segunda-feira, 18 de abril de 2016

Lojistas do Cais do Sodré assediados para cederem espaços ao negócio da noite




Lojistas do Cais do Sodré assediados para cederem espaços ao negócio da noite
POR O CORVO • 19 ABRIL, 2016

Em pouco tempo, aquela que era uma das zonas mais mal-afamadas de Lisboa converteu-se num bairro da moda. Há ali cada vez mais bares. Muito por culpa do fenómeno “rua cor-de-rosa”, surgido no final de 2011. Mas também da revolução turística dos últimos anos. A procura por espaços para instalar negócios nocturnos disparou. Por isso, os tradicionais comerciantes da área estão a ser aliciados para venderem ou arrendarem os seus estabelecimentos. Alguns dos quais viram surgir hostels nos pisos superiores. Mas há quem ache que isto é apenas um fenómeno passageiro.

Texto: Pedro Arede

Os fregueses são cada vez menos nos pequenos estabelecimentos comerciais que vão resistindo no Cais do Sodré. As lojas abertas durante o dia escasseiam e, de tempos a tempos, é comum ver uma pequena mercearia ou boutique dar lugar a um bar ou loja de conveniência. Os lojistas estão preocupados com o marasmo sentido durante o dia e, pelo que foi possível apurar pelo Corvo, as propostas de compra ou de cedência de quotas dos seus espaços são recorrentes e cada vez mais difíceis de resistir. Contudo, há também quem acredite que, como tantas outras, esta é apenas uma fase.

“Isto agora é só night”, diz ao Corvo Abel Medeiros, vendedor numa antiga loja de sementes na Rua dos Remolares, ao qual já foi feita uma proposta de aquisição do espaço. “Já quase não há lojas aqui na zona, porque o negócio está praticamente todo virado para a noite, mas eu, para já, tenho-me aguentado e, se depender de mim, mantenho-me cá. Há poucas lojas de sementes em Lisboa, sabe?”, acrescenta.

Andando um pouco mais até Rua de São Paulo, o cenário não muda muito de figura. Além de restaurantes e lojas de conveniência – onde, segundo alguns lojistas, chega a ser cobrada uma renda mensal de 3700 euros -, a maioria dos espaços comerciais está encerrada, à espera que caia a noite para abrir portas no seu horário de expediente.

António Rocha tem 59 anos e 40 de Cais do Sodré. É vendedor no pronto-a-vestir “Euromoda”, bem perto da rua cor-de-rosa, e também ele vê com desalento e preocupação o estado actual do comércio da zona. Os clientes são raros e a escassa quantidade de lojas nas redondezas traz pouca gente à rua durante o dia.
António Rocha, que orgulhosamente está de portas abertas para vender “roupa de qualidade fabricada em Portugal”, diz estar farto da situação actual e espera somente conseguir aguentar o suficiente até chegar à idade da reforma.

“Deixa-me triste isto assim. Tenho saudades de ver passar aqui na rua os carrinhos com alcofas das vendedoras do Mercado da Ribeira. Era uma azáfama que trazia muita vida aqui ao comércio. Agora não há nada disso, está bom para os bares e para os mais novos”, conta ao Corvo.

Questionado sobre se o estabelecimento alguma vez fora alvo de propostas de compra ou arrendamento, António Rocha reconhece que, ultimamente, tem sido abordado com bastante frequência. “Ainda ontem apareceu aqui um investidor italiano que queria arrendar isto para fazer um bar”, conta ao Corvo.

Mas, aparentemente, ninguém se quer comprometer. Segundo o lojista, os interessados querem apenas “investir enquanto o negócio da noite estiver a dar” e, até hoje, ainda não recebeu qualquer proposta de compra do espaço. Por isso mesmo, diz o próprio, acredita que esta pode apenas ser uma fase passageira.

O negócio imobiliário vai em alta na zona do Cais do Sodré.

Exemplo disso é o tipo de propostas que começam a ser habituais na zona e que, além do arrendamento, incluem ainda o pagamento de uma percentagem mensal e a manutenção do posto de trabalho. “Ninguém quer realmente comprar! Aqui, aos meus vizinhos da frente propuseram-lhes transformar a sua loja de artigos para animais num bar. Pagavam tudo, faziam as obras e eles continuavam a trabalhar mas, neste caso, num bar”, conta ao Corvo António Rocha.

Por seu turno, João Paulo, proprietário da loja de instrumentos “O Trovador”, no início da Rua do Alecrim, mostrou-se céptico acerca dos investimentos que se têm verificado na zona, quando o tópico da conversa foi parar ao encerramento das discotecas Jamaica, Tokyo e Europa. “Julgo que esta especulação toda resulta de histórias mal contadas. Há muitos interesses”, conta ao Corvo. Sobre o seu estabelecimento, João Paulo afirma “não estar à venda”, mas acredita que, se estivesse, seria vendido com bastante facilidade.

A umas centenas de metros de distância do Cais do Sodré, na Rua do Arsenal, as movimentações imobiliárias, neste caso fruto do fluxo turístico e não tanto do negócio da noite, também estão a mudar a configuração do comércio da zona.

Nesta rua, que fica a caminho da baixa de Lisboa, os cafés e os estabelecimentos de venda de bacalhau convivem hoje com lojas de conveniência, lojas de souvenirs e hostels.

Fernando Dias, de 52 anos, proprietário do “Rei do Bacalhau”, trabalha hoje paredes-meias com o hotel “Lisbon Arsenal Suites” e está ciente que a sua propriedade tem atualmente um enorme valor. No entanto, apesar de já ter sido abordado para a venda do espaço, afirma querer continuar a vender bacalhau de “alta qualidade”.

Fernando Dias prefere continuar a vender bacalhau a ceder ao avanço dos bares.

“Fomos oito a vender bacalhau aqui na rua e agora somos só dois”, conta ao Corvo. “Já houve propostas para comprar o espaço mas não está à venda. Para me desfazer disto teria de ser uma oferta muito boa, em que já nem sequer precisasse de trabalhar mais”, acrescentou.

O proprietário, que remodelou recentemente o estabelecimento, “porque era preciso e não para fazer a vontade aos turistas”, conta ainda que muita desta movimentação resulta única e exclusivamente da especulação e que, por isso, é preciso abordar estes tempos com cautela. “Acho que as pessoas andam outra vez a viver a ilusão de há 20 anos, quando ter um prédio em Lisboa era ganhar o Totoloto. Mais tarde, era vendido por tuta e meia”.

Rui Bártolo, 55 anos, vendedor de bacalhau no “Pérola do Arsenal”, diz também que o estabelecimento onde trabalha vai resistindo às investidas de compra do espaço, que “deve valer hoje um balúrdio”.

“Queriam transformar isto num hostel, mas o senhorio não aceitou. Aqui, queremos manter a traça tradicional do espaço, como já era há muitos anos e, para já, temos conseguido aguentar. O que nos tem ajudado muito são os turistas que vêm nos paquetes e acabam por passar todos por aqui”, revela ao Corvo.


Moldados ou não ao turismo e à especulação, o que é certo é que são muitas as incertezas dos comerciantes do Cais do Sodré e arredores quanto ao seu futuro, sobretudo numa altura em que as propostas são cada vez mais tentadoras e, simultaneamente, menos assertivas. A pressão existe e o Cais mudou. Mas será o interesse na noite apenas uma fase?

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