domingo, 29 de outubro de 2023

No círculo do Inferno / In the circle of Hell

 



No círculo do Inferno

 

O massacre de 7 de Outubro não tem justificação nem desculpa. É um acto de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado.

 

António Barreto

28 de Outubro de 2023, 0:15

https://www.publico.pt/2023/10/28/opiniao/opiniao/circulo-inferno-2068305

 

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, teve uma frase infeliz, pouco cuidadosa, susceptível de interpretações contraditórias, erradas ou equívocas. A não ser, evidentemente, que ele quisesse dizer exactamente o que disse. Se for esta última hipótese, o assunto é mais grave e o tema mais importante do que um mero deslize de linguagem. Com efeito, tal quereria dizer que o Hamas tem explicação e motivos para fazer o que faz. Ora, quem tem explicação e motivos tem, sempre ou frequentemente, desculpa.

 

O massacre de 7 de Outubro teria assim as suas raízes nas decisões das Nações Unidas de 1947, na opressão israelita, na desigualdade social, nos colonatos e na pobreza do povo palestiniano. O que quer dizer que, além do Hamas, também o Hezbollah, a Jihad, a Al-Qaeda, o Irão e a Síria têm desculpa e justificação. O que significa que também a Alemanha nazi, os Estados Unidos, Israel, a Rússia, o Congo e o Ruanda têm explicação e justificação. O que se aplicaria ainda a Hitler, Mengele, Eichmann, Estaline, Mao Tsé Tung e Pol Pot. O que nos ajuda a perceber as causas do comportamento de Al Capone, Pablo Escobar e Jack, o Estripador. De acordo com o argumento inicial, toda esta gente, todos estes povos e os respectivos governos foram sempre meros agentes históricos, veículos sociais, protagonistas involuntários, sem responsabilidades pessoais, sem culpas de partido ou de grupo, sem livre escolha dos seus actos. Todos os comportamentos sociais e políticos teriam assim justificação. O que é diferente de explicação. O que diminui a culpa e a autoria. E reduz as responsabilidades.

 

Evidentemente, não deveria ser necessário dizê-lo, tudo tem as suas origens e as suas causas. Como tudo tem o seu contexto e a sua circunstância. Cada momento da história de um povo tem as suas grandezas e as suas misérias. Mas nada permite que as glórias e os sofrimentos passados justifiquem e desculpem os crimes de hoje, as agressões, os massacres e as violações do direito internacional. O massacre de 7 de Outubro não tem justificação nem desculpa. É um acto de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado. A responsabilidade não é de 100 anos de pobreza palestiniana, nem de 50 de colonatos. É, sim, das escolhas e das decisões dos dirigentes do Hamas e dos seus aliados.

 

Compreende-se a reacção de Israel, que pretende justamente liquidar um movimento político que proclama a destruição de um Estado e de um povo. Mas, pela mesma ordem de ideias, não se compreende que esse mesmo Estado recorra a meios condenados pelo direito internacional, tal como o bombardeamento sistemático de populações. Não por causa do passado, nem da história, nem do contexto. Mas simplesmente por causa da humanidade e da vida. Nem um nem outro se justificam. A pobreza não desculpa o 7 de Outubro. Como os pogroms não perdoam o bombardeamento.

 

Globalmente, no universo das rivalidades, no panorama das relações internacionais, estou do lado de Israel. Não porque esteja sempre de acordo com os seus governos. Não porque aceite tudo quanto fazem. Também não por tudo o que são e defendem. Nem por serem brancos. Nem ainda por terem sido vítimas de perseguições, de expulsões e de massacres. Mas apenas e tão-só porque, tudo somado, Israel está mais do lado da liberdade e da democracia do que os outros países seus rivais, adversários e inimigos. Em caso de divergência e luta, não é a cor da pele, a religião, a tradição, a etnia e a língua que me fazem tomar partido ou simpatizar com uns, em detrimento de outros. É o lado da liberdade e da democracia. Em caso de conflito, nenhum critério, pele, língua, etnia ou religião, me faz tomar partido por um qualquer país, em qualquer parte do mundo, Rússia, China, América ou África. Mas a democracia, sim.

 

Mais do que uma moda, é um vício do pensamento. Tudo justificar pelo contexto, tudo explicar pelas origens e pelas causas, tudo desculpar pelo sofrimento de alguém

 

Não tenho dúvidas: em última instância, Israel fará sempre mais pela democracia do que o Hamas, o Hezbollah e os governos do Irão, da Síria ou da Rússia. Como também não tenho dúvidas em condenar a política do governo de Israel e de Netanyahu relativamente aos colonatos, ao reconhecimento do Estado da Palestina e ao embargo contra Gaza. Mesmo assim, estas políticas não são argumento suficiente para ter uma qualquer simpatia por quem quer destruir o Estado de Israel. E nem mesmo a compaixão pela sorte do povo da Palestina me faz acreditar no Hamas e desejar a extinção de Israel.

 

Mais do que uma moda, é um vício do pensamento. Tudo justificar pelo contexto, tudo explicar pelas origens e pelas causas, tudo desculpar pelo sofrimento de alguém. O assassino é filho de alcoólico, os seus actos necessitam ser compreendidos pela condição paterna. O ladrão cresceu na barraca, os seus gestos compreendem-se pela origem social. O desordeiro nasceu numa colónia, a sua conduta tem essa explicação. O traficante de droga é filho de pais divorciados, a falta de amor explica as suas acções. O violador é de uma família de capitalistas, os seus procedimentos têm essa justificação. O activista viveu sob domínio, pode cometer actos de terrorismo.

 

Vítimas da colonização, da prisão dos pais, da etnia de origem, da condição da família, dos bairros de nascimento, da falta ou do excesso de religião dos progenitores, tudo é invocado para explicar e justificar. As escolhas de cada um, indivíduo, grupo, comunidade ou povo, têm sempre explicação e justificação. O crime é filho da miséria, da pobreza e da submissão. A violência é o resultado directo da desigualdade. Um povo historicamente perseguido tem o direito de perseguir outros. Uma comunidade submissa tem autoridade para destruir outras. Noutras palavras ainda: as opções de cada um não são as opções de cada um, são o resultado das origens. Os gestos dos indivíduos, das classes e dos povos não são as suas decisões livres, mas tão-só os resultados dos processos históricos, das condições sociais e dos percursos de vida. Este é o reino da indiferença, da ausência de lei, da incerteza da responsabilidade e da marginalização dos indivíduos.

 

É também o reino da neutralidade, doença da humanidade, tal como diria Dante: é o local mais quente do Inferno, mais insuportável, reservado para os neutros, para os que escolheram a neutralidade em tempos de crise e de confronto. Reservado também para os obcecados com o compromisso. Não necessariamente o equilíbrio razoável, mas o compromisso entre tudo e todos. Ora, não há equidistância entre paz e guerra. Entre democracia e ditadura. Entre liberdade e totalitarismo.

 

O autor é colunista do PÚBLICO


In the circle of Hell

 

The massacre of 7 October has no justification or excuse. It is an act of pure aggression and killing. As such it has to be judged.

 

 António Barreto

28 October 2023, 0:15

https://www.publico.pt/2023/10/28/opiniao/opiniao/circulo-inferno-2068305

 

 The Secretary-General of the United Nations, António Guterres, had an unfortunate, careless phrase that is susceptible to contradictory, wrong or equivocal interpretations. Unless, of course, he meant exactly what he said. If the latter is the case, the matter is more serious and the issue more important than a mere slip of language. In effect, this would mean that Hamas has an explanation and reasons for doing what it does. Now, those who have an explanation and motives always or often have an excuse.

 

 The massacre of 7 October would thus have its roots in the decisions of the United Nations of 1947, Israeli oppression, social inequality, settlements and the poverty of the Palestinian people. This means that, in addition to Hamas, Hezbollah, Jihad, Al-Qaeda, Iran and Syria also have excuses and justifications. This means that Nazi Germany, the United States, Israel, Russia, Congo and Rwanda also have an explanation and justification. This would also apply to Hitler, Mengele, Eichmann, Stalin, Mao Zedong and Pol Pot. Which helps us understand the causes of the behavior of Al Capone, Pablo Escobar, and Jack the Ripper. According to the initial argument, all these peoples, all these peoples and their governments have always been mere historical agents, social vehicles, involuntary protagonists, without personal responsibility, without party or group guilt, without free choice of their actions. All social and political behaviour would thus be justified. Which is different from explanation. What decreases guilt is authorship. And it reduces responsibilities.

 

 Of course, it should not go without saying, everything has its origins and its causes. As everything has its context and its circumstance. Every moment in the history of a people has its greatness and its miseries. But nothing allows past glories and sufferings to justify and excuse today's crimes, aggressions, massacres and violations of international law. The massacre of 7 October has no justification or excuse. It is an act of pure aggression and killing. As such it has to be judged. The responsibility is not for 100 years of Palestinian poverty, nor for 50 years of settlements. Rather, it is the choices and decisions of the leaders of Hamas and their allies.

 

 We can understand Israel's reaction, which rightly seeks to liquidate a political movement that proclaims the destruction of a state and a people. By the same token, however, it is incomprehensible that this same state should resort to means condemned by international law, such as the systematic bombardment of populations. Not because of the past, not because of history, not because of context. But simply for the sake of humanity and life. Neither one nor the other is justified. Poverty does not excuse October 7. As pogroms do not forgive bombing.

 

 Globally, in the universe of rivalries, in the panorama of international relations, I am on Israel's side. Not because you always agree with your governments. Not because I accept everything they do. Nor for all that they are and stand for. Not even because they are white. Nor because they have been victims of persecution, expulsion and massacres. But only because, all in all, Israel is more on the side of freedom and democracy than its other rivals, adversaries and enemies. In case of disagreement and struggle, it is not skin color, religion, tradition, ethnicity and language that make me take sides or sympathize with some to the detriment of others. It is the side of freedom and democracy. In the event of a conflict, no criterion, skin, language, ethnicity or religion makes me take sides for any country, anywhere in the world, Russia, China, America or Africa. But democracy does.

 

 More than a fad, it is an addiction to thought. Everything is justified by the context, everything is explained by the origins and causes, everything is apologizing for someone's suffering

 

 I have no doubt: in the final analysis, Israel will always do more for democracy than Hamas, Hezbollah and the governments of Iran, Syria or Russia. Nor do I have any doubts in condemning the policy of the Israeli Government and Netanyahu with regard to settlements, the recognition of the State of Palestine and the embargo against Gaza. Even so, these policies are not enough of an argument to have any sympathy for those who want to destroy the State of Israel. And not even compassion for the fate of the people of Palestine makes me believe in Hamas and wish for the extinction of Israel.

 

 More than a fad, it is an addiction to thought. Everything is justified by the context, everything is explained by the origins and causes, everything is to be excused by someone's suffering. The murderer is the son of an alcoholic, his actions need to be understood by the paternal condition. The thief grew up in the tent, his gestures are understood by his social origin. The troublemaker was born in a colony, and his conduct has that explanation. The drug dealer is the son of divorced parents, the lack of love explains his actions. The rapist is from a family of capitalists, his actions are justified by this. The activist who has lived under domination, he can commit acts of terrorism.

 

 Victims of colonization, of the imprisonment of their parents, of the ethnicity of origin, of the condition of the family, of the neighborhoods of birth, of the lack or excess of religion of the parents, everything is invoked to explain and justify. The choices of each individual, group, community or people, always have explanation and justification. Crime is the child of misery, poverty and submission. Violence is the direct result of inequality. A historically persecuted people has the right to persecute others. A submissive community has the authority to destroy others. In other words: everyone's options are not their own choices, they are the result of origins. The actions of individuals, classes and peoples are not their free decisions, but only the results of historical processes, social conditions and life paths. This is the realm of indifference, lawlessness, the uncertainty of responsibility, and the marginalization of individuals.

 

 It is also the realm of neutrality, the disease of humanity, as Dante would say: it is the hottest place in Hell, the most unbearable, reserved for neutrals, for those who have chosen neutrality in times of crisis and confrontation. Reserved also for those obsessed with commitment. Not necessarily the reasonable balance, but the compromise between everything and everyone. Now, there is no equidistance between peace and war. Between democracy and dictatorship. Between freedom and totalitarianism.

 

 The author is a columnist for PÚBLICO


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