segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

15 de Maio de 2021: DOSSIER OVOODOCORVO : O MISTÉRIO DAS LOJAS ASIÁTICAS / Que negócio há atrás das lojas de bugigangas para turistas?

 



OPINIÃO COFFEE BREAK

Que negócio há atrás das lojas de bugigangas para turistas?

 

Há uma Odemira no centro de Lisboa, à vista de todos e ao lado da esquadra da PSP? Vamos acabar a dizer “que horror” e “toda a gente sabia”? As lojas de bugigangas para turistas só podem ser um biombo. Mas o biombo esconde o quê?

 

Bárbara Reis

15 de Maio de 2021, 7:00

https://www.publico.pt/2021/05/15/local/opiniao/negocio-ha-atras-lojas-bugigangas-turistas-1962506

 

Tenho um amigo que é contra títulos com pontos de interrogação porque “o jornalismo não faz perguntas, dá respostas”. Isso é quase sempre verdade. Hoje abro uma excepção e peço indulgência: que negócio há atrás das lojas de bugigangas para turistas que enchem o centro histórico de Lisboa?

 

Nada faz sentido. Vejam bem: as rendas custam mais de três mil euros por mês e as lojas estão às moscas. Já estavam às moscas antes da pandemia. Mesmo no pico do boom turístico, havia lojas de bugigangas que passavam dias inteiros sem um único cliente. Não sou eu que o digo. São os comerciantes da Baixa, patrões e empregados, portugueses e estrangeiros, que observam e falam uns com os outros.

 

Em 2018, percorri as 17 ruas da grelha pombalina central e contei 616 lojas a funcionar — dezenas estavam fechadas. Das 616, 103 eram lojas que vendem ímanes com a imagem do eléctrico 28, miniaturas da Torre de Belém e porta-moedas de cortiça.

 

Não surpreende que estejam vazias: são 103 lojas iguais num rectângulo de 17 ruas. Por mais bugigangas que os turistas queiram comprar e por mais turistas que visitem a Baixa de Lisboa, a desproporção é evidente. Não vou falar da massificação do turismo, da Disneyficação e do mal que a multiplicação destas lojas está a fazer à cidade. O tema é o mistério: se não há clientes para tantas T-shirts do Ronaldo e galos de Barcelos, como é que estas lojas estão abertas há anos, de manhã à noite, com dois ou três empregados e rendas altíssimas? Rendas altas, receitas baixas, vários empregados — não consigo perceber o modelo de negócio.

 

O mistério é velho. Em 2017, o historiador de arquitectura António Sérgio Rosa de Carvalho contou aqui no PÚBLICO (citando o sociólogo Guilherme Pereira) que, só na Baixa, desde 2010/12, “as lojas de souvenirs low-cost de fabrico massificado e pretensamente português” tinham passado “de nove para 90”. Nesse artigo, Rosa de Carvalho contou também (citando Carla Salsinha, presidente da União de Associações de Comércio e Serviços) que, só na Baixa, haveria “97 lojas de souvenirs detidas por cidadãos do Bangladesh”. Pouco antes, Salsinha tinha dado uma entrevista ao jornal Corvo, na qual disse ter “dificuldade em entender a concentração de lojas de recordações turísticas em locais onde os comerciantes portugueses não conseguem sobreviver” por causa das rendas.

 

Esta semana, perguntei à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), à Segurança Social (SS) e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), se estaria aqui, no coração da capital, à vista de todos e ao lado de uma esquadra da polícia, uma “nova Odemira”; se a ACT, a SS e o SEF fizeram acções de fiscalização conjuntas nestas lojas de souvenirs; se receberam queixas ou denúncias; se sabem como é que estas lojas conseguem pagar rendas altíssimas estando semivazias; se suspeitam de esquemas de exploração de imigrantes ou outra ilegalidade.

 

Pelo que percebi, não há queixas, nem denúncias e ninguém se lembra de ter havido uma operação de fiscalização conjunta. Mas pergunto: não há nada para as autoridades investigarem? Será que grupos de imigrantes se juntam para pagar a renda e fazem contratos fictícios para se legalizarem? Será que moram juntos em casas sobrelotadas ali perto, só dois ou três estão na loja e os outros arranjam trabalhos informais? Será que os empregados recebem um salário e com isso pagam o alojamento (que é do patrão e fica nas traseiras) e consomem nas lojas do patrão, fazendo com que o patrão recupere 99% do que pagou ao empregado, que assim paga a sua legalização no espaço Schengen? Mas se é isso, como é que pagam as contas? Continuam a faltar os três ou quatro mil euros mensais para a renda. Será que há esquemas ilegais mas voluntários? Será que há imigrantes apanhados por redes e explorados ainda mais? Ou isto é tudo pura ficção?

 

Pode haver uma lógica que escapa a todos os que observam este mistério há anos. Há dias um colega do PÚBLICO perguntou a alguns lojistas como conseguiam pagar as rendas e responderam-lhe que é com empréstimos de amigos que vivem no estrangeiro. Isso aplica-se a todos? É a regra ou a excepção?

 

Com o escândalo de Odemira, fiquei a pensar como tudo o que ouvimos faz eco no centro histórico de Lisboa e como este é um bom tema para as eleições autárquicas.

 

Redactora principal





OPINIÃO

O mistério das lojas asiáticas

 

O perigo de generalizações exige-nos prudência e cautela, mas também não nos pode conduzir à paralisação e à apatia.

 

António Sérgio Rosa de Carvalho

12 de Julho de 2017, 6:06

https://www.publico.pt/2017/07/12/local/opiniao/o-misterio-das-lojas-asiaticas-1778557

 

Este artigo é totalmente baseado e sustentado por citações e constitui um convite aos ilustres jornalistas para traduzirem estas perguntas e questões em investigações, que possam contribuir para o desvendar deste mistério.

 

“Durante o primeiro período de trabalho de campo havia 60 lojas de bangladechianos nesta zona de Lisboa. Em 2006 eram já 80 ao longo da Avenida Almirante Reis, Rua da Palma, Calçada dos Cavaleiros, Rua do Benformoso, Largo do Intendente, Rua de São Lázaro e nos centros comerciais Mouraria e Martim Moniz. Em 2008, ocupavam já mais de 150 lojas, entre a Praça Martim Moniz e imediações, os Anjos e a baixa lisboeta (onde, só no último ano, abriram mais de 30 lojas).”

 

Isto afirma José Mapril em 2010 num estudo académico publicado na Etnográfica Revue. Num levantamento desenvolvido pelo sociólogo Guilherme Pereira ele assinala que desde 2010/12, na zona da Baixa, as lojas de souvenirs low-cost (LLC) de fabrico massificado e pretensamente português ou representativos de Lisboa passaram de nove para 90!

 

Muito recentemente, Carla Salsinha (2017), a presidente da UACS, avisava com pertinência e urgência: “Todos os tipos de comércio têm direito a existir”, mas confessou ter dificuldade em entender a concentração de lojas de recordações turísticas de baixo custo e de kebabs, “em locais onde os comerciantes portugueses não conseguem sobreviver”. Apesar das rendas cada vez mais altas, só na Baixa haverá 97 lojas de souvenirs detidas por cidadãos do Bangladesh, disse a presidente da UACS. E depois, para além dessas, há todo um mundo de lojas muito caras e das grandes cadeias multinacionais. Tudo isto estará a criar um quadro muito desfavorável para o comércio convencional.

 

Salsinha denuncia uma total ausência de planeamento estratégico por parte da CML, do chamado Urbanismo Comercial nos licenciamentos, de forma a garantir um equilíbrio. Além disso, os produtos de fabrico massificado e pretensamente “portugueses” garantem um tsunami de plástico e quinquilharia híbrida, que afecta e domina largamente o ambiente e a imagem de uma zona que se pretendia como a historicamente central e nobre de Lisboa.

 

Em 2014, a conceituada e respeitada professora Raquel Varela, especialista nas questões do Trabalho, já tinha referido o efeito nocivo e incompreensível deste fenómeno: “As mercearias asiáticas em Portugal fazem dumping como fazem as empresas-monopólio portuguesas cujos preços e a produção é inteiramente — e sem qualquer livre concorrência que não a da aparência jurídica — por estas fixada. Não faço ideia se as ditas mercearias são indianas, do Bangladesh, ou do Paquistão, nem me interessa, se fossem alentejanas e fizessem dumping eram as mercearias alentejanas que, como fazem dumping, não podem vender produtos de qualidade nem ter trabalhadores com condições dignas. Entram em Lisboa, e noutras cidades, com salários mais baixos, horários não controlados por ninguém e condições laborais desconhecidas — muitas com um regime fiscal abonatório durante cinco anos.”

 

Seguindo esta linha de questões, a jornalista Sónia Simões publicava um artigo no Observador (18 Março 2016): “Nos últimos meses, o número de mercearias e frutarias tem crescido abruptamente nas ruas dos bairros históricos de Lisboa. E não só. Já se começam a fazer notar noutros concelhos. Para tal, também contribuíram as leis portuguesas. Por um lado, como sublinhou ao Observador o vereador Duarte Cordeiro com o pelouro da Economia e Inovação da Câmara de Lisboa, o Licenciamento Zero, que vem simplificar a vida aos empresários que queiram abrir um negócio. Por outro, refere o responsável pelo SEF, a própria Lei dos Estrangeiros, que dispensa os vistos de trabalho para a autorização de residência no país.

 

Assim, qualquer cidadão estrangeiro que obtenha um contrato de trabalho e faça descontos para a Segurança Social consegue automaticamente uma autorização de residência — o que não acontece noutros países da Europa. ‘Temos indícios de que algumas lojas possam estar a ser usadas para esse fim’, reconhece o investigador. Sempre que os serviços de fiscalização do SEF se deparam com vários contratos de trabalho em nome de uma mesma empresa, abrem um inquérito para apurar se existe, de facto, uma relação laboral, ou se é uma relação fictícia. Daí as empresas estarem frequentemente ‘a rodar’. Isto é, a abrir e a fechar, mas mantendo os mesmos espaços comerciais.”

 

Para terminar, o perigo de generalizações grosseiras e de estigmatizações ou mesmo de inaceitáveis discriminações de grupos étnicos exige-nos prudência e cautela, mas também não nos pode conduzir a uma paralisação e apatia impedidora, inibidora e neutralizadora dos mais básicos princípios de análise, dedução e discernimento daquilo que é evidente. Trata-se do equilíbrio e futuro de Lisboa!




Lisboa, Centro Comercial das Bugigangas

 

Mais um mini-argumento para o debate sobre a cidade. Em 17 ruas da Baixa de Lisboa, há 103 lojas de bugigangas para turistas.

 

Bárbara Reis

28 de Dezembro de 2018, 6:29

https://www.publico.pt/2018/12/28/local/opiniao/lisboa-centro-comercial-bugigangas-1856080

 

Quando há dias contei as cadeiras das esplanadas da Rua Augusta — são 912 — um leitor escreveu esta frase no site do PÚBLICO: “Se quer uma cidade sem turismo, vá para Pyongyang!”

 

Foi estranhamente inspirador. Passou-me pela cabeça dedicar-lhe esta última crónica do ano. Afinal, foi neste leitor que mais vezes pensei enquanto varri a Baixa de Lisboa, rua a rua, a contar as lojas.

 

Não quero convencer ninguém, muito menos quem acredita que a defesa da cidade se faz no duelo capitalismo versus comunismo. O comunismo não faz bem à saúde, nem à economia, nem às cidades. Colocá-lo na equação vem com pelo menos 62 anos de atraso. O duelo é outro. Queremos um centro histórico vazio ou com habitantes? Queremos uma Lisboa-Disneylândia ou uma Lisboa inteligente? Uma Lisboa sem critério ou com visão? Um centro-cenário-para-turistas ou um centro capaz de atrair turismo a longo prazo sem expulsar os residentes, nem destruir o “mix funcional”? O duelo é entre uma cidade banal e de plástico e uma cidade genuína e distintiva.

 

A única coisa que quero é oferecer mais um miniargumento para o debate e insistir que é possível melhorar as nossas cidades.

 

Correndo o risco de déjà vu, depois das cadeiras, fui contar as lojas de bugigangas. Não percorri toda a Baixa, muito menos todo o centro histórico. Cingi-me às 17 ruas da grelha pombalina central: as dez paralelas que descem para o rio (Madalena-Nova do Almada) e as sete que atravessam na perpendicular (Comércio-Santa Justa).

 

Neste rectângulo, contei 616 lojas a funcionar (dezenas e dezenas estão fechadas). Destas, 103 são lojas de bugigangas (ímanes, miniaturas da Torre de Belém, porta-moedas de cortiça e T-shirts do Ronaldo), 12 alugam bicicletas e carrinhos, seis são “mercearias” com “traditional food” que se anunciam como “olive shop”, e 13 vendem vinho, quase sempre com “experiências” e “wine tasting”. Somado, são 134 lojas que existem a pensar nos turistas.

 

Esta é uma pequena amostra. Não cheguei à Sé nem ao castelo de São Jorge ou a Alfama, onde as bugigangas reinam e ocuparam farmácias, papelarias, mercearias, padarias, oculistas e ateliers de costura. Às 134, podemos somar dois terços dos cafés e restaurantes (151) — e aqui estou a ser simpática. Total: 234 lojas para turistas.

 

No ano passado, a Câmara Municipal de Amesterdão proibiu a abertura de novas lojas para turistas em 40 ruas do centro histórico. Havia 280. Ao anunciar a medida, o vice-presidente disse que ter tantas lojas iguais prejudicava a cidade.

 

Os critérios da minha contagem serão diferentes, mas não muito. Em Amesterdão, consideraram lojas para turista os lugares onde se vendem souvenirs, queijos e bilhetes (para os canais e os museus) e se alugam bicicletas.

 

Como Amesterdão, o nosso CBD (Central Business District) arrisca-se a tornar-se um CCB (Centro Comercial das Bugigangas).

 

O comércio da Baixa ainda tem algumas “funções raras” que definem os CBD: encontrei uma chapelaria, um escritório da ILGA, o velho Polycarpo das facas, sete retrosarias, seis lojas de ferragens e material eléctrico, dois sapateiros, três gravadores, quatro lavandarias, oito cabeleireiros e barbearias, duas sex shops e o Animatógrafo do Rossio. Também há uma residência universitária, lojas de tatuagens, decoração, lãs e tecidos. As ourivesarias são pouco mais de 20. Há alguns serviços (finanças, registos, bancos e correios). E pouco mais.

 

O resto é monótono. Contei 151 cafés e restaurantes, muitos dos quais indistintivos. Se todos os menus voassem e caíssem trocados, os empregados de mesa não notavam. Há 101 lojas de roupa, sapatos e malas. E contei 41 hotéis e guest houses.

 

Em 2019, não vou contar candeeiros, não se preocupem. Se alguém quiser contar as lojas de bugigangas do resto do centro histórico, é um serviço público bem-vindo e candidato a coffee break. Até lá, vou estudar os programas de viagens que o escritor José Luís Peixoto organiza com a agência Pinto Lopes a Pyongyang. Antes que chegue a democracia e as bugigangas.




Na Lisboa sem turistas, Abdus trocou os souvenirs por mercearias

 

Comunidade do Bangladesh em Lisboa agarra-se ao que pode para sobreviver à crise económica da pandemia. Muitos deixaram de pagar rendas e dependem de empréstimos de amigos. Outros saíram de Portugal para países europeus ou para umas longas férias na terra natal.

 

João Pedro Pincha (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografias)

3 de Abril de 2021, 7:10

https://www.publico.pt/2021/04/03/local/noticia/lisboa-turistas-abdus-trocou-souvenirs-mercearias-1956812

 

Quando Abdus Samad se mudou do Reino Unido para Lisboa, em 2015, alguns dos seus compatriotas tinham entrado recentemente num negócio que parecia uma autêntica árvore das patacas. Com a cidade cheia de turistas, florescia o comércio de ímanes, postais, galos de Barcelos e todo o tipo de lembranças lusas. Ainda não era o porta sim, porta sim que mais tarde se verificou e Abdus viu em Lisboa a oportunidade para finalmente melhorar a sua vida.

 

Era para ter ficado uma semana, permaneceu oito meses. Começou por trabalhar na loja de um amigo e quando obteve a residência em Portugal decidiu lançar-se por conta própria. Juntou as poupanças que amealhara no Reino Unido, pediu emprestado a amigos e família. Abriu uma loja no Bairro Alto, depois outra, por fim mais três na Mouraria, todas na mesma rua.

 

“Em 2015 não havia tanta concorrência, mas muitos dos meus amigos vieram, depois os amigos deles, depois os amigos desses amigos”, relata. Na Rua dos Cavaleiros, que sobe do Martim Moniz a caminho da Graça, há pouca gente a meio da tarde. Tem sido quase sempre assim desde que chegou a pandemia, afirma Abdus, um imigrante do Bangladesh que há menos de um mês transformou duas lojas de souvenirs em mercearias para tentar fintar a crise. “Talvez tenha sido uma má decisão. Os produtos turísticos não têm data de validade, os alimentos sim. E não se está a vender nada.”

 

Todas as suas lojas estão fechadas à excepção desta, onde as prateleiras estão cheias. Alguns produtos estão mais baratos do que o costume, mas nem assim o negócio anima. Os portugueses, diz Abdus, queixam-se de que as coisas são caras e preferem ir aos supermercados. Os bengalis, a quem os alimentos típicos do seu país poderiam interessar, estão sem dinheiro. Ainda não pagou as mercadorias ao fornecedor, tem rendas em atraso. E nos últimos tempos surgiu um fenómeno que o PÚBLICO testemunhou durante a conversa. Um homem com um saco de lona aproxima-se e exibe uma caixa de cápsulas de café: “Sete euros, meu. Sabes que isto está a 13.” Abdus Samad recusa. “Todos os dias me vêm tentar vender coisas que roubam nos supermercados”, suspira.

 

As lojas turísticas na cidade sem turistas

Um pouco por toda a cidade entre o Tejo e o Areeiro se ouvem as queixas dos lojistas bengalis que apostaram em vender recordações turísticas. Nos últimos anos, muitos foram acrescentando produtos alimentares aos escaparates e alguns, como Abdus, fizeram ou estão a fazer uma mudança total no negócio, deixando para trás os souvenirs e virando-se para as mercearias. Só na Rua dos Cavaleiros há pelo menos mais três lojas que vão seguir esse caminho.

 

Rana Taslim Uddin, uma figura tutelar para os imigrantes do Bangladesh que residem em Lisboa, confirma que algumas pessoas da comunidade estão a abrir negócios em plena pandemia, por vezes aproveitando espaços deixados vagos por comerciantes portugueses, mas diz que o fenómeno é residual. “Quando há uma mercearia explorada por um português ninguém repara, quando é estrangeiro logo se diz que abriu uma loja nova”, sublinha.

 

A covid-19 atingiu os empresários bengalis tanto ou mais do que os outros, diz Uddin. “Há muitas lojas que estão fechadas porque as pessoas não conseguiam pagar as rendas, nem as rendas das lojas, nem a comida”, relata. Quem se emprega em hotelaria, restauração ou supermercados recebe geralmente o salário mínimo e sobra pouco ao fim do mês. Quem é dono de lojas reinveste tudo o que ganha em novos espaços comerciais. “Ninguém tem grandes poupanças”, resume.

 

“As pessoas ganhavam e gastavam, só agora é que já pensam em guardar algum dinheiro”, confirma Matior, que explora uma loja turística na Rua do Ouro, em plena Baixa. No último ano teve de despedir dois empregados e ele próprio não sabe bem porque insiste em abrir portas. “Tenho vendido quatro, cinco ou seis euros por dia. A maior parte do tempo estou em casa, venho aqui mais para esticar as pernas”, ri-se.

 

À sua volta está a habitual parafernália que caracteriza estas lojas: t-shirts, canecas, isqueiros, carteiras de cortiça, louças e bordados, também alguns snacks e bebidas. Mudar de ramo não é opção. “Tenho demasiado dinheiro investido aqui. Se eu abro uma mercearia faço o quê a isto? Esta mercadoria é o meu dinheiro.”

 

Praticamente sem vendas mas com as contas para pagar, Matior tem recorrido a empréstimos de amigos que estão no Reino Unido ou em França e só assim tem conseguido pagar a renda. Na Rua da Prata um empresário revela que deixou de pagar os 3500 euros do arrendamento há um ano. “Aqui precisamos dos turistas. Como vê, as ruas estão desertas. É claro que o negócio está muito mau”, queixa-se, sem se querer identificar. Na loja há uma mesa comprida com dezenas de galos de Barcelos de todos os tamanhos e pinturas. Nas prateleiras, porém, os produtos turísticos têm dado lugar aos vinhos, a bebidas espirituosas e a alimentos mais duradouros.

 

Na Baixa de Lisboa há cerca de 200 lojas exploradas por bengalis, revela Rana Taslim Uddin. A maioria está de portas fechadas, como se comprova num breve passeio, e as que estão abertas continuam a exibir escaparates com ímanes e postais, como se houvesse turistas nas ruas. Rana Uddin diz conhecer um comerciante desta zona da cidade que está a dever 48 mil euros em rendas e outro, com seis lojas espalhadas por Lisboa, que tinha um encargo mensal de 35 mil euros. Todas estão fechadas e três já não voltam a abrir.

 

Perante a crise, muitos imigrantes do Bangladesh trocaram Lisboa por outros países europeus ou foram passar umas longas férias ao país natal. “Todas as semanas há pelo menos cinco pessoas que eu conheço que se vão embora”, conta Milad Ahmed, desempregado desde Janeiro que tem passado os seus dias numa loja de telemóveis que abriu há pouco tempo na Calçada de Santo André, Mouraria. “A maior parte das pessoas bengalis em Portugal não está a viver, está apenas a sobreviver.”

 

Como relatam outras pessoas da comunidade, Milad diz que desde Agosto não consegue mandar dinheiro para o Bangladesh. Pelo contrário, o seu sustento vem de lá e de amigos e familiares instalados no Reino Unido ou em França. Vive numa casa com mais quatro pessoas, são 150 euros pelo quarto e mais os gastos do dia-a-dia. O seu patrão tem cinco lojas, duas das quais inauguradas no Verão passado. “Na esperança de que a situação estaria melhor”, diz Milad.

 

Os comerciantes lamentam não poder aceder aos fundos de apoio lançados pelo Governo e pela Câmara de Lisboa. Para beneficiar da ajuda é necessário não ter dívidas ao Estado – e muitos têm. “A maioria está a dever à Segurança Social e às Finanças”, confirma Rana Taslim Uddin. Para Abdus Samad é uma injustiça. “O próprio país vive à conta da dívida externa, não pode sobreviver sem isso, então como é que nós podemos viver sem dívidas? Eu investi todo o meu dinheiro neste país, podia ter investido no Reino Unido. Agora o que é que me dão?”, indigna-se. E chega mesmo a dizer que “Portugal é o país mais corrupto da Europa”.

 

Sem ir tão longe, Matior conta que primos seus em Londres já receberam avultados apoios estatais desde Março do ano passado e Rana Uddin afirma que “o pacote de ajudas em Inglaterra é melhor do que em Portugal”.

 

Na Rua dos Remédios ou na Rua do Benformoso, epicentro da comunidade bengali em Lisboa, pequenos grupos de homens concentram-se à porta de estabelecimentos. “Neste momento a maioria das pessoas está sem emprego”, diz Enamul Hasan, que abriu um restaurante típico do Bangladesh em plena pandemia no local de um antigo restaurante chinês. “Estamos a sofrer muito”, afirma. Decidiu meter-se no novo negócio porque lhe pareceu uma boa oportunidade para captar a clientela compatriota, mas esta não chega para sustentar a casa. Actualmente tem dois restaurantes e uma barbearia, mas já teve mais espaços comerciais. Trabalhavam para ele 20 pessoas até ao Verão passado, agora tem seis empregados.

 

Também os empregados de Abdus Samad mudaram quase todos de vida. Uns tornaram-se estafetas de plataformas de entregas, outros saíram do país, outros estão simplesmente à espera. Entre estes, muitos escapam às estatísticas oficiais por não estarem inscritos nos centros de emprego. É o caso de Milad Ahmed. O último ordenado que recebeu foi o de Janeiro, desde então não voltou a trabalhar. “A situação em Lisboa está muito má. Se os turistas voltarem, isto talvez melhore.”


Sem comentários: