sábado, 25 de julho de 2020

Hoje é um dia negro para a democracia portuguesa



OPINIÃO
Hoje é um dia negro para a democracia portuguesa

O homem não engana. Não gosta de jornalistas. Não gosta de magistraturas. E não gosta de debates parlamentares. Há muita gente incomodada a olhar para André Ventura, mas começo a ter a sensação de que estamos a preocupar-nos com a pessoa errada.

JOÃO MIGUEL TAVARES
23 de Julho de 2020, 6:05

Hoje é um dia negro para a democracia portuguesa. Não estou a exagerar nas palavras. Hoje é o dia em que o pior do Bloco Central – PSD e PS – se vai unir, contra a opinião de todos os outros partidos, para que o primeiro-ministro deixe de ir ao Parlamento de quinze em quinze dias para passar a ir de dois em dois meses. Hoje é o dia em que um partido da oposição – custa a crer, mas a proposta nasceu do PSD – decide que o governo necessita de menos escrutínio e deve prestar menos contas ao Parlamento. Hoje é o dia em que os dois maiores partidos portugueses atraiçoam os valores da liberdade, da representatividade, da réplica política e do confronto de ideias, em nome de uma visão autocrática da democracia que poderia ser subscrita por Viktor Orbán.

Nem sempre são precisas chaimites para destruir regimes; nem tudo precisa de cair à bruta. Por vezes, as estruturas vão sendo lentamente corroídas pela acumulação de decisões perniciosas, como a de hoje, que perturbam a lógica de um sistema saudável. Note-se que um sistema saudável não é aquele em que não há erros ou crimes (isso é o paraíso celeste), mas sim aquele onde erros e crimes são punidos, onde os actos têm consequências e onde as decisões têm lógica. De tudo isso Portugal está deficitário.

Qual é a lógica de o maior partido da oposição convidar o partido do Governo a modificar um regimento de forma a confrontar menos vezes (quatro vezes menos!) o primeiro-ministro no Parlamento? Qual é a lógica de a oposição desejar menos escrutínio e confronto parlamentar numa altura em que o governo passa dificuldades – covid, desemprego, recessão – e quando vem a caminho uma batelada de fundos europeus cuja aplicação deve ser vigiada? Qual é a lógica de a mais prestigiada democracia do planeta (a britânica) exigir ao primeiro-ministro respostas semanais aos deputados, enquanto neste grande torrão democrático se decide que basta uma visitinha a cada 60 dias (dez vezes menos!) ao Parlamento?

Sim, eu sei que Rui Rio deu as suas justificações. Mais valia ter ficado calado. Disse que “o primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais”, porque “tem é de trabalhar”; mostrou-se incomodado com a “gritaria”; declarou que os debates “desgastam a imagem” do Parlamento e que lhes falta “dignidade”. Em resumo, Rui Rio não aprecia o ambiente. Mas, em vez de aconselhar o PSD a fazer intervenções mais construtivas, preferiu acabar com os debates e deixar Costa “trabalhar” – porque ir a São Bento, claro está, não faz parte do trabalho.

Há tempos, escrevi que Rui Rio exalava um certo cheirinho a alto quadro da União Nacional. Mas isto já não é só cheirinho. É mesmo um banho de perfume húngaro. Até porque há dois argumentos para esta decisão abstrusa que Rio se esqueceu convenientemente de referir, mas que são evidentes e perigosos: 1) Esta é uma forma rasteira e pouco democrática de PSD e PS combaterem a ascensão dos pequenos partidos, que lhes estão a fazer mossa no Parlamento. 2) Rio está a estender a cama onde sonha um dia ir deitar-se, se chegar a primeiro-ministro.

O homem não engana. Não gosta de jornalistas. Não gosta de magistraturas. E não gosta de debates parlamentares. Há muita gente incomodada a olhar para André Ventura, mas começo a ter a sensação de que estamos a preocupar-nos com a pessoa errada. Talvez o culpado não seja o mordomo. Hoje é um dia negro para a democracia portuguesa – e quem tem as mãos sujas de tinta preta é Rui Rio.

Sem comentários: