domingo, 3 de maio de 2015

ENTREVISTA / Sampaio da Nóvoa. Um PR tem que intervir contra a corrupção, os interesses e as promiscuidades


Sampaio da Nóvoa. Um PR tem que intervir contra a corrupção, os interesses e as promiscuidades
Quem é este homem, o tal que ninguém conhece?

ANA SÁ LOPES
02/05/2015 / (jornal) i online

O candidato presidencial entra no Jardim Botânico da velha Faculdade de Ciências, ali na Rua da Escola Politécnica. A dada altura saiu da Cidade Universitária e aí instalou o seu gabinete de reitor durante uns tempos. Olha com paixão as obras que fez naquele tempo, a árvore trespassada por balas das revoltas republicanas e o tronco de que falava Thomas Mann nas “Confissões de Felix Krull, cavalheiro da Indústria”. Mostra o túmulo do fundador do velho palácio, Fernão Telles de Menezes, ex-governador da Índia, que arrancou com as suas mãos de um esconderijo onde se encontrava, e que hoje está devidamente assinalado naquele que é hoje o Museu de História Natural. Está em casa e felicíssimo. Na véspera apresentou a sua candidatura presidencial. Quem é este homem, o tal que ninguém conhece?

Quem é António Sampaio da Nóvoa, o candidato presidencial que os portugueses desconhecem?
Nasci em Valença. A minha mãe era valenciana, morreu o ano passado. Era de uma família da pequena burguesia, o meu avô era funcionário das Finanças. Somos cinco irmãos.

Todos minhotos?
Todos minhotos. Na verdade, nascemos todos na mesma casa, na mesma cama e com o mesmo médico parteiro (risos). O meu pai é juiz, nós vivíamos no Minho, os juízes mudavam de comarca de dois em dois, três em três anos, mas quando se aproximava a altura de nascermos a minha mãe ia para casa dos meus avós e ali ficava à espera. Essa pertença a Valença é forte do lado da minha mãe, mas a pertença maior vem do lado do meu pai, a Póvoa de Varzim, de onde o meu pai é natural, mas sobretudo às duas casas da família, a casa de Boamense, em Vila Nova de Famalicão, que era a casa de Alberto Sampaio, historiador do século xix e amigo do Antero, e ao Mosteiro de Landim, que depois ficou para um dos meu tios. Vivi sempre nessa idolatria do Antero e de toda a geração de 70. O meu pai e os irmãos eram sete, tiveram todos muitos filhos. Nas férias toda a minha socialização foi feita nesse caldo. No escritório do Alberto Sampaio eu lia as coisas mais improváveis com 12, 13, 14 anos. Toda a família, tanto do lado do meu pai como da minha mãe, é católica, muito religiosa. E isso influenciou--me profundamente.

É católico?
Eu tinha uma relação profundíssima com a minha mãe. Já uma vez respondi assim: “Não sei responder a essa pergunta, mas a minha mãe é capaz de responder por mim.” Se ela estivesse cá para responder, seria capaz de responder melhor do que eu sou capaz. Tenho uma dimensão espiritual, religiosa, muito forte na minha vida, mas, como muitos de nós, sou-o à minha maneira. Ainda ontem, depois do anúncio da candidatura, a primeira pessoa a quem falei foi ao prior de Oeiras, que é uma pessoa por quem tenho uma consideração enorme, uma amizade enorme.

Mas não consegue dizer que é católico?
Não, não consigo dizer.

Passou Páscoas no Minho, imagino. Beijava a cruz?
Durante muitos anos beijei a cruz, sim. A Páscoa na casa de Boamense era o momento mais forte do ano. Mais que o Natal. O compasso era um momento marcante para todos nós. Agora não sou capaz de colar nisso uma etiqueta. E não sou capaz porque não sou mesmo capaz e não sou capaz também porque não queria que isso fosse visto como uma forma de oportunismo. São coisas tão íntimas que temos de ter cuidado para não as expor. Prefiro manter isso dentro de mim.

Casou-se com 19 anos, no meio da Revolução. Tem um filho. A sua mulher vai participar na campanha?
Casámo-nos no meio da Revolução sem dizer nada a ninguém. Mas eu e a minha mulher sempre tivemos vidas muito separadas, muito independentes. Foi uma opção de vida dos dois desde sempre. Eu vivi muitos anos no estrangeiro sozinho. Ao longo destes 40 anos vivemos muitos anos em casas separadas. Tivemos durante muitos anos praticamente duas casas. Este é o meu percurso, a minha opção e fá-lo-ei individualmente.

