sábado, 8 de novembro de 2014

A Europa sem pudor. Eurodeputados querem que Juncker explique se ajudou empresas a fugir aos impostos. Um esquema que “é fácil, barato e dá milhões”.ICIJ criou redacção virtual para o LUXLEAKS./ VER OS ARTIGOS DO GUARDIAN NO "POST" SEGUINTE, EM BAIXO.


A Europa sem pudor
Menos solidária e cada vez menos credível, a União Europeia afunda-se
EDITORIAL / PÚBLICO

Jean-Claude Juncker é um dos dirigentes europeus mais conhecidos. E não é de agora, desde que se tornou presidente da Comissão. Basta lembrarmo-nos de que foi 18 anos primeiro-ministro do Luxemburgo (1995-2013, parte dos quais acumulando com o cargo de titular das Finanças), presidente do Eurogrupo durante oito (2005-2013) e presidente do Conselho Europeu em dois semestres (1997 e 2005), para se perceber que Juncker tem sido um dos grandes protagonistas da construção europeia, para o bem e para o mal. Poderia ter sido rival de Durão Barroso em 2004, quando este se candidatou à presidência da Comissão Europeia, mas declinou, porque fora recentemente reeleito primeiro-ministro do seu país. Ironia das ironias, sucede agora ao português num mandato que se revelou conturbado mesmo antes de começar. Desde logo pelo inconformismo de David Cameron, que tudo fez por lhe minar a candidatura. O primeiro-ministro britânico sempre encarou Juncker como demasiado europeísta e nunca escondeu as diligências para arranjar alternativas à eleição do luxemburguês. Este não se intimidou e, logo no primeiro discurso perante o Parlamento Europeu, não hesitou em desafiar a ortodoxia comunitária, ao condenar o excesso de austeridade e declarar a sua aposta na criação de empregos e no crescimento económico. Para ajudar, prometeu apresentar um pacote de 300 bilhões de euros antes do Natal.
Chegará lá? Esta é a pergunta de um milhão de dólares que, nesta altura, mais deve circular nos corredores de Bruxelas. Na quinta-feira, uma investigação divulgada por 40 meios de comunicação internacionais revela um esquema secreto, que alegadamente permitiu a 340 multinacionais fugirem aos impostos nos seus países, através do Luxemburgo. Este esquema, conhecido já como Luxembourg Leaks, envolve acordos “perfeitamente legais”, segundo o Guardian, mas revela uma deturpação do sistema fiscal europeu e uma concorrência desleal entre Estados. Essa fuga ao fisco terá ocorrido entre 2002 e 2010; logo, durante o consulado de Juncker à frente do Governo do grãducado. Trata-se de receitas fiscais de milhares de milhões de euros que vários Estados perderam, acrescentando assim lucros fabulosos a empresas como a Ikea, Amazon, Google, Pepsi, AIG, Deutsche Bank, Apple ou a Coach.
A notícia caiu como uma bomba nos meios políticos europeus e, nesta altura, muita gente se interroga sobre que consequências terá, quer para Juncker, quer para o colégio de comissários, quer para o futuro da própria Europa. Se o presidente cair, os seus comissários também saltam e o processo de eleição volta à estaca zero. Mas o que fica (ainda) mais em causa é a construção europeia, cuja realidade se exibe, com a mais despudorada crueza, no esquema agora revelado. Já não se trata apenas de falta de solidariedade, agora os Estados andam deliberadamente a enganar-se uns aos outros. Sim, porque Bélgica, Holanda, Malta, Reino Unido também estão a ser investigados... por práticas mais ou menos idênticas. Que credibilidade e que respeito merece uma Europa assim?

