OPINIÃO
Hoje é um dia negro para a democracia portuguesa
O homem não engana. Não gosta de jornalistas. Não gosta
de magistraturas. E não gosta de debates parlamentares. Há muita gente
incomodada a olhar para André Ventura, mas começo a ter a sensação de que
estamos a preocupar-nos com a pessoa errada.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
23 de Julho de
2020, 6:05
Hoje é um dia
negro para a democracia portuguesa. Não estou a exagerar nas palavras. Hoje é o
dia em que o pior do Bloco Central – PSD e PS – se vai unir, contra a opinião
de todos os outros partidos, para que o primeiro-ministro deixe de ir ao
Parlamento de quinze em quinze dias para passar a ir de dois em dois meses.
Hoje é o dia em que um partido da oposição – custa a crer, mas a proposta
nasceu do PSD – decide que o governo necessita de menos escrutínio e deve
prestar menos contas ao Parlamento. Hoje é o dia em que os dois maiores
partidos portugueses atraiçoam os valores da liberdade, da representatividade,
da réplica política e do confronto de ideias, em nome de uma visão autocrática
da democracia que poderia ser subscrita por Viktor Orbán.
Nem sempre são
precisas chaimites para destruir regimes; nem tudo precisa de cair à bruta. Por
vezes, as estruturas vão sendo lentamente corroídas pela acumulação de decisões
perniciosas, como a de hoje, que perturbam a lógica de um sistema saudável.
Note-se que um sistema saudável não é aquele em que não há erros ou crimes
(isso é o paraíso celeste), mas sim aquele onde erros e crimes são punidos,
onde os actos têm consequências e onde as decisões têm lógica. De tudo isso
Portugal está deficitário.
Qual é a lógica
de o maior partido da oposição convidar o partido do Governo a modificar um
regimento de forma a confrontar menos vezes (quatro vezes menos!) o
primeiro-ministro no Parlamento? Qual é a lógica de a oposição desejar menos
escrutínio e confronto parlamentar numa altura em que o governo passa
dificuldades – covid, desemprego, recessão – e quando vem a caminho uma
batelada de fundos europeus cuja aplicação deve ser vigiada? Qual é a lógica de
a mais prestigiada democracia do planeta (a britânica) exigir ao
primeiro-ministro respostas semanais aos deputados, enquanto neste grande
torrão democrático se decide que basta uma visitinha a cada 60 dias (dez vezes
menos!) ao Parlamento?
Sim, eu sei que
Rui Rio deu as suas justificações. Mais valia ter ficado calado. Disse que “o
primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais”, porque “tem é
de trabalhar”; mostrou-se incomodado com a “gritaria”; declarou que os debates
“desgastam a imagem” do Parlamento e que lhes falta “dignidade”. Em resumo, Rui
Rio não aprecia o ambiente. Mas, em vez de aconselhar o PSD a fazer
intervenções mais construtivas, preferiu acabar com os debates e deixar Costa
“trabalhar” – porque ir a São Bento, claro está, não faz parte do trabalho.
Há tempos,
escrevi que Rui Rio exalava um certo cheirinho a alto quadro da União Nacional.
Mas isto já não é só cheirinho. É mesmo um banho de perfume húngaro. Até porque
há dois argumentos para esta decisão abstrusa que Rio se esqueceu
convenientemente de referir, mas que são evidentes e perigosos: 1) Esta é uma
forma rasteira e pouco democrática de PSD e PS combaterem a ascensão dos
pequenos partidos, que lhes estão a fazer mossa no Parlamento. 2) Rio está a
estender a cama onde sonha um dia ir deitar-se, se chegar a primeiro-ministro.
O homem não
engana. Não gosta de jornalistas. Não gosta de magistraturas. E não gosta de
debates parlamentares. Há muita gente incomodada a olhar para André Ventura,
mas começo a ter a sensação de que estamos a preocupar-nos com a pessoa errada.
Talvez o culpado não seja o mordomo. Hoje é um dia negro para a democracia
portuguesa – e quem tem as mãos sujas de tinta preta é Rui Rio.
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