quinta-feira, 16 de março de 2023

A Ericeira vive um dilema: a sua “alma” vai sobreviver à “invasão” estrangeira?

 




A Ericeira vive um dilema: a sua “alma” vai sobreviver à “invasão” estrangeira?

 

Que impacto está a ter o acentuado crescimento do turismo e dos novos moradores estrangeiros numa pequena vila atlântica quase colada a Lisboa que nunca teve tantos expats a nela quererem viver?

 

Luciano Alvarez (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotos)

10 de Março de 2023, 21:00

https://www.publico.pt/2023/03/10/local/reportagem/ericeira-vive-dilema-alma-vai-sobreviver-invasao-estrangeira-2041938

 

Os números do turismo em Portugal voltaram a bater recordes no ano passado e já em Janeiro deste ano. Quer nas grandes cidades, quer em pequenas vilas, especialmente nas que têm vista para o Atlântico. É nestas microlocalidades que o impacto dos visitantes estrangeiros é maior.

 

A Ericeira, no concelho de Mafra e a cerca de 40 minutos de Lisboa graças à ligação por auto-estrada, é um desses exemplos. Nunca recebeu tantos turistas, nunca tantos estrangeiros a escolheram para viver e trabalhar, sejam os que ali querem passar a reforma, nómadas digitais ou surfistas.

 

Nunca se venderam tantas casas, apesar de os preços das vendas ou dos arrendamentos estarem ao nível das grandes cidades, ou de outras urbes maiores, mas igualmente com vista para o mar. Como consequência, já são poucos os portugueses que ali conseguem uma casa. E há já senhorios que recusam arrendar a portugueses. Mas, se é verdade que muitos estrangeiros continuam a exaltar as qualidades da vila, há também alguns que têm revelado nas redes sociais que já não conseguem suportar o aumento dos preços.

 

No outro lado da moeda, está principalmente o crescimento e enriquecimento da vila e do concelho e a recuperação de velhas casas.

 

Que impacto tem esta espécie de “invasão” estrangeira nesta pequena vila da Região de Lisboa e Vale do Tejo e, por tabela, em muitas outras? Vai matar a “alma”, como muitos chamam aos seus encantos e virtudes que a ela atraem gente de todo o mundo? Serão os tempos novos que estão agora a chegar em força e que vêm enriquecer a região e as suas gentes sem desvirtuarem o que ela tem de melhor? Será a Ericeira um microcosmo daquilo em que se está a transformar Portugal? Fomos à procura de respostas. As opiniões dividem-se.

 

“Mais cara que Barcelona”

O Verão ainda está distante, mas as ruas do centro histórico da Ericeira já andam compostas de povo, mesmo em dias de semana e em horário laboral. Gente que passeia e que se espanta e encanta com a beleza da vila e com a magnífica vista para o Atlântico. Rapidamente se percebe que uma boa parte é estrangeira. Turistas ocasionais e outros que ali escolheram viver e trabalhar para empresas espalhadas pelo globo, bastando-lhes apenas um computador com ligação à Internet – os chamados nómadas digitais.

 

Na Praça da República, à hora de almoço da passada terça-feira, as mesas das amplas esplanadas estão cheias. A maioria dos convivas é estrangeira. Alguns estão agarrados ao computador enquanto comem algo. Outros desfrutam do Sol invernoso que brindou a vila quase sempre nos dois dias desta semana e num outro na semana passada em que os jornalistas do PÚBLICO por lá andaram. Alguns locais espantam-se com a presença de guardas da GNR, que, pelo menos em dois dos dias, policiaram o centro da vila. Facto que seguramente estará associado aos incidentes, nas últimas semanas de Fevereiro, em que quatro carros foram incendiados no centro da localidade e que a trouxeram para as notícias da comunicação social nacional.

 

A espanhola Célia Martinez, de 39 anos, nasceu em Múrcia, Espanha, mas viveu “quase toda a vida em Barcelona”. É professora de uma escola inglesa que dá aulas online a alunos do primeiro ciclo cujos pais trabalham fora das ilhas britânicas. “Sou uma trabalhadora digital e uma expat [expatriado, nome que se atribuem a si próprios os estrangeiros nómadas digitais e os que vêm viver ou gozar a reforma para Portugal].”

 

Célia está na Ericeira há oito meses. Farta da “confusão de Barcelona”, começou a procurar na Internet “um lugar tranquilo com vista para o mar”. “De repente, descobri este paraíso que era apresentado como a Bali da Europa e mudei. Estou muito satisfeita, tudo aqui é maravilhoso e também é perto de Lisboa, onde podemos ir ao cinema ou a uma exposição”, diz.

 

A única coisa que a incomoda é a subida dos preços, especialmente na alimentação e habitação. “Neste momento, a Ericeira é mais cara do que Barcelona. Pago 800 euros de renda por um T2, porque me saiu a sorte grande. O arrendamento de um apartamento como o meu não fica por menos de 1200 euros”, acrescenta.

 

Na mesma mesa do café, está também a finlandesa Sara Salama, de 37 anos. Já tinha estado na Ericeira de férias há oito anos. Mudou-se para a vila em Agosto do ano passado com o filho de 11 anos. Trabalha para uma empresa de marketing digital do seu país e diz concordar com tudo o que afirmou a sua amiga.

 

Célia e Sara são apenas duas dos 1356 cidadãos estrangeiros a viver na vila, segundo revelaram ao PÚBLICO os responsáveis da Câmara de Mafra. No concelho, estão registados 5777.

 

Mafra foi, de acordo com o último Censos, o segundo concelho que maior aumento de população teve, ficando apenas atrás do concelho alentejano de Odemira. Passou de uma população de cerca de 76 mil habitantes em 2011 para mais de 86 mil em 2021.

 

Das 11 freguesias, a Ericeira é, a seguir à sede do concelho, a que maior população alberga, com cerca de 12.400 habitantes espalhados pelos seus 12,19 quilómetros quadrados de área.

 

Apesar de pequena, a vila parece ter espaço para acolher mais estrangeiros. Ainda segundo a autarquia mafrense, na freguesia existem 4.257 edifícios exclusivamente residenciais, correspondendo a 9.476 alojamentos.

 

E ainda existem 675 edifícios para alojamentos locais. No passado dia 13 de Fevereiro, foi concluído um concurso para atribuir 50 alojamentos locais. Na freguesia, há também mais oito estabelecimentos aptos para receberem hóspedes, nomeadamente cinco hotéis. Só um deles tem 197 quartos. E importa não esquecer um enorme parque de campismo que neste momento está encerrado para remodelação.

 

“Abraçar o passado para celebrar o presente”

Joaquim Casado nasceu e foi criado na Ericeira. É um genuíno jagoz – assim se apelidam os nascidos na vila. Já não é um rapaz novo (72 anos), mas transpira energia. Marceneiro de profissão, lançou-se no negócio do turismo há mais de 40 anos.

 

Começou com uma casa que herdou e que transformou numa casa de hóspedes que arrendava aos primeiros turistas que por ali começavam a aparecer. Hoje tem um hotel no centro da vila, várias casas para arrendar e outras de alojamento local e está a construir o primeiro aparthotel da freguesia. A maior parte do mobiliário de madeira que equipa as casas é feita por si e é ele que decide toda a decoração, optando quase sempre por motivos regionais e nacionais. Nos anos 80, princípio dos 90, foi também 12 anos presidente da junta de freguesia local.

 

Fala com entusiasmo do passado da Ericeira. Dos primeiros turistas, das elites que para ali foram e “colocaram a vila do mapa”, lamentando, porém, “as oportunidades perdidas” e o que desapareceu com o tempo, como o casino, o estaleiro de construção naval, a conserveira, a cordoaria, as termas e a conserveira.

 

Apesar de ser um dos maiores empreendedores da região na área do turismo, manifesta-se preocupado com a “chegada cada vez maior de turistas e de gente que vem viver para a região”.

 

Desconfia do número que a CMM deu ao PÚBLICO sobre o alojamento local. “São mais de 900 e ainda há o problema dos que arrendam as casas ilegalmente.”

 

“A Ericeira está a ser comprada pelos estrangeiros e a ser modificada. Hoje não se consegue comprar um T2 por menos de 400 mil euros. Já não há casas para os portugueses que aqui trabalham, porque muitos proprietários já não arrendam casas aos locais. Porquê arrendar a um português por 600 euros, que vai ficar dez anos, se se pode arrendar por pouco tempo a estrangeiros por 1200 euros?”, pergunta. “Estamos a vender o ouro para a seguir comprar pechisbeque”, acrescenta.

 

Por tudo isto, defende acima de tudo que se “criem regras com rigor e verdade”, porque “há lugar para todos”. Entre essas regras, pede que se defina “o que pode e não pode ser vendido aos estrangeiros, que se construam casas destinadas a locais e para os que para aqui vêm trabalhar e que se fechem mais ruas ao trânsito automóvel.”

 

“A Ericeira não morre e o turismo também deu coisas boas, como ser um dos melhores locais para o surf, trazendo para aqui muitos jovens. Temos de ser bairristas, não deixar morrer a nossa cultura”, salienta.

 

Antes de se despedir dos jornalistas do PÚBLICO, faz questão de mostrar um novo bar que vai abrir em breve. Está quase todo decorado com motivos ligados ao mar, muitos deles verdadeiras antiguidades. Numa das paredes, está escrito um dos lemas de Joaquim Casado: “Abraçar o passado para celebrar o presente.”

 

“A Ericeira nunca irá morrer”

Ao início da tarde da passada quarta-feira, são poucos os pescadores que andam pelo porto de pesca, ao contrário dos muitos surfistas que se fazem às ondas na praia ao lado. Os barcos estão todos em terra. Devido ao mau tempo, já não vão ao mar há mais de 15 dias. Hoje são cerca de 20 que ali estão ao serviço e que empregam cerca de 80 homens. Muito menos do que os “mais de 60 barcos que existiam nos anos 80 e que davam trabalho a mais de 300 pessoas”.

 

A comparação é feita pelo mestre da embarcação Toni Fernandes, António Alberto, de 54 anos, que vai ao mar à procura de peixe desde os 12 anos. “Toni Porras”, assim é conhecido na vila, seguiu as pisadas do pai e do avô e fala da sua arte com paixão.

 

Diz que houve anos em “que o sector da pesca foi deixado ao abandono”, mas garante que “hoje as coisas estão melhores”, enaltecendo o trabalho que tem sido feito pelo presidente da junta de freguesia e pelo autarca de Mafra.

 

Nascido na vila, vê mais aspectos positivos do que negativos no crescimento do turismo e no aumento dos residentes estrangeiros. Lamenta “o elevado custo das casas e dos arrendamentos”. Dá dois exemplos: a filha, enfermeira de profissão, que “teve de ir morar para Mafra, porque não tinha dinheiro para morar aqui”, e um jovem estrangeiro “que há pouco tempo se disponibilizava nas redes sociais para pagar 1200 euros por mês por um quarto com casa de banho”.

 

“Há gente que diz que isto [Ericeira) já não é o que era, mas o turismo trouxe muitas coisas boas. Há malta que passou a arrendar casas, as ruas já não estão vazias no Inverno aos dias de semana – dantes, eram um deserto – e o surf dinamizou fortemente a vila”, aponta.

 

Admite que “são cada vez menos os jagozes que encontra nas ruas”, mas repete que prefere “ver a vila cheia de gente”.

 

“A Ericeira, a sua ‘alma’, nunca vai morrer. Temos bom tempo, boa comida, boa gente e vamos continuar assim”, acentua.

 

Sector imobiliário de “vento em popa”

É um facto que as casas para vender ou arrendar têm valores elevados, praticamente iguais aos de Lisboa, Porto ou outra boa cidade balneária, mas parece que nunca se venderam tantas na Ericeira.

 

“[O sector do imobiliário] vai de vento em popa. Está muito bom. Estava-se à espera de um arrefecimento no mercado, mas a pandemia acabou por o fazer crescer de forma estrondosa. Mais um facto: durante a pandemia, cerca de metade das casas que eram de férias foram transformadas em primeiras habitações”, diz Ricardo Isidoro, de 43 anos, proprietário da imobiliária Casa das Casas.

 

Segundo o empresário, os primeiros responsáveis pela dinamização do sector foram os nómadas digitais, “que colocaram a Ericeira no mapa”. “Hoje, a vila está entre as mais procuradas por estes quadros médios e altos, com idades entre os 40 e 50 anos e alto poder de compra”, diz Isidoro, que fundou a empresa quando tinha 20 anos e a transformou na maior imobiliária do concelho.

 

Garante ainda que se verificaram mudanças significativas no mercado: “Dantes, eram mais os que moravam em Lisboa que queriam comprar casa, “hoje são mais os estrangeiros que aqui querem viver e também surfistas, que, quer sejam portugueses ou estrangeiros, têm poder de compra.”

 

Ricardo Isidoro diz que os que afirmam que as casas estão caras na Ericeira “não sabem fazer o enquadramento local”: “Se se comparar com outros locais perto de Lisboa ou Porto, com vista para mar, qualidade de vida, boas escolas, com ruas limpas praticamente sem criminalidade, o preço das casas até está baixo. A Ericeira está hoje melhor do que Cascais. A Ericeira é um microcosmos do que se está a passar em Portugal.”

 

O empresário nascido em Mafra diz também que aqueles que afirmam que a vila está a perder a sua “alma” e que está pior “não passam dos velhos do Restelo, que sempre existiram e vão continuar a existir”. “As gerações são outras, as coisas são diferentes, mas, enquanto a vila mantiver os seus valores e a qualidade de vida, nunca perderá a sua ‘alma’. Dantes, essa alma só sentia no Verão, hoje sente-se todos os dias. Os quem vêm de fora sentem essa ‘alma’, mas há gente de cá que diz não a sentir”, afirma.

 

“Nunca seremos a Quinta do Lago, que é um local que não tem ‘alma’, mas também não seremos a Costa da Caparica”, conclui.

 

O “embaixador” sueco que se apaixonou pela vila

Quando tinha 64 anos, o cidadão sueco Jan-Olof Loaf, hoje com 73, reformou-se e decidiu que iria viver para uma cidade mediterrânica. Pensou em Espanha, Itália ou Malta. Por essa altura, alguém lhe falou em Portugal, apresentando o nosso país como um local “onde muitas pessoas falavam inglês, com bom clima, boa comida, calma, com pouca criminalidade e gente simpática”.

 

Em 2012, este antigo construtor civil, que teve operações em vários países, integrou uma viagem organizada por uma imobiliária sueca que pretendia apresentar Portugal aos que queriam vir viver para o nosso país. Visitou várias cidades do Algarve e Cascais. Não gostou de nenhuma. “Muita gente, muito turismo, muitos reformados estrangeiros, muitos carros. Não era aquilo que eu queria”, afirmou.

 

Ficou uns tempos hospedado em Portugal e, um dia, uma recepcionista de um hotel falou-lhe de um local de que nunca tinha ouvido falar: Ericeira. A empregada falou-lhe numa “vila perto do aeroporto, junto ao mar, um paraíso surfista, com boa comida e preços das casas mais baixos”. Visitou pela primeira vez a vila em Maio de 2014. “Fiquei apaixonado”, diz. Vendeu a sua casa na Suécia, comprou uma na Ericeira e em Setembro desse ano estava a viver na vila.

 

“Tem uma parede de mar azul maravilhosa, vales verdes, tudo muito calmo, gente maravilhosa, simpática e genuína que gosta de ajudar os outros. Não há crimes, tem hoje bons serviços e uma gastronomia fabulosa – o peixe é maravilhoso. Hoje, sinto que já faço parte da vila e vejo que as pessoas querem que eu faça parte dela”, diz Loaf, a quem alguns chamam o “embaixador sueco”, por ser o cidadão daquele país a viver na Ericeira há mais tempo.

 

Admite que hoje há “bastante mais” estrangeiros a viver na vila, mas saúda o facto de os portugueses “ainda estarem em maioria”. Também ele afirma que os “preços subiram muito”, mas há uma coisa de que tem a certeza. “Esta terra nunca se transformará num Algarve. Também há aqui edifícios de que não gosto, mas não são os do Algarve [risos]. E não creio que alguma vez perca a sua alma. Quem tem gente tão simpática, tão genuína, nunca a perderá”, acredita. Colaboração de Cintya Hartmann

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