucessivos levantamentos pela Unidade de Projecto e depois pela Sociedade de Reabilitação Urbana.
O Horizonte Sociológico - Ao definir o perfil da "clientela" que vai habitar a Baixa dinamizada, cosmopolita e qualificada, ficamos a saber que ela é constituída pela "classe média" e por "jovens". Os "jovens" são definidos com uma sofisticação semântica que os divide em sub-grupos, que nos seu vanguardismo é comparável a um menu pós-moderno de um restaurante de "nouvelle cuisine". Agora sem ironias, onde estão as elites? As elites (grupo que consegue associar o poder de compra a um horizonte civilizacional e à consciência cultural, e que é preciso convencer a abandonar os condomínios), curiosamente, serão a clientela natural dos interiores originais, onde as intervenções necessárias irão primar não apenas pelo respeito, mas pela exultação da autenticidade e do prestígio vintage da "patine".
A Baixa Pombalina terá, no futuro, que incluir todos os grupos sociais, para ser uma verdadeira cidade (city). Foi assim que ela foi orginalmente concebida. A Baixa não é um "bairrozito". Apesar de decadente é uma city curopeia e, para ser verdadeiramente dinamizada e vivida, precisa de todos.
Portanto, os interiores devem ser escolhidos e intervencionados por vocação natural sociológica, num horizonte que inclua todas as representações da sociedade. As características de autenticidade em relação aos valores históricos pombalinos é que devem determinar o grau de intervenção e alteração nos interiores, e consequentemente o tipo e modelo sociológico a ocupá-los, e não vice-versa, com o risco de deitarmos fora a galinha dos ovos de ouro e cometermos um crime irreversível de lesa-património .
O comércio tradicional - Todos nós compreendemos o que se pretende com as duas "sinergias" axiais que se pretende criar na perpendicular das três (ou mais) já existentes. Refiro-me ás duas axialidades transversais constituídas pela Rua da Vitória e Santa Justa. Tudo isto me parece lógico como passo estratégico em direcção ao tão sonhado centro comercial ao ar livre. Só que as "ilhas" de qualidade que restam na Baixa, entregue a um torpor híbrido e a um desespero típico de uma verdadeira crise de identidade, são representadas pelo comércio tradicional instalado em interiores insubstituíveis de alto valor patrimonial e apreciado pelo turismo cultural - e pela internacionalização das marcas de "franchising".
Fora disso, temos a dinâmica permanente do fenómeno "Chíndia", com um comércio específico que, devido às suas características, exige planeamento estratégico e definição de regras de urbanismo comercial. Para se conseguir a tão sonhada marca de prestigio "Baixa" é preciso planeamento. Para já é preciso incluir uma "aristocracia" dentro dela, e aqui refiro-me ao grupo de lojas com interiores de alto valor patrimonial (ourivesarias, livrarias, etc) a que eu daria o estatuto, com placa de bronze e tudo, de lojas de tradição e excelência. A metáfora que se enquadra aqui é a das regiões demarcadas de vinhos. Há lugar para todos. Cada um no seu lugar e na sua especialidade.
Uma Proposta - Se fosse necessário ilustrar a essência urbana do conceito original pombalino nada poderia servir melhor esse objectivo do que o Largo de S. Paulo. Ele constitui, nas suas características quase inalteradas, o arquétipo da síntese Santos-Mardel. Além disso nas tipologias de portas e guilhotinas ainda presentes, dá-nos um "cheiro Georgian" do carácter original. A sua localização, junto aos Halles lisboetas que constitui o Mercado da Ribeira, dá-lhe um carácter único de Convent Garden não aproveitado e não reconhecido no seu grande potencial. Não temos aqui o local ideal para testar e aplicar todas as vertentes definidas pela proposta de revitalização da Baixa Pombalina ?
Aqui e agora no Largo de S. Paulo !
Historiador de Arquitectura
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