Um esquema que “é fácil, barato e dá milhões”
Não é certamente por acaso que o Luxemburgo, um país com 600 mil habitantes ( pouco mais do que a cidade de Lisboa), tem um PIB per capita quase três vezes superior ao de países como a Alemanha e o Reino Unido. Os indicadores do Luxemburgo têm muito a ver com as “vantagens” que a autoridades concedem a quem quer fazer negócio, que protegem os protagonistas dessas operações de olhares de outras paragens, nomeadamente das autoridades dos países onde têm o centro dos seus negócios.
O recente trabalho do Consórcio Internacional para o Jornalismo de Investigação (ICIJ, na sigla em inglês) veio agora mostrar que ter uma subsidiária no Luxemburgo “é fácil, é barato e dá milhões”. E mostrou que a engenharia fiscal que o país permite tem muitas formas de se manifestar.
Os gastos em instalações são reduzidos. O trabalho do ICIJ diz que um simples edifício (o número 5 da Rue Guillaume) alberga 1600 empresas, muitas delas tendo apenas uma caixa de correio. Depois, são várias as ferramentas à escolha.
A norte-americana FedEx, empresa de transporte de mercadorias, criou subsidiárias no Luxemburgo por onde fez passar os lucros obtidos com a operação no México, na França e no Brasil, beneficiando de uma taxa de imposto de 0,25%. Uma companhia farmacêutica britânica, a Shire, tinha filiais no Luxemburgo que concediam empréstimos avultados a companhias irmãs e a taxas de juro que podiam chegar aos 10%.
A investigação cita também o caso da cadeia IKEA, que começou por criar uma subsidiária no Luxemburgo e esta, por sua vez, criou outra na Suíça, ambas com a finalidade de beneficiar de taxas mais favoráveis. Mesmo o fundo de pensões da função pública canadiana utilizou uma filial no Grão-Ducado para reduzir os rendimentos obtidos com os investimento que realizou em imobiliário na Alemanha.
José Manuel Rocha / 8-11-2014 / PÚBLICO

ICIJ criou redacção virtual para o LUXLEAKS
Será quase tão avançada como na sua época a nave da saga Star Trek: a Enterprise, a plataforma digital criada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) para trabalhar o caso LuxLeaks, foi um instrumento essencial para que a equipa de mais de 80 jornalistas em 26 países funcionasse numa redacção virtual global e trabalhasse em conjunto as 28 mil páginas que compõem o processo.
A descrição é feita por Marina Walker Guevara, a chamada “gestora de projecto” do caso LuxLeaks. “Os documentos centrais da investigação eram incrivelmente complexos”, pelo que a sua análise requeria uma profunda especialização financeira e conhecimentos locais” da realidade de alguns países onde as empresas operam.
A investigação começou há seis meses, quando a ICIJ teve acesso aos documentos. Depois de algumas dúvidas — porque os casos da engenharia fiscal da Fiat e da Amazon no Luxemburgo eram públicos e a União Europeia já tinha aberto investigações também aos paraísos fiscais da Irlanda e Holanda —, em Junho, uma equipa de 40 jornalistas mergulhou a fundo na documentação.
Seguiram-se meses de “trabalho de investigação entediante e silencioso”, para passar a pente fino todos os contratos fiscais entre as empresas e o Governo luxemburguês, liderado por Jean-Claude Juncker, mas também, por exemplo, as contas das empresas, as leis de cada país. E somaramse muitas “negas”: tanto a PricewaterhouseCoopers, que assessorou as empresas e o Estado luxemburguês, assim como este último e responsáveis das grandes empresas, fizeram do silêncio a palavra de ordem, descreve Marina Guevara.
M.L.

Eurodeputados querem que Juncker explique se ajudou empresas a fugir aos impostos
O que está em causa não é evasão fiscal, mas sim a legislação do Luxemburgo e os pactos assinados com multinacionais, enquanto o presidente da Comissão era primeiro-ministro

Clara Barata / 8-11-2014 / PÚBLICO

Durante muitos anos, o Luxemburgo, governado por Jean-Claude Juncker, abriu as portas às grandes multinacionais, como a Pepsi, a Ikea, a Fiat ou a Amazon, entre outras, para que aliviassem a carga fi scal que teriam de pagar nos seus países, aproveitando- se da legislação generosa do grão-ducado. Agora, na semana em que assumiu a presidência da Comissão Europeia, Juncker está a ser convocado por vários grupos parlamentares para ir prestar esclarecimentos no Parlamento Europeu (PE) sobre estes negócios.
O “planeamento fiscal” oferecido por bancos e consultoras financeiras aos seus clientes com toda a normalidade não é tecnicamente um crime, como a evasão fiscal. Por isso Jean-Claude Juncker, que foi primeiro-ministro do Luxemburgo entre 1995 e 2013, e antes disso ministro das Finanças, poderá até dizer-se de consciência tranquila, quando for ao PE.
Mas fica em causa a sua independência para liderar o inquérito aberto no ano passado pela Comissão Europeia sobre os modelos que vários Estados europeus — como a Holanda, a Irlanda, Malta, Chipre e o Reino Unido — oferecem a grandes empresas para possibilitar a elisão fiscal.
O que está em causa não é a fuga aos impostos, a evasão fiscal, que passa pela ocultação de informações, falsas declarações. A elisão fiscal é um abuso dos métodos legais para diminuir a carga tributária sobre as empresas — por exemplo, abrindo uma sucursal de uma empresa no Luxemburgo, que faz um empréstimo oneroso à casa-mãe, o que permite reduzir em muito os impostos a pagar pela empresa original. Várias empresas, como a gigante de electricidade E.ON, aproveitaram- se das condições fiscais generosas do Luxemburgo e de outros países da União Europeia, como a Irlanda, beneficiando duplamente destes paraísos fiscais dentro da UE.
Uma fuga de informação de quase 28 mil páginas de documentos confidenciais (apelidada “LuxLeaks”), tratada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ver http://www.icij.org/) deu origem a artigos em jornais de vários países, publicados na quinta-feira. Revelam que o Luxemburgo assinou, entre 2002 e 2010, pactos secretos com 340 multinacionais, que lhes permitiam pagar apenas 2% de imposto comercial, em vez dos 28,6% que oficialmente teriam de pagar no Luxemburgo.
Estes acordos ( tax rulings) foram assinados enquanto Juncker era primeiro-ministro — aliás, foi ele que transformou o Luxemburgo numa grande praça financeira: 40% do produto interno bruto depende dos serviços financeiros.
Segredo de Polichinelo
A legislação do grão-ducado não o torna um pária por ter permitido estes negócios com as maiores empresas do mundo — não se pode dizer que estas revelações sejam uma enorme surpresa. “Era um segredo de Polichinelo que o Luxemburgo é um paraíso fiscal, mas o país tinha conseguido escapar ao radar, em parte porque os seus responsáveis políticos e os seus banqueiros o negavam”, afirmou à AFP Ronen Palan, professor de Política Internacional na City University de Londres. Jean-Claude Juncker, por exemplo, conseguiu que uma jornalista francesa se retractasse, há alguns anos, de ter usado a expressão “paraíso fiscal”, numa reportagem sobre o seu país.
Na quinta-feira, Juncker manteve a cabeça baixa — não compareceu a uma evento promovido em Bruxelas, com a desculpa de que Jacques Delors, um anterior presidente da Comissão, que deveria estar presente, estava doente e também não iria. Deixou o seu porta-voz, Margaritis Schinas, enfrentar a imprensa, para dizer que “o sr. Juncker já teve a ocasião de se expressar claramente sobre o tema da fiscalidade”, relata o Le Monde. “Ele advoga uma maior harmonização fiscal”, afirmou. “Ele está sereno. Se fosse mais jovem, diria que está cool. Fiquemos pelo sereno”, disse ainda Schinas, segundo o Guardian.
Éuma atitude diferente do político que, na véspera, tinha acusado os primeiros-ministros italiano e britânico de mentirem aos seus eleitores. E garantia que não se deixaria intimidar. “Eu não tremo face aos primeiros-ministros”, afirmou, depois da primeira reunião da sua equipa de comissários europeus, que entrou em funções a 1 de Novembro.
Mas, na falta de esclarecimentos de Juncker, coube ao actual primeiro-ministro luxemburguês, Xavier Bettel, e ao ministro das Finanças, Pierre Gramegna, prestarem esclarecimentos. Bettel garantiu que a legislação do seu país “é compatível com os padrões comunitários e com os da Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento”.
Numa sala a abarrotar de jornalistas estrangeiros, relata o El País, Gramegna admitiu que, “às vezes, o que é legal pode não ser eticamente compatível com as normas” e declarou-se disposto a colaborar com Bruxelas. Sublinhou, no entanto, que outros países têm legislações semelhantes. “Isto não se pode resolver só num país, é preciso agir em cooperação.”

Não existe uma harmonização fiscal na União Europeia — algo a que os Vinte e Oito têm resistido ferozmente. Juncker tinha, todavia, dado garantias de que se empenharia em impor uma maior transparência — eo seu porta-voz sublinhou que o presidente da Comissão continua comprometido com esse objectivo. A nova comissária da Concorrência, a dinamarquesa Margrethe Vestager, continuará a investigar as práticas do Luxemburgo, que parecem típicas de “ajudas estatais ao investimento” que em alguns casos foram consideradas ilegais. “A investigação será levada até ao fim”, assegurou o porta-voz de Juncker.

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