segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Prova de fogo / Trial by fire

 



EXCLUSIVO OPINIÃO

Prova de fogo

 

A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia.

 

António Barreto

27 de Janeiro de 2024, 6:26

https://www.publico.pt/2024/01/27/opiniao/opiniao/prova-fogo-2078324

 

Um grupo de pessoas de direita ou de extrema-direita entende levar a cabo uma manifestação. As intenções e o espírito são de ordem nacionalista, possivelmente xenófobas ou racistas. A manifestação está convocada para a zona do Martim Moniz e da Mouraria, isto é, bairros onde vivem comunidades de imigrantes, africanos, asiáticos e outros. Está também convocada, para a mesma hora e no mesmo local, uma contramanifestação. Entretanto, circula uma carta, assinada por uns milhares de pessoas, solicitando que a primeira manifestação seja proibida. Outras vozes, na imprensa, exigem também a proibição. O executivo da Câmara Municipal de Lisboa condenou, por unanimidade, a realização desta manifestação.

 

Uma manifestação não necessita de autorização, mas apenas de informação remetida às autoridades, a fim de, se tal for necessário, serem tomadas providências. Do ponto de vista da liberdade de expressão e do direito à manifestação, este dispositivo parece suficiente.

 

Proibir esta manifestação é um acto grave e de sérias consequências. É a melhor maneira de abrir uma temporada de violência na sociedade. Deixá-la correr sem qualquer intervenção é igualmente gesto condenável e de maus efeitos: haverá afrontamento e violência. Deixar correr as duas, manifestação e contramanifestação, é ainda pior, é quase garantir que haja confronto físico. Em poucas palavras, qualquer destas soluções é uma má resposta ao problema.

 

É verdade que a situação é delicada e perigosa, ainda por cima com eleições marcadas para breve. A “questão racial” está a ser fomentada há anos, racistas e anti-racistas procuram-se mutuamente. Por ausência de políticas de imigração e de integração, pelo aumento de imigração ilegal, pela exploração de trabalho clandestino e pelas condições de vida de milhares de imigrantes, por todas estas razões, é possível prever a iminência de afrontamentos. É possível que estejamos a viver um desses momentos que marcam uma viragem, para pior, da situação e dos acontecimentos. É alto o grau de nervosismo. É garantida a vontade de mostrar forças.

 

Grupos e partidos nacionalistas e de extrema-direita desejam um momento dramático para dizer que “isto aqui é Portugal”! Para isso, estão dispostos a tudo. Querem choques violentos para depois afirmarem que já não se pode ser português em Portugal. Do outro lado, esquerdistas, antifascistas e anti-racistas querem uma oportunidade dramática e se possível violenta para demonstrar que “Portugal é um país racista”! Ambos ficariam satisfeitos com o confronto. Ambos receberiam com delícia a proibição da manifestação.

 

A discussão pública sobre a imigração e o debate sobre as respectivas políticas estão por fazer. Estes temas são difíceis, por isso mesmo urgentes. São igualmente recheados de preconceitos, o que reforça a necessidade de esclarecimento e de elaboração de políticas. Assim é que importa que não se deixem abrir feridas nem azedar ânimos, o que só tornaria mais inútil o debate nacional. Parece, pois, essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Este e outros a seguir. Mas, evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão. Por isso não é imaginável que se proíba a liberdade e o direito de expressão e de manifestação.

 

Parece essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Mas, evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de antidemocratas. Sejam eles de extrema-direita nacionalista ou fascista, sejam revolucionários comunistas e aparentados. Todos estes querem ultrapassar a democracia e criar novo regime que a elimine. É o seu direito. São livres de assim pensar e tentar convencer a população, desde que não cometam actos ilegais, como sejam a violência contra pessoas, a segregação à força, a destruição de bens, o roubo, a agressão de qualquer espécie… Isto é, que cometam actos ilegais de qualquer espécie. Nesses casos, terão de ser detidos e julgados. Mas não podem ser atacados pelas suas opiniões.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de racistas e xenófobos. Brancos, negros ou de qualquer outra origem. Os racistas e os xenófobos são pessoas frequentemente detestáveis, não escondem a sua animosidade pela democracia e têm um orgulho infundado na superioridade da raça branca. Podem defender as suas ideias. Podem publicar as suas opiniões e até divulgá-las. Não podem é agir em consequência dessas opiniões, segregar outrem de serviços e empresas, ser violentos, expulsar de locais públicos e ofender as outras pessoas. Noutras palavras, não podem cometer crimes de ofensa, agressão ou segregação, proibidos na lei em todas as circunstâncias. Mas a liberdade de expressão é intocável.

 

A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais da democracia.

 

O direito a manifestação de todos os cidadãos, protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável. Evidentemente que se pode, por razões de segurança, condicionar esse direito de manifestação, não no essencial, mas na circunstância. Por exemplo, a hora e o local de manifestação. Este caso da manifestação nacionalista do Martim Moniz e da Mouraria parece um exemplo de escola. Evidentemente que o local traduz uma procura de afrontamento e de confronto social no que pode ser considerado uma provocação. Assim sendo, é legítimo que as autoridades nacionais e camarárias obriguem os manifestantes a alterar a circunstância (hora e local), sem renunciar ao essencial (a manifestação e a expressão de opinião). Como é igualmente legítimo que a contramanifestação seja deslocada na hora e no local. É um imperativo de ordem pública e de paz social que essas manifestações não coincidam no espaço e no tempo. Mas não se pode proibir uma nem outra.

 

O que está em causa na próxima semana é a liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser proibidas!

