sexta-feira, 31 de julho de 2020

Um drink de fim de tarde



OPINIÃO
Um drink de fim de tarde

O “drink de fim de tarde” pode parecer apenas o mais recente item na vasta colecção de gafes de Graça Fonseca. Infelizmente, é bem mais do que isso.

JOÃO MIGUEL TAVARES
1 de Agosto de 2020, 0:00

O título deste texto é uma citação da ministra da Cultura, Graça Fonseca. Vale a pena explicar o contexto. Na terça-feira, Graça Fonseca organizou uma daquelas cerimónias de propaganda a que o Governo costuma chamar conferências de imprensa, reunindo os jornalistas no jardim do Museu Nacional de Arte Antiga para anunciar a aquisição de 65 obras de arte contemporânea para a colecção do Estado.

Se organizar uma cerimónia destas numa altura em que as pessoas da cultura sofrem a maior crise das suas vidas já é bastante obsceno, Graça Fonseca arrebatou o prémio de frase mais snob do ano ao ser questionada por uma jornalista sobre os profissionais mais carenciados do sector. A ministra recusou responder à pergunta – “hoje só falo da colecção de arte contemporânea” – e acrescentou: “muito obrigado, e vamos beber o drink de fim de tarde.”

O “drink de fim de tarde” pode parecer apenas o mais recente item na vasta colecção de gafes de Graça Fonseca. Infelizmente, é bem mais do que isso. Se trago a frase para aqui não é para relembrar, uma vez mais, a enorme falta de jeito da ministra, mas sim para sublinhar o quanto essa frase é sintomática do brutal afastamento das elites políticas em relação às pessoas comuns, cujos problemas é suposto ajudarem a resolver.

Ao ser confrontada com uma pergunta sobre gente da área da cultura que está a ser apoiada com produtos alimentares – ou seja, a pedir ajuda para comer –, a ministra optou por convidar os jornalistas a deixarem as questões desagradáveis de lado e juntarem-se ao seu “drink de fim de tarde” num dos mais bonitos jardins da capital.

Que isto seja feito por uma ministra que tutela a cultura de um Governo socialista é significativo. A esquerda chique abandonou a luta de classes e a preocupação com os mais pobres para se dedicar às “micro-agressões”. Talvez as velhas macro-agressões se tenham tornado démodé para políticos como Graça Fonseca, mas seja em 1820, seja em 2020, o grande problema social continua a ser a pobreza, a falta de oportunidades, a educação desigual, o enclausuramento das elites, o emperramento do elevador social.

Nem todos os políticos têm de viver em Massamá. Mas se o mais próximo que estamos desse mundo é através da senhora que nos limpa a casa, o drink de fim de tarde transforma-se num labirinto onde a política mais nobre se perde e o país continua a esbarrar em becos sem saída
É evidente que qualquer político, seja ele de esquerda ou de direita, vai dizer que sabe tudo isto muito bem. Pode até saber, tal como eu imagino que sei como é a vida de um habitante do bairro da Jamaica – sei, mas não sinto. Longe da vista, longe do coração. É claro que a ministra já falou com o roadie que não trabalha há cinco meses, com a actriz que ficou sem rendimentos ou com o pessoal que organiza festivais que só regressam (com sorte) em 2021. E certamente se preocupa com eles. Mas a galáxia do drink, tão natural em Graça Fonseca, fica a anos-luz destes problemas.

É assim na Cultura, e é assim na Educação: quando não se tem filhos, ou se tem os filhos em escolas privadas (como acontece com a esmagadora maioria dos membros do Governo), os problemas das escolas públicas não batem da mesma forma. É assim na Educação, tal como é assim na Saúde: quando se tem um bom seguro, que conduz directamente ao Hospital dos Lusíadas ou da Luz (como acontece com a esmagadora maioria dos membros do Governo), os problemas dos hospitais públicos não entram na pele da mesma maneira. Nem todos os políticos têm de viver em Massamá. Mas se o mais próximo que estamos desse mundo é através da senhora que nos limpa a casa, o drink de fim de tarde transforma-se num labirinto onde a política mais nobre se perde e o país continua a esbarrar em becos sem saída.

Jornalista

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