sábado, 23 de abril de 2016

O lado lunar de António Costa


O lado lunar de António Costa
Já passou o tempo em que António Costa abria o peito às balas em cada gesto que ousasse. Hoje, ninguém arrisca profecias trágicas depois de tantas vezes se falhar nas anteriores
O método de criar uma expectativa alarmista para depois recuar para posições mais moderadas está a funcionar.

Manuel Carvalho / 24-4-2016 / PÚBLICO

O Programa de Estabilidade e o Programa Nacional de Reformas foram esta semana divulgados sem que se notasse qualquer sobressalto pelo irrealismo dos números ou pelo medo da punição europeia. Se há uma arte que se deve reconhecer a António Costa, é a de saber contar histórias. O cenário macroeconómico pode ser delirante, a crença de que a redução da despesa através do corte no número dos funcionários públicos ou do aperto das despesas correntes pode ser um mero acto de fé, mas nada disso parece incomodar os cidadãos. O pessimismo e a cautela que se manifestaram na primeira versão do Orçamento do Estado de 2016 fazem parte do passado. Costa conseguiu o supremo mérito da arte política: fazer com que as pessoas acreditem nele com o mesmo empenho com que as crianças acreditam nas fadas ou no Pai Natal.
Lendo a imprensa destes dias consegue-se encontrar uma boa explicação para essa renúncia à crítica. Afinal, escreveu-se, as previsões macroeconómicas do Programa de Estabilidade são muito menos exageradas do que as que o próprio PS admitia há apenas alguns meses. Está bem que todas ficam acima das expectativas das organizações internacionais, mas entre o que seria expectável e o que acabou por ser inscrito nos quadros do programa vai uma grande diferença. Da mesma forma, quando se esperava que o acordo informal com o Bloco e o PCP fosse empurrar o Governo para uma rota de colisão frontal com Bruxelas, a trajectória de consolidação do défice acabou por provar que, apesar de haver no ar um certo tom de provocação, ninguém acredita que o primeiroministro queira uma guerra com a Comissão Europeia.
O método de criar uma expectativa alarmista para depois recuar para posições mais moderadas está a funcionar. O Governo (e o Presidente) está a conseguir definir um novo perímetro para a discussão dos problemas nacionais. O Programa de Estabilidade é uma esponja capaz de absorver a tensão. Nem a oposição o quer debater no parlamento. Os seus números são pouco credíveis e não resistem à comparação com os números do FMI ou da OCDE, mas isso pouco importa. Há para aí uns lúcidos como Daniel Bessa a profetizar (numa entrevista ao Expresso) uma inevitável subida do IVA, mas ninguém o quer ouvir. O país está farto de fazer contas e quer é ver o Presidente-Rei Marcelo anunciar a esperança no Alentejo e a fazer-se fotografar com crianças.
Da mesma forma, não há razões de alarme no Programa Nacional de Reformas que, apesar ter agora uma versão bem mais reflectida e consistente do que o pindérico powerpoint que o anunciou, é ainda assim uma aspirina para um país com uma doença grave de falta de competitividade. Principalmente quando o Governo se prepara para aplicar na sua execução metade das verbas inscritas no actual ciclo de fundos estruturais (os 24 mil milhões de euros do Programa 2020). Não se sabe se haverá vontade de Bruxelas em canalizar tanto dinheiro para a modernização das estruturas do Estado — há um acordo de parceria assinado com a Comissão Europeia que estabeleceu desde o início que os fundos teriam de ir para a sua frágil economia. Mas isso pouco importa.
Já passou o tempo em que António Costa abria o peito às balas em cada gesto que ousasse. Hoje, ninguém arrisca profecias trágicas depois de tantas vezes se falhar nas profecias anteriores. David Pontes dizia no JN que este é o Governo da terceira via (entre as ortodoxias do Bloco e do PCP e as do PSD e da Comissão Europeia) e essa via mais moderada e centrista tornou o país mais conformado e crente. Vivemos tempos de enlevo e estamos a gostar. Talvez, em breve, venha um relatório de execução orçamental ou um raspanete de Bruxelas sacudir-nos da letargia e obrigar-nos a fazer contas. Ou talvez não. Se a receita oposta até agora falhou, por que havemos de acreditar que a sedução de António Costa nos vai fazer pior?
2.
O auto-de-fé a que o ministro das Finanças e um dos seus secretários de Estado submeteram o governador do Banco de Portugal não foi apenas um degradante sinal de falta de sentido de Estado. Foi também mais um passo gratuito e insensato numa guerra que o Governo sabe que não pode ganhar. Foi por isso que Centeno e as suas hostes fizeram uma prudente retirada estratégica. O populismo que consiste em dizer que Carlos Costa pedia ao Governo para garantir liquidez ao Banif enquanto solicitava o contrário ao Banco Central Europeu pode ser eficaz para a criação de um anátema na opinião pública, mas não funciona quando a crítica é vista à luz das regras estritas do eurossistema.
O interesse do país recomenda que as partes esqueçam as inimizades e passem para o exterior (principalmente para Bruxelas e Frankfurt) uma imagem de responsabilidade que não se coaduna com trocas de acusações em público. Porque se essas acusações desgastam em Portugal a imagem do governador, isso não significa que haja condições para que ele possa ser substituído por Mario Draghi. O melhor mesmo para o Governo nestes dias de enorme turbulência no sistema financeiro é ranger os dentes, manter a calma e deixar que seja a cavalaria do Bloco e do PCP a atacar o governador. O folclores será mais garrido, mas acabará por não ser tão perigoso.
3. Por vezes, fica-se com a sensação de que o PCP é o único partido da esquerda (incluindo aqui o PS) com alguma ligação à realidade. Depois da patética ideia do Bloco de alterar a designação do cartão de cidadão por considerar ilegítima a “linguagem sexista num documento de identificação obrigatório para todos os cidadãos e cidadãs nacionais” e depois ainda de o PS ter dado lustro a tamanha estupidez, lá veio o velho PCP pedir calma e mandar o delírio do Bloco para as malvas. “Não é uma questão de género, mas de gramática”, explicou Jorge Machado, deputado do PCP em jeito de explicação do voto contra que os comunistas aplicarão ao “cartão da cidadania”.


O Bloco, bem se sabe, deleita-se com estas ideias produzidas nos laboratórios das universidades. É fácil e barato promover a vanguarda das “igualdades”, até porque é lógico admitir que ninguém de bom senso ficaria ofendido por ser portador de um cartão da cidadania ou qualquer coisa do género. O problema para o Bloco é que iniciativas deste jaez tendem a perpetuar a ideia de que os seus membros e líderes vivem na estratosfera. Um pouco por todo o lado, a pergunta que mais se fez para responder foi um inequívoco: “Mas, eles não têm mais nada que fazer?” O PCP, mais ligado ao sentir do mundo, percebeu por onde iria a discussão e matou-a à nascença. O politicamente correcto levado ao extremo levou uma lição. Agora que já não suscita indignação, venham daí as merecidas anedotas.

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