quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Moradores da Misericórdia relançam a ideia do “vizinho” como o centro da comunidade


Moradores da Misericórdia relançam a ideia do “vizinho” como o centro da comunidade 

POR O CORVO • 12 OUTUBRO, 2017 •

Melhorar as relações entre moradores, turistas, comerciantes e donos de espaços nocturnos é o objectivo do projecto Um Bom Vizinho, apresentado esta semana na freguesia da Misericórdia, que inclui Bairro Alto, Bica, Santa Catarina, Príncipe Real e Cais do Sodré. Várias entidades locais, associações, moradores e comerciantes da zona juntaram-se para mostrar que, apesar do turismo massificado, dos excessos da vida nocturna e da especulação imobiliária, ainda é possível dar sentido à vida comunitária no coração da capital. “Este conceito de proximidade, que cuida e informa, é algo que nos anima”, diz o presidente da associação de moradores, Luís Paisana. Mas será uma tarefa “muito difícil”, reconhece. Todos têm um papel importante. E nem os sem-abrigo ficam de fora.

 Texto: Sofia Cristino

 Melhorar a vida do bairro, as relações entre vizinhos e integrar, cada vez mais, uma franja estigmatizada da população na cidade de Lisboa são alguns dos desafios lançados pelo projecto Um Bom Vizinho, apresentado esta terça-feira (10 de outubro) pela Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia (AMBA). Segundo Luís Paisana, presidente da associação, pretende-se “sensibilizar as pessoas para as relações de boa vizinhança”. “Temos de viver todos em comunidade, não é com conflitos que vamos chegar a algum lado. Há forças muito fortes e interesses que pressionam esta freguesia (Misericórdia), mas as pessoas que cá estão têm de fazer um esforço para se entenderem”, diz.

 Numa altura em que se fala, cada vez mais, do “turismo de massas” e em que as sempre presentes queixas dos moradores quanto ao ruído em zonas de convívio nocturno voltam a ser tema central de conversa, apaziguar a relação entre moradores, comerciantes e donos de bares é um dos grandes desafios do projecto Um Bom Vizinho – que faz parte dos 38 projectos aprovados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), ao abrigo do programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) para 2017. Durante um ano, a CML financia a iniciativa que, depois, terá de prosseguir por conta própria. Combater o despovoamento e a descaracterização da freguesia da Misericórdia, utilizando a empregabilidade como um factor de inclusão social, é outro dos objectivos.

“Pretende-se encontrar um equilíbrio entre moradores, comerciantes de todo o tipo, donos de bares que fazem ruído, turistas e os que vêm aqui só sair à noite e não são turistas. Os comerciantes têm de perceber que estão numa zona residencial, mas que o negócio também não pode acabar porque, senão, a zona fica desvalorizada”, explica Luís Paisana. “Temos de evitar esta dicotomia de que os moradores estão contra os comerciantes” acrescenta o dirigente associativo, que considera crucial o combate ao despovoamento e à descaracterização da freguesia. Uma forma de o conseguir é através da empregabilidade dos seus residentes.

Para cumprir os objectivos, a AMBA e os parceiros – como a Associação Portuguesa Emprego Apoiado, o Centro de Formação Profissional para o Comércio e Afins (CECOA), a Fundação Aga Khan e as associações dos Albergues Nocturnos de Lisboa e Girassol Solidário – têm previstas várias actividades. A Horta Urbana é uma delas. Num terreno da Associação de Albergues Nocturnos de Lisboa, pretende-se juntar sem-abrigo, desempregados, emigrantes, entre outros, a interagirem na prática da agricultura. Sendo o mote do encontro as relações entre vizinhos, Paulo Ferreira, da Associação de Albergues Nocturnos de Lisboa, lança um desafio a quem mora ao lado da associação. “Às vezes, a vizinhança não olha com bons olhos para este tipo de pessoas. Ao criarmos uma horta urbana, também queremos cativar os vizinhos a entrarem”, afirma.

 Luís Paisana, convidou, ainda, os doentes evacuados de Cabo Verde para Portugal a participarem nesta iniciativa, salientando o forte contributo que acredita que podem dar. “Poderá haver pessoas evacuadas de Cabo Verde, que são de ilhas onde cultivam a terra, que, em vez de estarem numa pensão em condições sub-humanas, passam a poder cultivar a terra, mas também têm memórias e saberes, que poderão partilhar com outros”, explica. A Horta Urbana poderá ser, também, um incentivo à criação de espaços de cultivo de diversos produtos agrícolas, como “manjericão e outras ervas aromáticas de utilização diária”. “A partir da Horta Urbana poderemos fazer hortas domésticas, porque todos podemos ter em nossa casa uma pequena horta. Poderíamos também fazer workshops e livros de receitas”, acrescenta.

O Toc Toc Vizinhos é outra das actividades sugeridas para o sucesso de O Bom Vizinho. Para Luís Paisana, será, provavelmente, “a mais complicada”, mas também a “mais entusiasmante”. A ideia é andar diariamente a tocar à porta dos comerciantes e de outras entidades locais, sensibilizando-os para a importância das boas relações entre vizinhos. “Vamos bater literalmente à porta de todos os estabelecimentos comerciais da freguesia e tentar perceber as suas necessidades pessoais e a nível de formação”, esclarece. Todos os parceiros, formais e informais, serão ainda participantes do jornal comunitário Folha de Alface, publicação mensal, em papel e formato digital, promovendo e divulgando as diversas actividades do projecto.

Luís Paisana salienta que o projeto Um Bom Vizinho surge numa altura em que o turismo “não é regulado” e “descaracteriza Lisboa”. “As pessoas estão a desaparecer dos sítios onde habitam e, no fundo, para os turistas é interessante perceber os nossos hábitos e cultura. Com este projecto, pretende-se também um turismo de qualidade e não um turismo de massas, que é destruidor e não deixa grande valor”, considera. Algo que, no fundo, contribui também para manter a comunidade unida em torno do conceito de vizinhança.

 O dirigente concorda que vai ser um trabalho “muito difícil”. “Já andamos nesta guerra há muitos anos. A palavra ‘vizinho’, felizmente, está a ter mais visibilidade. Na própria campanha eleitoral, o presidente da Câmara de Lisboa já se referia aos munícipes como vizinhos”, salienta. “Este conceito de proximidade, que cuida e informa, é algo que nos anima, mas sabemos que é um trabalho muito difícil e, por isso, temos de o fazer com calma e passo a passo, porque não vamos ter resultados imediatos, temos consciência disso”, admite.


No final do primeiro ano do projecto O Bom Vizinho, período de tempo financiado pela CML, Luís Paisana confessa que gostaria de ter “um livro de boas práticas”. “Seria importante ficarem escrito as boas práticas da boa vizinhança, o que melhorou e o que pode melhorar”, conclui.

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