José Pacheco Pereira
OPINIÃO
Os três macacos sábios
Pura e simplesmente não acredito – não por fé, mas por
razão – que o BES e Salgado pudessem fazer tudo de que são acusados sem que tal
fosse, pelo menos em traços largos, conhecido, a começar pelos seus pares na
banca e, por maioria de razão, do Banco de Portugal.
18 de Julho de
2020, 0:05
Se há defeito de
carácter que infelizmente se repete em Portugal, vez após vez, sem culpa nem
remorso, é a adulação dos poderosos seguida pelo seu escárnio público quando
deixam de ser poderosos. Todos os que tinham a cerviz bem dobrada, a boca bem
calada, a vénia pronta, o tom untuoso, a mão estendida para o pequeno ou grande
favor, o silêncio oportunista, correm para a imensa fila, de pedras na mão,
para abjurar o anterior senhor. Já vi isto muitas vezes. Já escrevi isto muitas
vezes. Suspeito de que não será a última.
Um caso exemplar foi
Sócrates, em que se contava pelos dedos de uma mão aqueles que percebiam bem de
mais o que ele estava a fazer e a multidão de sicofantas e aproveitadores que
lhe servia de barreira contra tudo aquilo que o podia afectar. Alguns desses
foram depois profissionais do atirar da pedra, muitos na política, a começar
pelo PSD, e muitos na comunicação social. Mas o vento virou e foram logo para a
fila do arremesso. O remake actual desta conduta cívica exemplar passa-se hoje
com Ricardo Salgado e o BES, só que com a gravidade de esquecimentos e fugas à
responsabilidade que nos custaram milhares de milhões de euros e,
diferentemente do caso Sócrates, este passa-se na alta finança e não na baixa
política.
Comecemos pelo
primeiro esquecimento. Salgado e a família Espírito Santo começaram por ser um
dos heróis do anti-PREC. Lembram-se, os grandes empreendedores que, espoliados
dos seus bens pelas nacionalizações gonçalvistas, tiveram que fugir para a o
Brasil, de onde regressaram por cima, heróis do capital, com a capacidade de
reconstruir o que o PREC lhes tinha tirado? O O Independente, adorado pelos
nossos jornalistas como modelo, desenvolveu pela pena de Paulo Portas a tese de
que havia dois “dinheiros” em Portugal: o “velho dinheiro”, com pergaminhos e
pedigree, e o “novo dinheiro”, dos novos-ricos que tinham ganho dinheiro de
forma obscura e pelas ligações ao PSD e ao PS, a canalha sem modos. O O
Independente considerava intocável o “velho dinheiro” (com o enorme preconceito
pequeno-burguês de Portas, que não tinha nascido na nobreza nem na família
certa), gente que sabia comer à mesa e vestia nos melhores alfaiates de
Londres, e os da “meia branca”, que não se sabiam comportar, eram provincianos
e toscos.
Esta apreciação
só começou a mudar muito mais tarde, quando o longo período de governação do PS
mostrou as cumplicidades de Salgado com o poder socialista. Esta também foi uma
das razões por que Passos Coelho lhe disse que não, esquecendo-se as pessoas
que, depois disso, o BES pôde ir de novo ao mercado, com uma emissão validada
pelo Presidente, pelo regulador, pelo governador do Banco de Portugal e por
alguns comentadores… Isto da cronologia é uma maçada.
O segundo
esquecimento é pior do que um esquecimento, é uma cumplicidade. As pessoas
comuns não fazem a ideia da enorme quantidade de informação que o círculo de
confiança da elite portuguesa – quem, na verdade, manda no país – obtém quase
como respira. Circulando de conselhos de administração para lugares políticos,
de escritórios de advocacia de negócios para consultoras financeiras, ou pura e
simplesmente falando com os seus pares dentro desse círculo de confiança, tudo
o que é relevante lhes chega aos ouvidos. Numa rede politicamente transversal,
em que, para além da informação privilegiada, o poder de veto de pessoas é o
mais importante para manter intacto o poder, essas pessoas não podem alegar que
“não sabiam”. E, se tivermos em conta a endogamia de meios pequenos como é o
caso de Portugal, as elites bancárias que circulam em meios semelhantes e/ou
muito próximos, que vão das ilhas Virgens ao Panamá, aos offshores, aos bancos
suíços e ingleses, aos negócios portugueses, nem que fosse por razões de
competição, não podiam desconhecer as manobras do BES.
É por isso que,
pura e simplesmente, não acredito – não por fé, mas por razão – que o BES e
Salgado pudessem fazer tudo de que são acusados sem que tal fosse, pelo menos
em traços largos, conhecido, a começar pelos seus pares na banca e, por maioria
de razão, do Banco de Portugal. E, das duas, uma: ou esse tipo de práticas era
mais comum do que hoje se faz crer singularizando o BES, ou uma conspiração
corporativa de silêncio permitiu a continuada violação da lei pelo BES, ou as
duas coisas ao mesmo tempo. Ou Salgado e o BES mantinham as protecções dadas ou
compradas e ainda não tinham caído politicamente.
O festival de
hipocrisia a que hoje se assiste, publicitado por muitos jornalistas económicos
(salvo raras excepções) que estiveram também debaixo da asa do BES, não é
apenas deprimente, mas é também perigoso. É a melhor garantia de que tudo se
pode repetir, com outros protagonistas e outros métodos, mas com o mesmo
mecanismo de ganância e silêncio. Até porque há um aspecto que não tenho espaço
para referir aqui e fica para outra altura: não se cai na justiça antes de se
cair politicamente.
Bom, os
macaquinhos japoneses, esses nunca vão ficar desempregados.
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