EXCLUSIVO OPINIÃO
Prova
de fogo
A
ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de
pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás
na democracia.
António Barreto
27 de Janeiro de 2024, 6:26
https://www.publico.pt/2024/01/27/opiniao/opiniao/prova-fogo-2078324
Um grupo de pessoas de direita ou de
extrema-direita entende levar a cabo uma manifestação. As intenções e o
espírito são de ordem nacionalista, possivelmente xenófobas ou racistas. A
manifestação está convocada para a zona do Martim Moniz e da Mouraria, isto é,
bairros onde vivem comunidades de imigrantes, africanos, asiáticos e outros.
Está também convocada, para a mesma hora e no mesmo local, uma
contramanifestação. Entretanto, circula uma carta, assinada por uns milhares de
pessoas, solicitando que a primeira manifestação seja proibida. Outras vozes,
na imprensa, exigem também a proibição. O executivo da Câmara Municipal de
Lisboa condenou, por unanimidade, a realização desta manifestação.
Uma manifestação não necessita de autorização,
mas apenas de informação remetida às autoridades, a fim de, se tal for
necessário, serem tomadas providências. Do ponto de vista da liberdade de
expressão e do direito à manifestação, este dispositivo parece suficiente.
Proibir esta manifestação é um acto grave e de
sérias consequências. É a melhor maneira de abrir uma temporada de violência na
sociedade. Deixá-la correr sem qualquer intervenção é igualmente gesto
condenável e de maus efeitos: haverá afrontamento e violência. Deixar correr as
duas, manifestação e contramanifestação, é ainda pior, é quase garantir que
haja confronto físico. Em poucas palavras, qualquer destas soluções é uma má
resposta ao problema.
É verdade que a situação é delicada e
perigosa, ainda por cima com eleições marcadas para breve. A “questão racial”
está a ser fomentada há anos, racistas e anti-racistas procuram-se mutuamente.
Por ausência de políticas de imigração e de integração, pelo aumento de
imigração ilegal, pela exploração de trabalho clandestino e pelas condições de
vida de milhares de imigrantes, por todas estas razões, é possível prever a
iminência de afrontamentos. É possível que estejamos a viver um desses momentos
que marcam uma viragem, para pior, da situação e dos acontecimentos. É alto o
grau de nervosismo. É garantida a vontade de mostrar forças.
Grupos e partidos nacionalistas e de
extrema-direita desejam um momento dramático para dizer que “isto aqui é
Portugal”! Para isso, estão dispostos a tudo. Querem choques violentos para
depois afirmarem que já não se pode ser português em Portugal. Do outro lado,
esquerdistas, antifascistas e anti-racistas querem uma oportunidade dramática e
se possível violenta para demonstrar que “Portugal é um país racista”! Ambos
ficariam satisfeitos com o confronto. Ambos receberiam com delícia a proibição
da manifestação.
A discussão pública sobre a imigração e o
debate sobre as respectivas políticas estão por fazer. Estes temas são
difíceis, por isso mesmo urgentes. São igualmente recheados de preconceitos, o
que reforça a necessidade de esclarecimento e de elaboração de políticas. Assim
é que importa que não se deixem abrir feridas nem azedar ânimos, o que só
tornaria mais inútil o debate nacional. Parece, pois, essencial evitar o
confronto que se desenha para a próxima semana. Este e outros a seguir. Mas,
evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão.
Por isso não é imaginável que se proíba a liberdade e o direito de expressão e
de manifestação.
Parece
essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Mas, evitar
esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão
A democracia é o regime de todos, incluindo de
antidemocratas. Sejam eles de extrema-direita nacionalista ou fascista, sejam
revolucionários comunistas e aparentados. Todos estes querem ultrapassar a
democracia e criar novo regime que a elimine. É o seu direito. São livres de
assim pensar e tentar convencer a população, desde que não cometam actos
ilegais, como sejam a violência contra pessoas, a segregação à força, a
destruição de bens, o roubo, a agressão de qualquer espécie… Isto é, que
cometam actos ilegais de qualquer espécie. Nesses casos, terão de ser detidos e
julgados. Mas não podem ser atacados pelas suas opiniões.