Fiquei agora a pensar que se ganhar as presidenciais se calhar a sua mulher não vai assumir o papel de “senhora de Sampaio da Nóvoa”, a expressão horrorosa que está inscrita no protocolo de Estado...
Aliás, o nome Sampaio da Nóvoa é uma coisa curiosa. Eu toda a minha vida fui António Nóvoa. E agora de repente, acho que em parte a comunicação social, começaram a chamar-me Sampaio da Nóvoa e nós fomos atrás disso. Às vezes quando ouço Sampaio da Nóvoa penso: “Mas quem é Sampaio da Nóvoa? Ah, sou eu!” [Risos.] Uma coisa que eu aprendi desde que assumi maiores responsabilidades, tanto na reitoria como agora nesta decisão, é que só conseguimos tomar as decisões momento a momento. Não podemos ter a ilusão de que controlamos o futuro. No momento oportuno essas decisões serão tomadas com a liberdade com que eu acho que sempre estive na vida.

Tem um filho, André, 29 anos, que é militante do Livre... Ele vai participar na campanha?
Creio que não. Fisionomicamente, o André é muito parecido com o irmão da mãe. Mas em termos de maneira de pensar, de estar na vida, acho que é muito parecido comigo. Até no percurso híbrido que ele fez, que é parecido com o meu. Eu sou um híbrido total e completo!

Pois, o professor começa no futebol, na matemática, no teatro...
Até chegar à Educação, onde ainda faço carreira académica. Mas depois salto para a História e não acabarei por aqui [risos]. O André fez uma licenciatura em História na Universidade Nova de Lisboa. Ele justamente dizia: “Eu não vou para a universidade onde tu estás.” E isso também é uma coisa muito minha. Sem criticar, tenho muita dificuldade em perceber aquelas famílias em que os pais, os filhos, a mulher, os tios, está tudo nas mesmas instituições. Eu preciso de separar águas. O André depois fez um mestrado em Antropologia e a seguir um doutoramento em Geografia na Universidade de Londres. Actualmente está em Boston, como investigador em pós-doutoramento. Acho que há duas decisões na minha vida que eu não sei se foram certas ou erradas [risos]. A primeira foi ter deixado o futebol [gargalhada]. Ainda hoje não tenho a certeza se recusar aquela oferta que me fazem para passar à equipa sénior da Académica e ter uma carreira a sério no futebol não foi uma decisão errada [risos]. A segunda, mais a sério, foi quando acabei o doutoramento e me ofereceram um lugar na Universidade de Genebra. E eu tive de decidir se voltava ou se assumia que ia fazer a minha carreira no estrangeiro.

E porque é que decide voltar para Portugal?
Não sei. Não tenho explicação. Já se passaram 30 anos e os meus colegas de Genebra ainda dizem: “A gente não entende. De todos os que estavam a fazer o doutoramento, só houve dois a quem oferecemos e ainda hoje não percebemos porque é que tu não aceitaste.” Para mais Portugal naquela altura...

Estávamos em...
1986. E voltei para nada! Não tinha emprego. Era assistente convidado, mas assim com umas horas, no antigo Instituto Superior de Educação Física...

Mas enquanto o André está no partido Livre, o professor nunca deu esse passo. Porquê?
Nunca dei. Julgo que tive sempre uma descrença muito forte nos aparelhos dos partidos e nas ortodoxias. É para mim muito difícil aceitar as ortodoxias.

O seu pai é Alberto Sampaio da Nóvoa, que é conhecido dos portugueses por ter sido ministro da República para os Açores...
O que é uma enorme injustiça. O meu pai jubilou-se aos 70 anos como presidente do Supremo Tribunal Administrativo e depois teve alguns anos como ministro da República para os Açores. E isso é como se toda a vida profissional do meu pai como juiz, absolutamente notável, não tivesse contado nada e só contasse a partir do momento em que foi nomeado ministro da República para os Açores! É aquela coisa estranha: reitor de uma universidade, mas isso interessa a alguém? Presidente de um Supremo Tribunal Administrativo, isso interessa a alguém? Interessa é ser secretário de Estado... É uma coisa impressionante que as nossas elites possam achar que uma pessoa ser reitor de uma universidade como a Universidade de Lisboa é uma coisa insignificante. Secretário de Estado é que dá muito mais experiência, notoriedade, outra coisa qualquer! O meu pai é um juiz dos pés à cabeça. E é o homem com quem eu aprendi tudo na vida no que tem a ver com imparcialidade e isenção. O meu pai nunca mais tocava num processo quando alguém lhe vinha pedir qualquer coisa. Não se pronunciava mais. É a referência mais luminosa da minha vida, que até hoje me ajuda mais, quase sempre pelo silêncio. É um homem de poucas palavras.