 

Se a democracia portuguesa não consegue viver com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática, sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.

 

O autor é colunista do PÚBLICO


EXCLUSIVE OPINION

Trial by fire

 

The idea that you can prohibit someone, whether racist, xenophobic or anti-democratic, from thinking, having an opinion and disseminating their views is a serious step backwards in democracy.

 

António Barreto

27 January 2024, 6:26

https://www.publico.pt/2024/01/27/opiniao/opiniao/prova-fogo-2078324

 

A group of right-wing or far-right people want to hold a demonstration. The intentions and spirit are nationalistic, possibly xenophobic or racist. The demonstration is called for the Martim Moniz and Mouraria areas, that is, neighborhoods where communities of immigrants, Africans, Asians and others live. A counter-demonstration is also called for the same time and place. In the meantime, a letter is circulating, signed by a few thousand people, requesting that the first demonstration be banned. Other voices in the press are also calling for a ban. The executive of the Lisbon City Council unanimously condemned the holding of this demonstration.

 

A demonstration does not require authorisation, but only information sent to the authorities so that, if necessary, action can be taken. From the point of view of freedom of expression and the right to demonstrate, this provision seems sufficient.

 

Banning this demonstration is a serious act with serious consequences. It's the best way to open a season of violence in society. To let it run without any intervention is also a reprehensible gesture and has bad effects: there will be confrontation and violence. Letting both demonstrations and counter-demonstrations run is even worse, it is almost a guarantee that there will be physical confrontation. In a nutshell, any of these solutions is a bad answer to the problem.

 

It is true that the situation is delicate and dangerous, especially with elections scheduled for the near future. The "racial question" has been fomented for years, racists and anti-racists are looking for each other. Due to the lack of immigration and integration policies, the increase in illegal immigration, the exploitation of clandestine labour and the living conditions of thousands of immigrants, for all these reasons, it is possible to foresee the imminence of hot flashes. It is possible that we are living through one of those moments that mark a turning point, for the worse, of the situation and events. The degree of nervousness is high. The willingness to show strength is guaranteed.

 

Nationalist and far-right groups and parties want a dramatic moment to say that "this is Portugal"! To do so, they are willing to do anything. They want violent clashes and then say that it can no longer be Portuguese in Portugal. On the other hand, leftists, anti-fascists and anti-racists want a dramatic and if possible violent opportunity to demonstrate that "Portugal is a racist country"! Both would be satisfied with the confrontation. Both would welcome the ban on the demonstration.

 

The public discussion on immigration and the debate on immigration policies are yet to be had. These issues are difficult and therefore urgent. They are also fraught with prejudices, which reinforces the need for clarification and policy-making. That is why it is important that wounds are not allowed to open up or tempers to be soured, which would only make the national debate more useless. It therefore seems essential to avoid the confrontation that is looming for next week. This and others to follow. But avoiding this confrontation cannot be done at the expense of the rights of the citizen. That is why it is inconceivable that freedom and the right of expression and demonstration should be prohibited.

 

It seems essential to avoid the confrontation that is shaping up for next week. But avoiding this confrontation cannot be done at the expense of the rights of the citizen

 

Democracy is the regime of everyone, including anti-democrats. Whether they are nationalist or fascist far right, whether they are communist revolutionaries and the like. They all want to overtake democracy and create a new regime to eliminate it. It's your right. They are free to think so and try to convince the population, as long as they do not commit illegal acts, such as violence against persons, forcible segregation, destruction of property, theft, aggression of any kind... That is, that they commit illegal acts of any kind. In such cases, they will have to be arrested and tried. But they cannot be attacked for their opinions.

 

Democracy is the rule of everyone, including racists and xenophobes. White, black or of any other origin. Racists and xenophobes are often detestable people, they make no secret of their animosity for democracy and have an unfounded pride in the superiority of the white race. They can defend their ideas. They can publish their opinions and even spread them. They cannot act on these opinions, segregate others from services and businesses, be violent, expel them from public places and offend other people. In other words, they cannot commit crimes of offense, assault or segregation, which are prohibited by law in all circumstances. But freedom of speech is untouchable.

 

The idea that you can prohibit someone, whether racist, xenophobic or anti-democratic, from thinking, having an opinion and disseminating their views is a serious step backwards in democracy, it is a perversion of tolerance, it is an attack on some of the fundamental rights and freedoms of democracy.

 

The right of all citizens to demonstrate, protected by law, without any authorisation, is also untouchable. Of course, for reasons of security, this right to demonstrate may be conditioned, not in the essential, but in the circumstance. For example, the time and place of the demonstration. This case of the nationalist manifestation of Martim Moniz and Mouraria seems to be an example of a school. Evidently, the place translates a search for confrontation and social confrontation in what can be considered a provocation. Therefore, it is legitimate for the national and municipal authorities to force the demonstrators to change the circumstance (time and place), without renouncing the essential (the expression and expression of opinion). It is also legitimate for the counter-demonstration to be moved at the time and place. It is an imperative of public order and social peace that these manifestations do not coincide in space and time. But one cannot be banned.

 

What is at stake next week is freedom of expression and the right to demonstrate. It is a real litmus test of Portuguese democracy. For reasons of public interest and in defence of peace and public order, demonstrations (which do not require authorisation) may be moved in space and time, as it may be required that they do not take place in the same place or at the same time. But they can't, they definitely can't be banned!

 

If Portuguese democracy cannot live with anti-democrats and racists or xenophobes, it is because it is weak, fragile and fearful. Democracy is defended by legitimate methods and democratic force, without resorting to illegitimate means. Without stepping on the risk.

 

The author is a columnist for PÚBLICO


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