OPINIÃO
Um drink de fim de tarde
O “drink de fim de tarde” pode parecer apenas o mais
recente item na vasta colecção de gafes de Graça Fonseca. Infelizmente, é bem
mais do que isso.
JOÃO MIGUEL TAVARES
1 de Agosto de
2020, 0:00
O título deste
texto é uma citação da ministra da Cultura, Graça Fonseca. Vale a pena explicar
o contexto. Na terça-feira, Graça Fonseca organizou uma daquelas cerimónias de
propaganda a que o Governo costuma chamar conferências de imprensa, reunindo os
jornalistas no jardim do Museu Nacional de Arte Antiga para anunciar a
aquisição de 65 obras de arte contemporânea para a colecção do Estado.
Se organizar uma
cerimónia destas numa altura em que as pessoas da cultura sofrem a maior crise
das suas vidas já é bastante obsceno, Graça Fonseca arrebatou o prémio de frase
mais snob do ano ao ser questionada por uma jornalista sobre os profissionais
mais carenciados do sector. A ministra recusou responder à pergunta – “hoje só
falo da colecção de arte contemporânea” – e acrescentou: “muito obrigado, e
vamos beber o drink de fim de tarde.”
O “drink de fim
de tarde” pode parecer apenas o mais recente item na vasta colecção de gafes de
Graça Fonseca. Infelizmente, é bem mais do que isso. Se trago a frase para aqui
não é para relembrar, uma vez mais, a enorme falta de jeito da ministra, mas
sim para sublinhar o quanto essa frase é sintomática do brutal afastamento das
elites políticas em relação às pessoas comuns, cujos problemas é suposto
ajudarem a resolver.
Ao ser
confrontada com uma pergunta sobre gente da área da cultura que está a ser
apoiada com produtos alimentares – ou seja, a pedir ajuda para comer –, a
ministra optou por convidar os jornalistas a deixarem as questões desagradáveis
de lado e juntarem-se ao seu “drink de fim de tarde” num dos mais bonitos
jardins da capital.
Que isto seja
feito por uma ministra que tutela a cultura de um Governo socialista é
significativo. A esquerda chique abandonou a luta de classes e a preocupação
com os mais pobres para se dedicar às “micro-agressões”. Talvez as velhas
macro-agressões se tenham tornado démodé para políticos como Graça Fonseca, mas
seja em 1820, seja em 2020, o grande problema social continua a ser a pobreza,
a falta de oportunidades, a educação desigual, o enclausuramento das elites, o
emperramento do elevador social.
Nem todos os
políticos têm de viver em Massamá. Mas se o mais próximo que estamos desse
mundo é através da senhora que nos limpa a casa, o drink de fim de tarde
transforma-se num labirinto onde a política mais nobre se perde e o país
continua a esbarrar em becos sem saída
É evidente que
qualquer político, seja ele de esquerda ou de direita, vai dizer que sabe tudo
isto muito bem. Pode até saber, tal como eu imagino que sei como é a vida de um
habitante do bairro da Jamaica – sei, mas não sinto. Longe da vista, longe do
coração. É claro que a ministra já falou com o roadie que não trabalha há cinco
meses, com a actriz que ficou sem rendimentos ou com o pessoal que organiza
festivais que só regressam (com sorte) em 2021. E certamente se preocupa com
eles. Mas a galáxia do drink, tão natural em Graça Fonseca, fica a anos-luz
destes problemas.
É assim na
Cultura, e é assim na Educação: quando não se tem filhos, ou se tem os filhos
em escolas privadas (como acontece com a esmagadora maioria dos membros do
Governo), os problemas das escolas públicas não batem da mesma forma. É assim
na Educação, tal como é assim na Saúde: quando se tem um bom seguro, que conduz
directamente ao Hospital dos Lusíadas ou da Luz (como acontece com a esmagadora
maioria dos membros do Governo), os problemas dos hospitais públicos não entram
na pele da mesma maneira. Nem todos os políticos têm de viver em Massamá. Mas
se o mais próximo que estamos desse mundo é através da senhora que nos limpa a
casa, o drink de fim de tarde transforma-se num labirinto onde a política mais
nobre se perde e o país continua a esbarrar em becos sem saída.
Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário