segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O prédio do Estado para futura residência estudantil que será um condomínio de luxo



O prédio do Estado para futura residência estudantil que será um condomínio de luxo
POR O CORVO • 9 OUTUBRO, 2017 •

 O Largo do Intendente assiste à construção de um empreendimento de luxo, no que resta de um edifício do XVIII. O imóvel, que pertencia ao Estado, foi anunciado, em 2014, como futura residência universitária com 239 quartos. O então presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, disse que o projecto era da “maior importância” para a revitalização da zona. O mesmo considerou Manuel Salgado, vereador do urbanismo, avaliando-o como vital para “trazer gente nova”. Mas a Estamo, imobiliária estatal, acabou por vender o prédio a uma empresa com outros planos. A qual, durante o período da venda, mudou duas vezes de mãos e três vezes de gerência, sendo agora detida por uma sociedade controlada por Luiz Horta e Costa, ex-administrador do grupo Escom. Relato de como o interesse público perdeu para o privado.

 Texto: Samuel Alemão

 Por estes dias, o fragor das retroescavadoras em movimentações de terras e o trabalho dos operários dominam o interior do número 57 do Largo do Intendente. Há muito que por detrás das fachadas do antigo prédio de construção pré-pombalina se encontrava apenas o seu miolo vazio. Algo que está prestes a mudar, com a construção de um empreendimento de luxo que prevê 51 apartamentos de tipologias T1 e T2, com áreas brutas variando entre os 50 e os 170 metros quadrados, distribuídos por seis pisos. O projecto imobiliário, denominado Largo do Intendente 57, tem como promotor a Eusofia, sociedade imobiliária cujo capital é detido maioritariamente por uma empresa criada por Luiz Horta e Costa, antigo administrador do grupo Escom, parte do universo Espírito Santo.

 Mas, há pouco mais de três anos, o antigo imóvel do Estado havia sido anunciado em reunião de câmara como uma futura residência de estudantes. Algo que António Costa, então presidente da autarquia, qualificou como da “maior importância”. Em 26 de março de 2014, foi aprovado em reunião de vereação, apenas com duas abstenções, um pedido de licenciamento para a construção de uma residência de estudantes, com 239 quartos, requerido pela Estamo, imobiliária de capitais exclusivamente públicos criada para alinear propriedades estatais. Na memória descritiva do projecto, entregue nos serviços de urbanismo da autarquia no ano anterior, além do alojamento, fazia-se referência a “uma diversidade de espaços destinados a comércio (loja/bar/cantina), recepção e área administrativa”, mas também a áreas de estar, de leitura, de estudo e de refeições. Propunha-se também a manutenção da “fachada, inalterada e recuperada como uma ‘memória’ do antigo revestimento em azulejo”.

 O edifício, que estava indicado como Imóvel de Valor Concelhio, e se encontrava devoluto há muito, havia sido apontado como a possível futura casa do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), em abril de 2011, aquando da instalação do gabinete da presidência de António Costa no Largo do Intendente – momento que desencadeou o processo de regeneração daquela área. Mas, em julho do ano seguinte, o então autarca anunciava que tal já não se viria a concretizar, por desistência do governo na altura liderado por Passos Coelho. No entanto, Costa garantia, nesse mesmo momento, que a Estamo se encontrava “a decidir como o valorizar” o imóvel, assegurando ainda que existia uma universidade “interessada” em usar o espaço para residência de estudantes, embora sem dar “indicação oficial” aos serviços camarários.

 Certo é que a empresa estatal acabou ela mesma, em 2013, por apresentar o tal pedido de licenciamento para o projecto da residência universitária. Na véspera da sua aprovação, em Março de 2014, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, declarou ao jornal  PÚBLICO que se tratava de um “projecto importantíssimo” para o rejuvenescimento da Mouraria, pois iria “trazer gente nova” para o bairro. Na tal reunião camarária realizada a 26 de março de 2014, na qual o projecto foi discutido e votado, também António Costa mostrou o maior entusiasmo com o mesmo plano.

 “A residência, seja de quem seja, é da maior importância para a revitalização do Intendente porque a introdução de 200 quartos para estudantes é o maior contributo que podemos dar para a revitalização definitiva daquela zona”, disse o então presidente, em resposta às críticas dos dois vereadores comunistas, que se opunham a uma possível gestão privada da residência. Foram deles, aliás, ambas as abstenções. Mas todos os partidos presentes na vereação (PS, PSD, CDS e PCP) reconheceram a importância da iniciativa então aprovada. “Quando nos aparece uma proposta num sítio que para nós é como pão para a boca, o que devemos fazer é procurar acelerar. Queremos uma cidade viva”, disse ainda Costa na mesma reunião.

 Os sinais de que tal desígnio não se viria a cumprir surgiram, porém, no ano seguinte, quando a Estamo, e apesar do licenciamento para a residência estudantil, decidiu colocar o prédio à venda, por cerca de três milhões de euros. Em 18 de junho de 2015, O Corvo dava conta dessa aparente mudança de planos, quando noticiava que o imóvel havia sido incluído num lote de uma dúzia de propriedades situadas no centro de Lisboa a alienar. Na altura, fonte da imobiliária estatal esclarecia que “não se pode dizer que o imóvel se destina a uma residência de estudantes”. “O que acontece, isso sim, é que relativamente a ele existe um projecto aprovado para esse destino, mas a opção ficará sempre ao critério de um eventual comprador e, obviamente, das entidades licenciadoras, sobre se quer manter ou alterar o projecto, ou destinar o imóvel a uso distinto”, comentava a mesma fonte.

 A participada pela Parpública dizia também a O Corvo que o facto de ter decorrido mais de um ano entre a aprovação em reunião camarária do projecto de arquitectura e a colocação à venda do imóvel estava relacionada com a “(aparente) receptividade do mercado para acolher determinado produto”. De facto, na primavera de 2015, o mercado imobiliário evidenciava sinais de retoma, após os anos da crise, pelo que a Estamo afirmava ser aquela “uma boa altura para avançar com a respectiva venda e testar a receptividade da procura ao produto”. Na resposta às questões do Corvo, a empresa esclarecia que, “caso o imóvel não venha a receber qualquer proposta válida e nos termos do Regulamento de Venda, ficará um ano em negociação directa”. “Nesta altura não será, pois, de antecipar qualquer alteração do projecto que venha a ser promovida pela Estamo”, previa.

 Mas ela aconteceu. No final desse ano, a Estamo acabou por alienar o imóvel em causa por 4,5 milhões de euros. O contrato-promessa com a firma Eusofia – Sociedade Imobiliária, Lda foi assinado no dia 7 de dezembro de 2015, vindo a escritura da transacção a ser efectivada no seguinte dia a 12 de fevereiro. Alguns meses depois, ainda em 2016, entraria nos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa um novo pedido de licenciamento para obras de transformação daquele edifício num conjunto habitacional, com uma área bruta construtiva de 6.957 metros quadrados e uma área total habitável de quase 3 mil metros quadrados. Ficava assim para trás a ideia anunciada, dois anos antes, de construir a então considerada vital residência universitária. As obras para o empreendimento de luxo acabaram por receber luz verde, a 27 de janeiro deste ano, através de despacho assinado pelo vereador Manuel Salgado – o alvará com a autorização definitiva para o avanço dos trabalhos seria emitido a 19 de maio passado. Eles começariam poucas semanas depois, tendo um prazo de conclusão estimado em 18 meses.


 Uma empresa de mão em mão

 As obras planeadas e a comercialização do empreendimento de luxo parecerão agora um coisa linear, se comparadas com a vida social da Eusofia no período que mediou entre a negociação com a Estamo e a entrega do projecto aos serviços de urbanismo da CML. Senão, vejamos. No momento em que aquela sociedade imobiliária assinou o contrato-promessa para a compra do então decrépito prédio de propriedade estatal, a 7 de dezembro de 2015, era detida a 100% pela firma Lisbinvest SA, sediada no Luxemburgo, onde fora criada em dezembro de 2013 por Miguel Câncio Martins. O empresário era, aliás, o gerente da Eusofia na altura da assinatura do contrato-promessa. Função assumida apenas duas semanas antes, a 23 de novembro de 2015, no exacto momento em que a sua Lisbinveste adquiria a totalidade das quotas da firma criada, em dezembro de 2014, por António João Barata Da Silva Barão. Com essa transacção, a firma passava a deter uma quota de 90% e outra de 10% do capital social da Eusofia, de apenas dois mil euros.

 Um negócio que acontecia no exacto momento em que a Eusofia e a Estamo ultimavam os detalhes da venda do número 57 do Largo do Intendente. No dia em que a Lisbinvest comprava a Eusofia e Miguel Câncio Martins se tornava gerente, esta função deixava de ser exercida por Nicolas Patrick Marie Dalibot, um empresário que apenas desempenhava tal cargo há 21 dias. Assumira-o a 2 de novembro, sucedendo a António Silva Barão, que renunciara ao cargo. Algo que Patrick faria a 23 de novembro, para dar lugar a Câncio Martins. Este, porém, também não assumiria uma gerência muito longa na Eusofia, vindo a renunciar a 28 de março de 2016, ou seja, quatro meses após ter assumido funções. É nesse dia que se dá uma alteração importante, com a compra da quota de 90% da sociedade Eusofia pela Flag Capital, SA e a entrada para a gerência de Luiz Miguel de Oliveira Horta e Costa, de Eduardo Nuno Leitão Horta e Costa e ainda de José Salazar Estibeiro Rodrigues.

 A Flag Capital fora criada a 23 de dezembro de 2015 – por coincidência, num período entre a data da assinatura pela Eusofia do contrato-promessa com a Estamo para a compra do edifício do Intendente e o efectivo firmar da escritura -, com um capital de 50 mil euros, tendo então um conselho de administração formado por Luiz Horta e Costa, Rui Miguel de Oliveira Horta e Costa e ainda Eduardo Nuno Leitão Horta e Costa. Uma composição que viria a ser alterada a 31 de março de 2016, três dias após a tomada de posição maioritária daquela sociedade na Eusofia. Nessa altura, dá-se a saída da administração da Flag Capital, por renúncia, de Rui Horta e Costa – o qual viria também a renunciar, em fevereiro deste ano, ao cargo de administrador não executivo dos CTT, após ter sido constituído arguido no âmbito da Operação Marquês, relacionado com alegados esquemas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

 O Corvo questionou agora, mais uma vez, a Parpública sobre os contornos da mudança de planos relativamente ao prédio do Largo do Intendente. “Qual a razão para o vosso imóvel – que havia visto aprovado pela CML, em março de 2014, o licenciamento para a sua transformação numa grande residência para estudantes universitários – ter acabado por se transformar num empreendimento de habitação de luxo?”, era pergunta. A entidade gestora de participações do Estado informou, todavia, que não havia nada a acrescentar sobre esta matéria.

 Na recta final da campanha eleitoral para as últimas eleições autárquicas, Ricardo Robles, candidato do Bloco de Esquerda à presidência do município de Lisboa, que acabou por ser eleito vereador, apontou o caso da mudança de planos verificada no Intendente como exemplo da falta de investimento em residências universitárias. Mas também de especulação imobiliária. “É esta lógica da cidade que privilegia sempre o negócio, a mais-valia, o lucro fácil em detrimento do que são as necessidades das pessoas, que estão a ser expulsas e precisam de alternativas de habitação”, disse, referindo-se à passagem de um imóvel do Estado para investidores privados, os quais estão ali a construir apartamentos de luxo, pouco tempo depois de a residência universitária que lá deveria ter nascido ter sido qualificada, pelo então presidente da CML, como da “maior importância para a revitalização” daquela zona da cidade.

 O Corvo perguntou a Margarida Martins (PS), presidente da Junta de Freguesia de Arroios, o que pensava sobre esta alteração de planos. A autarca garante que apenas soube da construção dos apartamentos “há dois meses”, pouco depois de as obras terem início e recordou que as juntas nada podem decidir sobre esta matéria. Confessando-se preocupada com a falta de habitação naquela área da cidade, que qualifica como “preocupante”, Margarida Martins desvaloriza, todavia, a falta de alojamento para estudantes.


 “Há imensas residências para estudantes na freguesia, sobretudo para pessoas que estão em Lisboa a fazer doutoramentos e escolhem esta zona por ser perto do centro, ter metro e ser cosmopolita”. A presidente de junta confessa, contudo, que gostaria que houvesse “mais habitação para jovens” a preço acessível, naquela área. Algo que, diz, deverá mudar através dos empreendimentos a construir na Rua de São Lázaro e na Rua Gomes Freire, no âmbito do Programa Municipal de Renda Acessível.

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