A Ericeira vive um dilema: a sua “alma” vai sobreviver à
“invasão” estrangeira?
Que impacto está a ter o acentuado crescimento do turismo
e dos novos moradores estrangeiros numa pequena vila atlântica quase colada a
Lisboa que nunca teve tantos expats a nela quererem viver?
Luciano Alvarez
(Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotos)
10 de Março de
2023, 21:00
Os números do
turismo em Portugal voltaram a bater recordes no ano passado e já em Janeiro
deste ano. Quer nas grandes cidades, quer em pequenas vilas, especialmente nas
que têm vista para o Atlântico. É nestas microlocalidades que o impacto dos
visitantes estrangeiros é maior.
A Ericeira, no
concelho de Mafra e a cerca de 40 minutos de Lisboa graças à ligação por
auto-estrada, é um desses exemplos. Nunca recebeu tantos turistas, nunca tantos
estrangeiros a escolheram para viver e trabalhar, sejam os que ali querem
passar a reforma, nómadas digitais ou surfistas.
Nunca se venderam
tantas casas, apesar de os preços das vendas ou dos arrendamentos estarem ao
nível das grandes cidades, ou de outras urbes maiores, mas igualmente com vista
para o mar. Como consequência, já são poucos os portugueses que ali conseguem
uma casa. E há já senhorios que recusam arrendar a portugueses. Mas, se é
verdade que muitos estrangeiros continuam a exaltar as qualidades da vila, há
também alguns que têm revelado nas redes sociais que já não conseguem suportar
o aumento dos preços.
No outro lado da
moeda, está principalmente o crescimento e enriquecimento da vila e do concelho
e a recuperação de velhas casas.
Que impacto tem
esta espécie de “invasão” estrangeira nesta pequena vila da Região de Lisboa e
Vale do Tejo e, por tabela, em muitas outras? Vai matar a “alma”, como muitos
chamam aos seus encantos e virtudes que a ela atraem gente de todo o mundo?
Serão os tempos novos que estão agora a chegar em força e que vêm enriquecer a
região e as suas gentes sem desvirtuarem o que ela tem de melhor? Será a
Ericeira um microcosmo daquilo em que se está a transformar Portugal? Fomos à
procura de respostas. As opiniões dividem-se.
“Mais cara que Barcelona”
O Verão ainda
está distante, mas as ruas do centro histórico da Ericeira já andam compostas
de povo, mesmo em dias de semana e em horário laboral. Gente que passeia e que
se espanta e encanta com a beleza da vila e com a magnífica vista para o
Atlântico. Rapidamente se percebe que uma boa parte é estrangeira. Turistas
ocasionais e outros que ali escolheram viver e trabalhar para empresas
espalhadas pelo globo, bastando-lhes apenas um computador com ligação à
Internet – os chamados nómadas digitais.
Na Praça da
República, à hora de almoço da passada terça-feira, as mesas das amplas
esplanadas estão cheias. A maioria dos convivas é estrangeira. Alguns estão
agarrados ao computador enquanto comem algo. Outros desfrutam do Sol invernoso
que brindou a vila quase sempre nos dois dias desta semana e num outro na
semana passada em que os jornalistas do PÚBLICO por lá andaram. Alguns locais
espantam-se com a presença de guardas da GNR, que, pelo menos em dois dos dias,
policiaram o centro da vila. Facto que seguramente estará associado aos
incidentes, nas últimas semanas de Fevereiro, em que quatro carros foram
incendiados no centro da localidade e que a trouxeram para as notícias da
comunicação social nacional.
A espanhola Célia
Martinez, de 39 anos, nasceu em Múrcia, Espanha, mas viveu “quase toda a vida
em Barcelona”. É professora de uma escola inglesa que dá aulas online a alunos
do primeiro ciclo cujos pais trabalham fora das ilhas britânicas. “Sou uma
trabalhadora digital e uma expat [expatriado, nome que se atribuem a si
próprios os estrangeiros nómadas digitais e os que vêm viver ou gozar a reforma
para Portugal].”
Célia está na
Ericeira há oito meses. Farta da “confusão de Barcelona”, começou a procurar na
Internet “um lugar tranquilo com vista para o mar”. “De repente, descobri este
paraíso que era apresentado como a Bali da Europa e mudei. Estou muito
satisfeita, tudo aqui é maravilhoso e também é perto de Lisboa, onde podemos ir
ao cinema ou a uma exposição”, diz.
A única coisa que
a incomoda é a subida dos preços, especialmente na alimentação e habitação.
“Neste momento, a Ericeira é mais cara do que Barcelona. Pago 800 euros de
renda por um T2, porque me saiu a sorte grande. O arrendamento de um
apartamento como o meu não fica por menos de 1200 euros”, acrescenta.
Na mesma mesa do
café, está também a finlandesa Sara Salama, de 37 anos. Já tinha estado na
Ericeira de férias há oito anos. Mudou-se para a vila em Agosto do ano passado
com o filho de 11 anos. Trabalha para uma empresa de marketing digital do seu
país e diz concordar com tudo o que afirmou a sua amiga.
Célia e Sara são apenas duas dos 1356 cidadãos
estrangeiros a viver na vila, segundo revelaram ao PÚBLICO os responsáveis da
Câmara de Mafra. No concelho, estão registados 5777.
Mafra foi, de
acordo com o último Censos, o segundo concelho que maior aumento de população
teve, ficando apenas atrás do concelho alentejano de Odemira. Passou de uma
população de cerca de 76 mil habitantes em 2011 para mais de 86 mil em 2021.
Das 11
freguesias, a Ericeira é, a seguir à sede do concelho, a que maior população
alberga, com cerca de 12.400 habitantes espalhados pelos seus 12,19 quilómetros
quadrados de área.
Apesar de
pequena, a vila parece ter espaço para acolher mais estrangeiros. Ainda segundo
a autarquia mafrense, na freguesia existem 4.257 edifícios exclusivamente residenciais,
correspondendo a 9.476 alojamentos.
E ainda existem
675 edifícios para alojamentos locais. No passado dia 13 de Fevereiro, foi
concluído um concurso para atribuir 50 alojamentos locais. Na freguesia, há
também mais oito estabelecimentos aptos para receberem hóspedes, nomeadamente
cinco hotéis. Só um deles tem 197 quartos. E importa não esquecer um enorme
parque de campismo que neste momento está encerrado para remodelação.
“Abraçar o passado para celebrar o presente”
Joaquim Casado
nasceu e foi criado na Ericeira. É um genuíno jagoz – assim se apelidam os
nascidos na vila. Já não é um rapaz novo (72 anos), mas transpira energia.
Marceneiro de profissão, lançou-se no negócio do turismo há mais de 40 anos.
Começou com uma
casa que herdou e que transformou numa casa de hóspedes que arrendava aos
primeiros turistas que por ali começavam a aparecer. Hoje tem um hotel no
centro da vila, várias casas para arrendar e outras de alojamento local e está
a construir o primeiro aparthotel da freguesia. A maior parte do mobiliário de
madeira que equipa as casas é feita por si e é ele que decide toda a decoração,
optando quase sempre por motivos regionais e nacionais. Nos anos 80, princípio
dos 90, foi também 12 anos presidente da junta de freguesia local.
Fala com
entusiasmo do passado da Ericeira. Dos primeiros turistas, das elites que para
ali foram e “colocaram a vila do mapa”, lamentando, porém, “as oportunidades
perdidas” e o que desapareceu com o tempo, como o casino, o estaleiro de
construção naval, a conserveira, a cordoaria, as termas e a conserveira.
Apesar de ser um
dos maiores empreendedores da região na área do turismo, manifesta-se
preocupado com a “chegada cada vez maior de turistas e de gente que vem viver
para a região”.
Desconfia do
número que a CMM deu ao PÚBLICO sobre o alojamento local. “São mais de 900 e
ainda há o problema dos que arrendam as casas ilegalmente.”
“A Ericeira está
a ser comprada pelos estrangeiros e a ser modificada. Hoje não se consegue
comprar um T2 por menos de 400 mil euros. Já não há casas para os portugueses
que aqui trabalham, porque muitos proprietários já não arrendam casas aos
locais. Porquê arrendar a um português por 600 euros, que vai ficar dez anos,
se se pode arrendar por pouco tempo a estrangeiros por 1200 euros?”, pergunta.
“Estamos a vender o ouro para a seguir comprar pechisbeque”, acrescenta.
Por tudo isto,
defende acima de tudo que se “criem regras com rigor e verdade”, porque “há
lugar para todos”. Entre essas regras, pede que se defina “o que pode e não
pode ser vendido aos estrangeiros, que se construam casas destinadas a locais e
para os que para aqui vêm trabalhar e que se fechem mais ruas ao trânsito
automóvel.”
“A Ericeira não
morre e o turismo também deu coisas boas, como ser um dos melhores locais para
o surf, trazendo para aqui muitos jovens. Temos de ser bairristas, não deixar
morrer a nossa cultura”, salienta.
Antes de se
despedir dos jornalistas do PÚBLICO, faz questão de mostrar um novo bar que vai
abrir em breve. Está quase todo decorado com motivos ligados ao mar, muitos
deles verdadeiras antiguidades. Numa das paredes, está escrito um dos lemas de
Joaquim Casado: “Abraçar o passado para celebrar o presente.”
“A Ericeira nunca irá morrer”
Ao início da
tarde da passada quarta-feira, são poucos os pescadores que andam pelo porto de
pesca, ao contrário dos muitos surfistas que se fazem às ondas na praia ao
lado. Os barcos estão todos em terra. Devido ao mau tempo, já não vão ao mar há
mais de 15 dias. Hoje são cerca de 20 que ali estão ao serviço e que empregam
cerca de 80 homens. Muito menos do que os “mais de 60 barcos que existiam nos
anos 80 e que davam trabalho a mais de 300 pessoas”.
A comparação é
feita pelo mestre da embarcação Toni Fernandes, António Alberto, de 54 anos,
que vai ao mar à procura de peixe desde os 12 anos. “Toni Porras”, assim é
conhecido na vila, seguiu as pisadas do pai e do avô e fala da sua arte com
paixão.
Diz que houve
anos em “que o sector da pesca foi deixado ao abandono”, mas garante que “hoje
as coisas estão melhores”, enaltecendo o trabalho que tem sido feito pelo
presidente da junta de freguesia e pelo autarca de Mafra.
Nascido na vila,
vê mais aspectos positivos do que negativos no crescimento do turismo e no
aumento dos residentes estrangeiros. Lamenta “o elevado custo das casas e dos
arrendamentos”. Dá dois exemplos: a filha, enfermeira de profissão, que “teve
de ir morar para Mafra, porque não tinha dinheiro para morar aqui”, e um jovem
estrangeiro “que há pouco tempo se disponibilizava nas redes sociais para pagar
1200 euros por mês por um quarto com casa de banho”.
“Há gente que diz
que isto [Ericeira) já não é o que era, mas o turismo trouxe muitas coisas
boas. Há malta que passou a arrendar casas, as ruas já não estão vazias no
Inverno aos dias de semana – dantes, eram um deserto – e o surf dinamizou
fortemente a vila”, aponta.
Admite que “são
cada vez menos os jagozes que encontra nas ruas”, mas repete que prefere “ver a
vila cheia de gente”.
“A Ericeira, a
sua ‘alma’, nunca vai morrer. Temos bom tempo, boa comida, boa gente e vamos
continuar assim”, acentua.
Sector imobiliário de “vento em popa”
É um facto que as
casas para vender ou arrendar têm valores elevados, praticamente iguais aos de
Lisboa, Porto ou outra boa cidade balneária, mas parece que nunca se venderam
tantas na Ericeira.
“[O sector do
imobiliário] vai de vento em popa. Está muito bom. Estava-se à espera de um
arrefecimento no mercado, mas a pandemia acabou por o fazer crescer de forma
estrondosa. Mais um facto: durante a pandemia, cerca de metade das casas que
eram de férias foram transformadas em primeiras habitações”, diz Ricardo
Isidoro, de 43 anos, proprietário da imobiliária Casa das Casas.
Segundo o
empresário, os primeiros responsáveis pela dinamização do sector foram os
nómadas digitais, “que colocaram a Ericeira no mapa”. “Hoje, a vila está entre
as mais procuradas por estes quadros médios e altos, com idades entre os 40 e
50 anos e alto poder de compra”, diz Isidoro, que fundou a empresa quando tinha
20 anos e a transformou na maior imobiliária do concelho.
Garante ainda que
se verificaram mudanças significativas no mercado: “Dantes, eram mais os que
moravam em Lisboa que queriam comprar casa, “hoje são mais os estrangeiros que
aqui querem viver e também surfistas, que, quer sejam portugueses ou
estrangeiros, têm poder de compra.”
Ricardo Isidoro
diz que os que afirmam que as casas estão caras na Ericeira “não sabem fazer o
enquadramento local”: “Se se comparar com outros locais perto de Lisboa ou
Porto, com vista para mar, qualidade de vida, boas escolas, com ruas limpas
praticamente sem criminalidade, o preço das casas até está baixo. A Ericeira
está hoje melhor do que Cascais. A Ericeira é um microcosmos do que se está a
passar em Portugal.”
O empresário
nascido em Mafra diz também que aqueles que afirmam que a vila está a perder a
sua “alma” e que está pior “não passam dos velhos do Restelo, que sempre
existiram e vão continuar a existir”. “As gerações são outras, as coisas são
diferentes, mas, enquanto a vila mantiver os seus valores e a qualidade de
vida, nunca perderá a sua ‘alma’. Dantes, essa alma só sentia no Verão, hoje
sente-se todos os dias. Os quem vêm de fora sentem essa ‘alma’, mas há gente de
cá que diz não a sentir”, afirma.
“Nunca seremos a
Quinta do Lago, que é um local que não tem ‘alma’, mas também não seremos a
Costa da Caparica”, conclui.
O “embaixador” sueco que se apaixonou pela vila
Quando tinha 64
anos, o cidadão sueco Jan-Olof Loaf, hoje com 73, reformou-se e decidiu que
iria viver para uma cidade mediterrânica. Pensou em Espanha, Itália ou Malta.
Por essa altura, alguém lhe falou em Portugal, apresentando o nosso país como
um local “onde muitas pessoas falavam inglês, com bom clima, boa comida, calma,
com pouca criminalidade e gente simpática”.
Em 2012, este
antigo construtor civil, que teve operações em vários países, integrou uma
viagem organizada por uma imobiliária sueca que pretendia apresentar Portugal
aos que queriam vir viver para o nosso país. Visitou várias cidades do Algarve
e Cascais. Não gostou de nenhuma. “Muita gente, muito turismo, muitos
reformados estrangeiros, muitos carros. Não era aquilo que eu queria”, afirmou.
Ficou uns tempos
hospedado em Portugal e, um dia, uma recepcionista de um hotel falou-lhe de um
local de que nunca tinha ouvido falar: Ericeira. A empregada falou-lhe numa
“vila perto do aeroporto, junto ao mar, um paraíso surfista, com boa comida e
preços das casas mais baixos”. Visitou pela primeira vez a vila em Maio de
2014. “Fiquei apaixonado”, diz. Vendeu a sua casa na Suécia, comprou uma na
Ericeira e em Setembro desse ano estava a viver na vila.
“Tem uma parede
de mar azul maravilhosa, vales verdes, tudo muito calmo, gente maravilhosa,
simpática e genuína que gosta de ajudar os outros. Não há crimes, tem hoje bons
serviços e uma gastronomia fabulosa – o peixe é maravilhoso. Hoje, sinto que já
faço parte da vila e vejo que as pessoas querem que eu faça parte dela”, diz
Loaf, a quem alguns chamam o “embaixador sueco”, por ser o cidadão daquele país
a viver na Ericeira há mais tempo.
Admite que hoje
há “bastante mais” estrangeiros a viver na vila, mas saúda o facto de os
portugueses “ainda estarem em maioria”. Também ele afirma que os “preços
subiram muito”, mas há uma coisa de que tem a certeza. “Esta terra nunca se
transformará num Algarve. Também há aqui edifícios de que não gosto, mas não
são os do Algarve [risos]. E não creio que alguma vez perca a sua alma. Quem
tem gente tão simpática, tão genuína, nunca a perderá”, acredita. Colaboração
de Cintya Hartmann
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