Como reagiu quando lhe disse que se ia candidatar?
Disse-me: “Não sei. A opção é tua.” Mas nisto ele está a dizer-me tudo. Quando o meu pai vai para os Açores como ministro da República há um episódio curiosíssimo. Estamos todos na casa de Boamense e ele recebe um convite de António Guterres para ser ministro da República para os Açores. E pergunta-nos, aos cinco irmãos, a nossa opinião. E somos unânimes em dizer não.

Porquê?
Nunca imaginámos que a minha mãe conseguisse sair de Oeiras. Nós vivemos todos em Oeiras. A minha mãe não descansou enquanto não nos pôs a todos, os filhos, os netos, a viver no mesmo bairro. E a minha mãe ia agora para o meio do Atlântico? O meu pai para uma função política? Eu não me lembrava de o meu pai ter aberto a boca em público uma vez! Era o juiz metido nos seus processos, ia sofrer horrores. Ele ouviu-nos a todos, agradeceu-nos a opinião, e depois decidiu que sim [risos]. E o meu pai e a minha mãe tiveram os anos mais felizes da vida deles nos Açores. A minha mãe, no fim da vida, já muito doente com um cancro muito duro, se a gente lhe queria ver um sorriso nos lábios era falar--lhe dos Açores. Os meus pais foram felicíssimos nos Açores. E o meu pai aos 70 anos mudou de pele! Eu às vezes falava com o Dr. Jorge Sampaio, quando trabalhei com ele, e dizia: “Não percebo, aquele não é o meu pai!” Andava na rua, a cumprimentar as pessoas, ia às procissões! “Aquele não é o pai que eu conheço, é outro pai qualquer.” [Risos.]

Vê-se também agora a mudar de pele, como o seu pai?
Vejo, vejo-me muito bem a mudar de pele. A decisão de assumir a candidatura foi muito dura e difícil. Sei que depois disto, aconteça o que acontecer, a minha vida será diferente. Mas, se correr bem, se conseguir suscitar essa dinâmica de confiança nas pessoas, irei para Belém e dar-me-ei totalmente a esse cargo. Se os portugueses não tiverem confiança, se as coisas correrem mal, recolher-me--ei, voltarei a ser professor, ponto final, não farei rigorosamente mais nada.

Porque diz que pensa em Eanes quando pensa na sua candidatura?
Devo dizer que penso nos três ex-Presidentes da República, por razões diferentes. Penso em Eanes, na dimensão da independência e isenção e de um exercício muito despojado do cargo. Acho que precisamos de ter na Presidência da República esse despojamento. Vivemos uma fase da vida política portuguesa, por muitas coisa que aconteceram nos tempos mais recentes, em que não pode haver nenhuma suspeita de que a pessoa que está num cargo destes tem um interesse qualquer, numa empresa, num banco… Acho que o general Ramalho Eanes teve essa espécie de despojamento, desprendimento e isenção no exercício do cargo, que é uma marca do ponto de vista ético e moral muito importante. É nisto que eu penso, não é de maneira nenhuma em qualquer forma de intervenção política a partir da Presidência da República.

Mas o que tem dito até agora é a marca de um candidato a Presidente muito interventivo…
Eu não acho. Sei que as pessoas têm dito isso, mas não acho. Depende do que queremos dizer com a palavra “interventivo”…

Disse que era preciso acabar com o ciclo de austeridade. O que pode um Presidente fazer para pôr fim ao ciclo de austeridade?
O sistema que a Constituição consagra comete a responsabilidade de governação aos partidos e à Assembleia da República, mas faz eleger o Presidente por sufrágio universal e directo. Dá-lhe também uma responsabilidade e uma legitimidade grande. Essa legitimidade faz--se não no jogo partidário mas numa relação mais directa com os portugueses. Se a interventivo estiver subjacente uma intervenção sistemática no jogo partidário, na tentativa de criar outros equilíbrios partidários, eu serei o Presidente menos interventivo do mundo. Se o interventivo quer dizer que me vou misturar na governação, constituir novos partidos, esqueça. Zero.

Mas o coronel Vasco Lourenço disse ao i que a sua candidatura presidencial poderia favorecer novas alianças governativas, nomeadamente à esquerda…
Isso não é o que está na minha candidatura. Essas alianças decorrerão de opções legítimas, e as possíveis, que os partidos farão.

Mas não será patrocinador de alianças à esquerda?
Não serei eu o patrocinador de equilíbrios partidários. Não acho que o Presidente da República tenha essa função. Tem a função de ter algumas causas, alguns pactos, ter uma relação directa com os portugueses, obviamente suscitar ideias e projectos de futuro para o país, mas não uma intervenção sistemática do ponto de vista dos equilíbrios partidários.

Mas o Presidente tem poder de veto e de dissolver a Assembleia…
É óbvio que os exercerei na medida em que entender que devo exercê-los. Se por interventivo entendermos uma intervenção junto das pessoas, participar em certas causas no plano nacional e eventualmente no plano internacional, vejo-me a falar todos os dias. Vejo-me a estar com as pessoas todos os dias. Não me vejo fechado no Palácio de Belém. Se interventivo quer dizer isso, acho que sou eu. E aí reconheço a marca do mandato do Dr. Mário Soares, nesse sentido de uma maior proximidade com as pessoas, como vejo muito a marca do Dr. Jorge Sampaio na questão das causas sociais. Acho que o Presidente pode ser alguém que completa a nossa democracia. Sem intervir no normal jogo partidário que decorre das eleições legislativas, pode completar a democracia através de um conjunto de outras formas de intervenção e acção. Vejo-me como Presidente a conversar todos os dias com as pessoas. Acho que nesse sentido o Presidente pode ter um papel, sobretudo nestes tempos difíceis que vivemos, importante junto das pessoas.

Mas disse no discurso de candidatura que não seria “um espectador impávido da degradação da vida pública”…
Repare: quando falo na degradação da vida pública não estou a falar em opções ideológicas de governo ou em alianças partidárias, estou a falar de degradação no sentido da corrupção, dos interesses, das promiscuidades, de coisas absolutamente inaceitáveis para mim. O Presidente da República tem de ter sobre essa matéria linhas e fronteiras muito claras. Tem de intervir contra a degradação da vida pública no sentido deste novelo insuportável de interesses, casos, situações, a que particularmente ao longo do último ano fomos assistindo com uma enorme indignação.

Assistimos à prisão do ex-primeiro-ministro José Sócrates...
Assistimos à prisão do ex-primeiro-ministro, ao caso BES, aos vistos gold. Isto é uma coisa insuportável. E é mais insuportável ainda numa altura de tanto sofrimento dos portugueses. Temos de estabelecer aqui uma fronteira. Acho que um Presidente da República, pela sua acção, pelas suas palavras, pela sua influência e pela sua legitimidade, pode ter um papel muito importante a estabelecer linhas de separação sobre isso. Quando falo em degradação da vida pública é no sentido da ética republicana, de serviço público, e não de interesses privados ou particulares. Sobre o ex-primeiro-ministro José Sócrates, só uma vez manifestei a minha opinião. Eu não condeno ninguém antes de haver qualquer decisão na justiça.

Mas, segundo as palavras de Sócrates e da defesa, o ex-primeiro-ministro vivia de empréstimos de um amigo e não utilizava contas bancárias porque desconfiava do sistema bancário…
É uma coisa sobre a qual temos de ter uma prudência grande. As pessoas têm todos os direitos na sua defesa. Agora acho insuportável o caso sem me pronunciar sobre a substância disso. É uma coisa que me revolta completamente por dentro que uma coisa destas possa acontecer ao nosso país. Agora longe de mim estar a condenar quem quer que seja antes d os tribunais se pronunciarem. E há muitas coisas que vamos sabendo neste caso, em todos os sentidos, que não parecem bem. Mas quando falo em degradação da vida pública, é óbvio que do que falo é disto.

O PS vai declarar-lhe apoio formal mais dia menos dia. Fica contente com esse apoio?
Claro que se esse apoio vier é um apoio não só muito importante como poderá ser mesmo decisivo. Agora tudo isto está a ser feito, por iniciativa minha com um grupo de pessoas, 8-10 pessoas que se auto-organizaram em torno deste projecto e a quem nunca perguntei de onde vinham.

Mas António Sampaio da Nóvoa é um homem de esquerda. Isso está acima de qualquer dúvida?
Isso está acima de qualquer dúvida. O meu lugar, as coisas por que me bati ao longo da minha vida, vêm do lugar da esquerda. Mas a minha característica principal foi sempre a capacidade de construir consensos. Acho que alguém disse num programa de televisão, em tom crítico, que eu deveria ser “muito ecuménico”. Quando me disseram isto, eu disse: “Mas é verdade! Eu sinto-me muito ecuménico.” Eu trabalho com pessoas de todos os lugares e de todos os sectores da sociedade, sempre foi assim. A fusão das universidades atravessou todos os sectores políticos.

Como se combate a austeridade enquanto ideologia europeia? Como é que um Presidente pode combater?
Combate-se tendo a coragem de dizer que sozinhos não conseguimos fazer tudo, mas podemos consolidar internamente tudo o que nos reforce. Em vez da ilusão que tivemos ao longo das últimas décadas de que podíamos acabar com as pescas, com a agricultura, porque íamos receber uns subsídios de Bruxelas… este ilusão foi muito marcada por um jogo de subsídios e de casino. Temos de reforçar a inovação, a economia, o nosso território, reforçar muitíssimo a nossa capacidade de investir no mar, fazer investimentos estratégicos que só o Estado pode fazer. Isto para que daqui a 30 anos possamos estar em condições de obter alguma riqueza que daí advenha. Para mim o objectivo é tentarmos reforçar-nos, e é por isso que a educação é muito importante, a cultura é muito importante, a língua é muito importante, a tecnologia e a inovação na economia são muito importantes. Esta é a minha aposta.

Defende a renegociação da dívida. Referiu isso no discurso. Vai insistir neste assunto na campanha?
Revejo-me muito nas afirmações que Thomas Piketty fez em Portugal. Julgo que hoje é claro para toda a gente na Europa que tem de haver um plano de reestruturação das dívidas, para encontrar soluções viáveis para o pagamento. E se não as encontrarmos a Europa entra num beco sem saída. Creio que isso é consensual. Uns podem dizê-lo abertamente, outros não o podem dizer tão abertamente. Mas nenhum de nós tem qualquer dúvida sobre essa matéria. Parece-me absolutamente inevitável. Mas nessa matéria não advogo rupturas. Acho que temos de trabalhar muito pela democratização da União Europeia, por uma União que volte de algum modo às suas origens e aos seus compromissos iniciais, que não seja apenas isto que estamos a ver, esta união económica e monetária, este Tratado Orçamental, este jogo em que ganham sempre os mesmos e perdem sempre os mesmos, façamos o que fizermos. Temos uma batalha enorme a travar na Europa e é uma batalha em que o Presidente da República tem de estar envolvido, seja qual for o governo. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. O reforço de Portugal na frente interna e externa não podem deixar de ser causas nacionais, pactos de futuro. Como se chega a isso? É evidente que há metodologias diferentes e que têm de ser respeitadas em função do voto dos portugueses. Mas penso que estas causas podem criar um consenso grande na sociedade portuguesa.

O próximo Presidente enfrenta negociações duríssimas na frente interna e externa. Acusam-no de não ter experiência política para enfrentar isto.
Sinto-me preparadíssimo. Custa-me muito aceitar que se possa dizer de alguém que foi secretário de Estado ou deputado da última fila de uma bancada qualquer que são pessoas com experiência política e que alguém que foi reitor de uma universidade, que teve as responsabilidades de governo que teve nessa universidade, que não tem experiência política. Depende do que queremos dizer com política! Política para mim é a polis, não tem outra raiz, é a raiz da res publica, a coisa pública. E eu tenho essa raiz na minha vida. Tive de tomar muitas decisões difíceis em muitos lugares. Não tenho experiência no sentido partidário mas não creio que isso seja um factor. Muitos acusam-me de ingenuidade, de inocência. Por exemplo, tenho muita dificuldade em aceitar teorias conspirativas. A confiança gera mais confiança. Quando os portugueses percebem que estamos a falar olhos nos olhos, que não estamos a esconder nada, que estamos a dizer o que nos vai na alma, a experiência que tenho é que as pessoas no final acabam por responder positivamente a isso. A capacidade de construir confiança com as pessoas eu tenho. Vai ser difícil? Claro… Agora sobre isto da notoriedade, Miguel de Unamuno dizia que em Roma antes de haver impostos não havia impostos. Eu sinto-me um bocadinho assim: antes de haver um Presidente da República que não vem dos partidos não tinha havido um Presidente que não vinha dos partidos. Mas chegará o tempo em que isso há-de vir. Não quero que haja nenhuma dúvida sobre esta matéria: eu tenho o maior dos respeitos pelas pessoas que ao longo de anos e anos militaram nos partidos.

Portanto não é um candidato antipolíticos?
De maneira nenhuma. O discurso antipolíticos e antipartidos é o pior discurso da sociedade portuguesa. Há dois discursos que detesto e já tive de sofrer com eles neste percurso: um é o discurso antipolíticos e antipartidos, que nunca ninguém me ouvirá ter. Tenho um respeito enorme pelas pessoas que militaram nos partidos, não acho é que elas sejam nem mais nem menos que eu, que por isso tenham mais direitos de cidadania ou de intervenção pública do que eu tenho. O outro discurso horrível que já tive de ouvir – ainda por cima por causa do trocadilho de Nóvoa com névoa – é o do sebastianismo. Se há discurso que mais me irrita na história de Portugal é o do sebastianismo.

É um grande crítico de Nuno Crato e da política de educação que está a ser seguida por este governo.
Há duas coisas que estão a ser terríveis na escola. Uma é culpa deste governo, a outra não. A que não é culpa deste governo é uma hiperburocratização das instituições em geral e das escolas em particular. Os professores perderam liberdade pedagógica, perderam a capacidade de ser diferentes, tudo aquilo é controlado, tudo aquilo é uma avaliação absolutamente cega de coisas, relatórios, prestação de contas. Os professores hoje gastam metade do trabalho em burocracias, em papéis. O outro problema são as políticas deste governo. Quando Nuno Crato diz que “o importante é o Português e a Matemática” ninguém discorda, mas ele está a utilizar isto como uma metáfora que na verdade ressoa à metáfora organizadora da escola salazarista do “ler, escrever e contar”. Quando se diz isto não se está a dizer que o Português e a Matemática são importantes, está-se a dizer outra coisa: que tudo o resto é irrelevante. E foi isto que organizou a escola salazarista. Contrariamente ao que muita gente diz, a escola salazarista não era uma escola que promovia o analfabetismo. Isto é um erro histórico de análise que muita gente nos movimentos antifascistas cometeu. O problema da escola salazarista não foi querer que fossem todos analfabetos, foi o problema da escola mínima, a escola do ler, escrever e contar. É o problema da escola em que chega a terceira classe. O que temos do ponto de vista ideológico hoje é uma concepção de escola que se assemelha a essa, à ideia de que o que importa é um núcleo básico que acaba por desvalorizar tudo o resto. E assim temos uma escola que vai empobrecendo. Houve um retrocesso enorme na escola portuguesa nos últimos anos.

E inclui nesse retrocesso a Maria de Lurdes Rodrigues?

Eu penso que a Maria de Lurdes Rodrigues tinha no essencial uma política certa no que diz respeito às questões estruturantes. Do currículo, do aumento das qualificações das crianças e jovens, da qualificação dos adultos. Eu fui das pessoas que mais criticaram o programa Novas Oportunidades, mas nunca me ouviram dizer que o programa não era importante. Qual foi o problema da Maria de Lurdes Rodrigues? A burocratização e a ideia de que para legitimar uma política é preciso que alguém seja contra. E quando o discurso é feito como se os maus da fita fossem os professores, os sindicatos, acaba por conduzir a uma situação que torna ingovernável a educação. Criou tanta crispação, tanta resistência, que políticas que no essencial estavam certas acabaram por não se traduzir na prática. Ora a política é a arte de fazer, não a de ter boas ideias. E isto acabou por se transformar num problema a muitos títulos.

Sem comentários: