OPINIÃO
A
triste sina das lojas históricas
Em
2023 fecharam 16 lojas emblemáticas de Lisboa, o pior registo dos últimos 30
anos. O que explica esta contabilidade? O que é preciso fazer para a travar a
morte de lojas importantes para a cidade?
Paulo Ferrero
28 de Janeiro de 2024, 7:06
https://www.publico.pt/2024/01/28/local/noticia/triste-sina-lojas-historicas-2077954
A crueza dos números fala por si e ilustra bem
o título acima: só em Lisboa, e vou cingir-me à minha cidade e aos meus
cálculos, fecharam perto de 100 lojas históricas desde que estamos no século
XXI, daquelas mesmo históricas, que todos conhecemos, por sermos seus clientes
como os nossos pais e avós o foram, por as admirarmos pela sua beleza e
carácter irrepetíveis, ou, simplesmente, porque sempre foram as nossas lojas de
bairro.
Com efeito, é preciso recuarmos aos idos de 70
e 80 para que os números deste século não sejam um recorde absoluto, e mesmo aí
é preciso não esquecer que só com o incêndio do Chiado, em 1988, houve uma
razia de lojas históricas nas pouco mais de duas ruas afectadas — R. Nova do
Almada e Rua do Carmo —, vendo-nos espoliados de uma assentada da Pastelaria
Ferrari, Casa Batalha, José Alexandre e por aí fora.
Nem vou referir os já longínquos
desaparecimentos, pontuais, uns, em resultado da lei da vida, outros, de lojas
que foram autênticos “templos” no seu ramo: a Kermesse de Paris ou a Biagio
Flora (brinquedos); a Manteigaria Londrina e as pastelarias Bijou, Marquês e
Roma; e os cafés Monumental, Monte Carlo e Colombo; a alfaiataria Pestana &
Brito; a boutique Rampa; ou a Socidel, das raquetes e demais artigos
desportivos.
Facto indesmentível: o ano de 2023, em que
fecharam 16 lojas emblemáticas, foi o pior dos últimos 30 anos. Já 2018 tinha
sido péssimo, com o fecho de 13 lojas conhecidas. Um aumento exponencial, se
pensarmos que no resto do presente século os números tinham sido muito menos
impactantes, havendo mesmo anos em que não encerrou nenhuma loja histórica:
2000 (1 fecho), 2003 (1), 2006 (2), 2007 (2), 2009 (4), 2010 (3), 2011 (3),
2012 (5), 2013 (3), 2014 (3), 2015 (5), 2016 (5), 2017 (4), 2019 (4), 2020 (2)
e 2022 (7).
Dir-me-ão, e bem, que as lojas têm, como tudo
o resto, um ciclo de vida, que nada é eterno e o que é bom dura pouco. E que
quando determinado lojista morre e os seus herdeiros não querem prosseguir o
negócio, pouco ou nada haverá a fazer para manter a actividade e até a loja. Ou
que, falindo uma loja, é raro quem lhe pegue e mantenha o ramo. Será. E que as
cidades são mutáveis, e acima da lei há a lei do mercado, blá, blá.
É verdade que cada caso de encerramento, que
muitos choram e nunca lá entraram, é por si próprio um caso, e que as
justificativas são as mais variadas. Mas há muitas explicações mal explicadas,
e outras em que há má e não boa-fé, ou em que o incumprimento da lei e da
regulamentação em vigor foi claro e ninguém puniu quem incumpriu. Outros casos
há onde, simplesmente, donos e empregados nada fizeram (nem ninguém os ajudou a
fazer) para manter clientes, atrair novos, quanto mais recuperarem os que
deixaram de o ser.
Há de tudo um pouco, mas há alguma coisa que
quem de direito devia fazer e não faz: regular o mercado. Porque só com isso
teria salvado a maior parte das lojas históricas que têm vindo a morrer na
autêntica hecatombe da última década, e evitar-se-ia esta contabilidade
funerária.
Vejamos as prioridades.
1.
Urbanismo comercial
Agir sobre ele, ou melhor, criá-lo, porque na
realidade o que existe é uma absoluta falta de estratégia e planeamento em
termos de urbanismo comercial, que grassa pelo país há décadas.
Aí, há que garantir um leque efectivo de
apoios a quem quer continuar com a porta aberta e a honrar quem lhe deixou o
espaço: apoios financeiros para obras de conservação e restauro, mas também na
formação, naquilo a que parece óbvio que ninguém liga, mas que é decisivo para
a continuidade da loja: o atendimento, a arrumação da loja, o vitrinismo, a
promoção, a embalagem, a origem e a garantia do produto.
Os antigos programas Urbcom, Procom ou Modcom,
também eles munidos dos “milhões da CEE”, podiam ter servido para isso, mas não
serviram, e agora estamos como estamos — lembro-me, por exemplo, das belas
farmácias antigas que, ao abrigo de uma “informatização” da gestão, foram
completamente estropiadas, sem apelo nem agravo, restando hoje muito poucas
intactas.
Há que terminar com o famigerado
“licenciamento zero”, que mais não é do que receita extraordinária para as
autarquias. Travar a fundo a autorização de mudança de uso para os espaços
comerciais históricos. É tempo também de o Governo e as autarquias deixarem de
ignorar a pandemia de lojas de ímanes, atacando onde devem atacar, na sua
génese altamente duvidosa, senão mesmo criminosa — só neste “upgrade”
terceiro-mundista, Lisboa perdeu dezenas de lojas históricas: Casa dos
Carimbos, ourivesarias Catita, Barreto & Gonçalves, etc., etc..
Permitam-me este aparte: como é possível que
com tanto empresário têxtil que existe por aí, criador de moda galardoado e
artista internacional do ramo, nunca se tenha constituído um cluster das
retrosarias da Rua da Conceição? A esta hora, em vez das três ou quatro
resistentes de agora (a Adriano Coelho está por um fio) teríamos a quinzena que
por ali existiu até há uns 15 anos. Cooperação é termo que continua a não
existir em Portugal, e nem Câmara Municipal de Lisboa (CML), Estado ou
associações do sector sabem (querem?) mediar seja o que for.
Como é possível que a cidade esteja neste
momento a prescindir de espaços notabilíssimos (e por isso classificados de
Interesse Público e Municipal) como a Cervejaria Solmar, o Restaurante Tavares
ou a Ourivesaria Barbosa Esteves, abandonados há anos? Que continuam fechados,
a ganhar pó ou a perder sabe-se lá o quê? Não há ninguém do ramo da
restauração, nenhum chef que pegue na maravilhosa cervejaria ou no luxuoso
salão ao Chiado, nem nenhum grupo de joalheiros da nova vaga que dê bom uso
àquela jóia modernista da Rua da Prata?
Onde param a Escola de Comércio, as escolas e
associações sectoriais? Enfim…
2.
Reabilitação urbana
Esta não pode ser usada como instrumento de
extermínio de lojas históricas! Fazendo “gato-sapato” do Lojas Com História
(LCH), um programa de apoio às lojas históricas que foi lançado em 2015 pela
autarquia e que foi uma autêntica pedrada no “laissez-faire, laissez-passer” em
que costumávamos estar, razão maior para a avalanche de lojas fechadas
verificada nas últimas décadas do século passado e início do presente. Uma
corrida contra o tempo, na verdade, contra o prejuízo.
Exemplo dessa instrumentalização da
“reabilitação urbana” é quando um promotor do projecto invoca a saída da loja
histórica do edifício (em regra, mínimo duas lojas por prédio, muito mais se
for para hotel) como indispensável para que a reabilitação avance. A CML devia
contrapor-lhe o seguinte: “Só há reabilitação se estiver garantida a manutenção
da loja classificada in situ (classificada no LCH ou pela Carta Municipal do
Património, porque o PDM assim o obrigaria)”. Convenhamos que a desculpa de
deslocalização temporária da loja até que as obras se concluam, em que o que
regressa é sempre um fake do que lá estava antes, é uma desculpa de mau
pagador, porque há uma coisa chamada cofragem, que qualquer empresa de
engenharia sabe e pode fazer, evitando-se assim a falsificação patrimonial e
histórica.
O que acontece sobremaneira é que nem sequer
essa deslocalização chega a ser acordada: o lojista negoceia a melhor
indemnização possível e segue à sua vida; que se danem a cidade, a história e a
afectividade. Sendo LCH, melhor, o preço sobe, o projecto torna-se “barriga de
aluguer”, como já aconteceu por diversas vezes, infelizmente.
Outra praga que importa travar ou reverter,
nos casos já verificados, é o licenciamento de vãos dos pisos térreos nos
edifícios que não os têm (um mal que pegou de raiz na Baixa Pombalina, a tal
que é “candidata à UNESCO”, mas também noutros bairros históricos como a Bica
ou a Estrela). Como é possível que isso continue a verificar-se?
3.
Arrendamento urbano
A Assembleia da República haveria de legislar
em 2016 quanto ao regime jurídico do arrendamento urbano, garantindo a todas as
lojas que fossem, ou viessem a ser, classificadas pelas autarquias do país como
“lojas com história”, uma protecção legal que lhes evitaria aumentos
exponenciais da renda ou despejos até 2022, primeiro, 2027, depois.
O problema, como se viu recentemente, é que
houve lojas que ou não souberam invocar junto do senhorio o estatuto LCH, ou
assinaram entretanto novos contratos de arrendamento, ficando a partir daí à
mercê da fúria especulativa.
Argumenta-se, ainda, que uma reavaliação do
imóvel pode caucionar o aumento exponencial de renda que o regime do LCH não
permite. Desconheço se é verdade, mas custa a crer que o seja.
De qualquer forma, que a futura Assembleia da
República (AR) proceda a uma nova alteração do regime para as lojas com
história, por forma a dificultar, na medida do possível, esses subterfúgios
legais e contradições várias, sob pena de o regime criado em 2017 ser letra
morta.
4.
Lojas Com História
Estou desde a primeira hora no conselho
consultivo do Lojas Com História, e fui dos muitos que contribuíram, ainda que
de forma indirecta (Círculo das Lojas de Comércio e Carácter e Tradição de
Lisboa e petição à AR), para o seu nascimento, e por isso assisti ao imenso
carinho e empenho dos sucessivos presidentes de CML e vereadores do pelouro, e
da equipa do programa, para com o projecto, as lojas classificadas, e para que
tudo desse certo.
Não deu. Corrijo: não está a dar. E se
continuarmos como até aqui, será um fracasso. A palavra é forte, mas não vejo
outra. Um programa que perde 25 lojas emblemáticas entre 2015 a 2023, quando se
supunha serem lojas garantidas até 2027, mínimo, é um flop. De que serve serem
classificadas 50, 100 novas lojas, de inevitável bitola inferior, se perdemos
25 das mais emblemáticas?
O LCH é, em primeiro lugar, uma distinção, um
galardão. Com essa distinção pretende-se puxar pela auto-estima do dono e dos
funcionários da loja, motivá-los, incutir-lhe maior orgulho nela, para que tudo
façam por ela e evitem que feche portas. Por isso se afixa uma placa LCH na
fachada, a loja e os seus aparecem em livros e revistas, em programas de rádio
e de TV, entram em itinerários culturais e turísticos.
Aplaudi efusivamente a intervenção directa do
então vice-presidente da CML, em 2017, que garantiu a continuidade da Tabacaria
Martins. O mesmo fiz quando os responsáveis da CML intervieram oficiosamente no
salvamento da Ginjinha Sem Rival, em 2014. Mas soube e sabe a pouco.
A passividade da CML relativamente aos casos
recentíssimos das sapatarias Deusa ou Lord, da André Ópticas, Óptica do Chiado,
Ramos & Silva, Casa de Sementes Soares & Rebelo, Casa Achilles ou
Ourivesaria Araújos, por exemplo, lembra, infelizmente, a postura da CML em
2009, perante o fecho da Vitorino Silva, o último correeiro da Rua dos
Correeiros, em que deixou que um hotel, de qualidade média, deitasse fora uma
loja-símbolo como aquela, só porque queria estender o futuro átrio do hotel
para o espaço da loja. Triste e ridículo, desde logo por não se saber que uma
loja histórica só beneficia um hotel.
Por isso, quando a cidade está em risco de
ficar efectivamente mais pobre porque estão em causa lojas incontornáveis, há
que decidir rapidamente e agir com determinação e músculo. E aqui entram em
jogo a mediação, mas também um mecanismo que está ao dispor do Estado e das
autarquias, mas raramente ou nunca é usado: a compra ou a expropriação da loja.
Defendo que nos casos em que as lojas em
perigo são demasiado importantes para a cidade — pela sua longevidade, pela sua
singularidade, pela valia arquitectónica, decorativa e histórica, pela relação
de afectividade com os lisboetas, a CML (no caso presente) pode invocar o
interesse público e tomá-las para si, arrendando-as a terceiros, mantendo a
actividade.
Actualmente, apenas já só temos meia dúzia que
justifiquem expropriação: a Caza das Vellas Loreto, a Livraria Ferin (que
fechou em Dezembro), Luvaria Ulisses, Ourivesaria Aliança, Retrosaria Bijou,
Tabacaria Mónaco. Por isso, não será um investimento tão grande assim. Nos
casos em que não se justifique a expropriação, a CML poderá sempre compensar o
senhorio pelo aumento de renda que a loja classificada como LCH não consegue
suportar, apesar da protecção legal, e que o senhorio exige, pagando a este último
o diferencial da renda.
A CML faria toda a diferença se o fizesse, por
uma vez que fosse. E fizesse bom uso da sua competência para agir em conjunto
com as associações comerciais e escolas profissionais, por forma a possuir uma
“bolsa de empreendedores” nos casos em que a actividade, o métier, estiver sem
continuadores.
Ao programa LCH cabe também andar na rua,
passar periodicamente nas lojas, falar com quem lá está, sobre a saúde da loja,
sobre as eventuais ameaças e as intenções dos senhorios. É imperativo ao LCH
antecipar-se à entrada de projectos urbanísticos ameaçadores, tão importante
quanto o conselho, o músculo jurídico, quando o projecto já estiver em
apreciação.
E, por favor, agora que está para breve a
colocação em discussão pública do projecto de novo Regulamento do LCH, alterem
os critérios de atribuição do estatuto LCH, de modo a que, como disse, e bem, o
anterior presidente da CML, quando alguém entre numa LCH a reconheça
imediatamente enquanto tal. Ou seja, a componente material da loja
(arquitectura, decoração interior, fachada) tem que ter um peso
substancialmente maior na fórmula que atribui a classificação. Não podemos ter
lojas classificadas que têm paredes de pladur, tectos falsos com focos de luz,
pisos de pedra de lioz brilhante, montras ou portas de alumínio; lojas que são
LCH por apenas terem mais de 25 anos e património imaterial, porque, pelo andar
da carruagem, qualquer dia temos o primeiro McDonald’s de Lisboa como LCH.
E não confundamos Lojas com História com lojas
antigas, velhinhas ou de bairro. Pode haver perfeitamente um outro programa de
apoio ao comércio de bairro, parecido com o LCH, talvez até gerido pelas juntas
de freguesia, mas não confundamos os patamares.
As lojas históricas são cada vez menos, mas é
possível salvar as que restam. A responsabilidade é de todos, a começar pela
dos lojistas.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2024
Presidente do Fórum Cidadania Lx
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