A democracia é o regime de todos, incluindo de
racistas e xenófobos. Brancos, negros ou de qualquer outra origem. Os racistas
e os xenófobos são pessoas frequentemente detestáveis, não escondem a sua
animosidade pela democracia e têm um orgulho infundado na superioridade da raça
branca. Podem defender as suas ideias. Podem publicar as suas opiniões e até
divulgá-las. Não podem é agir em consequência dessas opiniões, segregar outrem
de serviços e empresas, ser violentos, expulsar de locais públicos e ofender as
outras pessoas. Noutras palavras, não podem cometer crimes de ofensa, agressão
ou segregação, proibidos na lei em todas as circunstâncias. Mas a liberdade de
expressão é intocável.
A ideia de que se pode proibir alguém,
racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus
pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da
tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais
da democracia.
O direito a manifestação de todos os cidadãos,
protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável.
Evidentemente que se pode, por razões de segurança, condicionar esse direito de
manifestação, não no essencial, mas na circunstância. Por exemplo, a hora e o
local de manifestação. Este caso da manifestação nacionalista do Martim Moniz e
da Mouraria parece um exemplo de escola. Evidentemente que o local traduz uma
procura de afrontamento e de confronto social no que pode ser considerado uma provocação.
Assim sendo, é legítimo que as autoridades nacionais e camarárias obriguem os
manifestantes a alterar a circunstância (hora e local), sem renunciar ao
essencial (a manifestação e a expressão de opinião). Como é igualmente legítimo
que a contramanifestação seja deslocada na hora e no local. É um imperativo de
ordem pública e de paz social que essas manifestações não coincidam no espaço e
no tempo. Mas não se pode proibir uma nem outra.
O que está em causa na próxima semana é a
liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da
democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da
ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser
deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no
mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser
proibidas!
Se a democracia portuguesa não consegue viver
com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e
medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática,
sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.
O autor é colunista do PÚBLICO
EXCLUSIVE
OPINION
Trial by fire
The idea that you can prohibit someone, whether
racist, xenophobic or anti-democratic, from thinking, having an opinion and
disseminating their views is a serious step backwards in democracy.
António Barreto
27 January 2024, 6:26
https://www.publico.pt/2024/01/27/opiniao/opiniao/prova-fogo-2078324
A group of
right-wing or far-right people want to hold a demonstration. The intentions and
spirit are nationalistic, possibly xenophobic or racist. The demonstration is
called for the Martim Moniz and Mouraria areas, that is, neighborhoods where
communities of immigrants, Africans, Asians and others live. A
counter-demonstration is also called for the same time and place. In the
meantime, a letter is circulating, signed by a few thousand people, requesting
that the first demonstration be banned. Other voices in the press are also
calling for a ban. The executive of the Lisbon City Council unanimously
condemned the holding of this demonstration.
A
demonstration does not require authorisation, but only information sent to the
authorities so that, if necessary, action can be taken. From the point of view
of freedom of expression and the right to demonstrate, this provision seems
sufficient.
Banning
this demonstration is a serious act with serious consequences. It's the best
way to open a season of violence in society. To let it run without any
intervention is also a reprehensible gesture and has bad effects: there will be
confrontation and violence. Letting both demonstrations and
counter-demonstrations run is even worse, it is almost a guarantee that there
will be physical confrontation. In a nutshell, any of these solutions is a bad
answer to the problem.
It is true
that the situation is delicate and dangerous, especially with elections
scheduled for the near future. The "racial question" has been
fomented for years, racists and anti-racists are looking for each other. Due to
the lack of immigration and integration policies, the increase in illegal
immigration, the exploitation of clandestine labour and the living conditions
of thousands of immigrants, for all these reasons, it is possible to foresee
the imminence of hot flashes. It is possible that we are living through one of
those moments that mark a turning point, for the worse, of the situation and
events. The degree of nervousness is high. The willingness to show strength is
guaranteed.
Nationalist
and far-right groups and parties want a dramatic moment to say that "this
is Portugal"! To do so, they are willing to do anything. They want violent
clashes and then say that it can no longer be Portuguese in Portugal. On the
other hand, leftists, anti-fascists and anti-racists want a dramatic and if
possible violent opportunity to demonstrate that "Portugal is a racist
country"! Both would be satisfied with the confrontation. Both would
welcome the ban on the demonstration.
The public
discussion on immigration and the debate on immigration policies are yet to be
had. These issues are difficult and therefore urgent. They are also fraught
with prejudices, which reinforces the need for clarification and policy-making.
That is why it is important that wounds are not allowed to open up or tempers
to be soured, which would only make the national debate more useless. It
therefore seems essential to avoid the confrontation that is looming for next
week. This and others to follow. But avoiding this confrontation cannot be done
at the expense of the rights of the citizen. That is why it is inconceivable
that freedom and the right of expression and demonstration should be
prohibited.
It seems essential to avoid the confrontation that is
shaping up for next week. But avoiding this confrontation cannot be done at the
expense of the rights of the citizen
Democracy
is the regime of everyone, including anti-democrats. Whether they are
nationalist or fascist far right, whether they are communist revolutionaries
and the like. They all want to overtake democracy and create a new regime to
eliminate it. It's your right. They are free to think so and try to convince
the population, as long as they do not commit illegal acts, such as violence
against persons, forcible segregation, destruction of property, theft,
aggression of any kind... That is, that they commit illegal acts of any kind.
In such cases, they will have to be arrested and tried. But they cannot be
attacked for their opinions.
Democracy
is the rule of everyone, including racists and xenophobes. White, black or of
any other origin. Racists and xenophobes are often detestable people, they make
no secret of their animosity for democracy and have an unfounded pride in the
superiority of the white race. They can defend their ideas. They can publish
their opinions and even spread them. They cannot act on these opinions,
segregate others from services and businesses, be violent, expel them from
public places and offend other people. In other words, they cannot commit
crimes of offense, assault or segregation, which are prohibited by law in all
circumstances. But freedom of speech is untouchable.
The idea
that you can prohibit someone, whether racist, xenophobic or anti-democratic,
from thinking, having an opinion and disseminating their views is a serious
step backwards in democracy, it is a perversion of tolerance, it is an attack
on some of the fundamental rights and freedoms of democracy.
The right
of all citizens to demonstrate, protected by law, without any authorisation, is
also untouchable. Of course, for reasons of security, this right to demonstrate
may be conditioned, not in the essential, but in the circumstance. For example,
the time and place of the demonstration. This case of the nationalist manifestation
of Martim Moniz and Mouraria seems to be an example of a school. Evidently, the
place translates a search for confrontation and social confrontation in what
can be considered a provocation. Therefore, it is legitimate for the national
and municipal authorities to force the demonstrators to change the circumstance
(time and place), without renouncing the essential (the expression and
expression of opinion). It is also legitimate for the counter-demonstration to
be moved at the time and place. It is an imperative of public order and social
peace that these manifestations do not coincide in space and time. But one
cannot be banned.
What is at
stake next week is freedom of expression and the right to demonstrate. It is a
real litmus test of Portuguese democracy. For reasons of public interest and in
defence of peace and public order, demonstrations (which do not require
authorisation) may be moved in space and time, as it may be required that they
do not take place in the same place or at the same time. But they can't, they
definitely can't be banned!
If
Portuguese democracy cannot live with anti-democrats and racists or xenophobes,
it is because it is weak, fragile and fearful. Democracy is defended by
legitimate methods and democratic force, without resorting to illegitimate
means. Without stepping on the risk.
The author
is a columnist for PÚBLICO
Sem comentários:
Enviar um comentário