Assassinado na rua. Arma que matou Bruno Candé é ilegal
Rtp, Notícias
EDITORIAL / PÚBLICO
Bruno Candé Marques, 39 anos, três filhos
O assassino de Bruno Marques era um racista. O caso tem
de ser investigado até às últimas consequências.
ANA SÁ LOPES
DIRECTORA-ADJUNTA
27 de Julho de
2020, 6:42
https://www.publico.pt/2020/07/27/politica/editorial/bruno-cande-marques-39-anos-tres-filhos-1925940
Um homem, Bruno
Candé Marques, 39 anos, três filhos, está sentado num banco da avenida
principal de Moscavide, um arredor de Lisboa. É sábado, uma da tarde, o cúmulo
da luz do dia. Um outro chega e dispara quatro tiros. O jovem actor é morto à
queima-roupa.
Ainda não sabemos
se foi um crime de ódio – se Bruno Candé Marques, nascido em Lisboa em 1980,
foi de facto assassinado por ser negro. Mas sabemos que o homem que o matou o
massacrou uns dias antes com insultos racistas. O assassino era racista. No
comunicado que fez, a família, que diz que o crime foi “premeditado e racista”,
conta que Bruno Candé Marques já tinha sido ameaçado de morte três dias antes
do assassinato, ameaças acompanhadas de “vários insultos racistas”.
Sabemos que um
homem racista matou um negro à hora do almoço numa rua de Moscavide. Ainda não
é claro se as motivações do assassino foram o ódio racial. A PSP, à partida,
afastou a motivação racista, a partir da audição de testemunhas do crime. Mas
tanto a deputada Joacine Katar Moreira como a Amnistia Internacional ou a
organização SOS Racismo afirmam que tal assim foi. Joacine: “Perde-se um filho
nas malhas do racismo que é todos os dias alimentado por muita gente.” SOS
Racismo: “O carácter premeditado do assassinato não deixa margem para dúvidas
de que se trata de um crime com motivações de ódio racial (…) 25 anos depois de
Alcino Monteiro ter sido assassinado por ser negro, hoje [sábado] foi a vez de
um homem negro morrer, em plena luz do dia, por motivos racistas.” A
extrema-direita veio concluir célere: “Não há neste caso um pingo de racismo”,
escreveu o deputado Ventura no seu Twitter. “Acabem lá com essa ladainha
habitual do racismo. Não somos um país racista! Nada neste homicídio aponta
para crime de ódio racial.”
A verdade é que
não sabemos. Sabemos apenas, segundo informação da família, que o assassino era
um racista. Mas temos de saber se assassinou Bruno Candé Marques por causa dos
seus preconceitos sobre a cor da pele ou se o fez por outra razão. Agora, o
tempo é da Justiça e o caso do assassínio às 13 horas da tarde em Moscavide tem
de ser investigado até às últimas consequências.
OPINIÃO
Erradicar o racismo é preciso, é possível e é nosso dever
Bruno Candé acabou assassinado, a confirmarem-se os
testemunhos, com motivações racistas.
RUI TAVARES
HISTORIADOR;
FUNDADOR DO LIVRE
27 de Julho de
2020, 6:05
Bruno Candé,
ator, 39 anos, homem negro, pai de três filhos, uma vida feita de escapar às
probabilidades, foi assassinado anteontem em Moscavide, na nossa terra, na
terra dele, à uma da tarde. Segundo a família e vários testemunhos, o assassino
já teria proferido insultos racistas contra a vítima dias antes ao tropeçar na
cadela que acompanhava Bruno Candé na sua convalescença, depois de ter sido
atropelado (com fuga) e ter ficado à beira da morte há cerca de três anos.
Ainda segundo testemunhos do homicídio, o assassinato terá dito “vai para a tua
terra” a Bruno Candé, enquanto o matava. A confirmar-se tudo isto, é um crime
racista de especial frieza, premeditação e violência, que não pode ficar impune
e que exige ao sistema judicial Justiça célere, eficaz e proporcional.
De nós, porém,
sociedade em geral, a vida e a morte de Bruno Candé exigem muito mais.
Comecemos por nos
aperceber como a vida de Bruno Candé é um exemplo daquela superação em relação
às circunstâncias a que muitos gostam de enquadrar como mérito. Nascido em
Portugal em 1980, de família oriunda da Guiné-Bissau, Bruno morou num dos
bairros mais estigmatizados da capital, a Zona J de Chelas. O sonho de ser ator
conseguiu cumpri-lo porque uma artista como Mónica Calle decidiu mudar a sua
companhia para a Zona J (quando o Cais do Sodré, onde esteve durante anos,
voltou a ficar na moda) e fazer um programa dedicado a ex-presidiários no qual
participou um vizinho de Bruno Candé, que depois o incentivou a vir também.
Bruno Candé não foi só ator, foi técnico, participou da intensa camaradagem
artística sem a qual não se faz uma companhia independente. Começou por
representar teatro de um autor alemão, Heiner Müller. Já depois do
atropelamento de que foi vítima voltou a fazer teatro, com uma peça sua em
torno da música de Jacques Brel Ne me quitte pas, que ouviu durante anos antes
de saber o francês suficiente para que a pudesse entender. Fez papéis em
telenovelas. Levou cultura ao interior do país. Em menos de quatro décadas de
vida está aqui tudo, mas mesmo tudo, o que se diz que é preciso para demonstrar
o tal “mérito” e “integrar-se” na sociedade. Para sermos francos, está mais do
que tudo: a maior parte de nós, eu incluído, teriam desistido com um décimo das
dificuldades por que Bruno Candé passou. E mais do que palavras caras, a vida
dele orientou-se por saber dar e saber receber. Como dizia António Variações na
música do mesmo nome, devia ser sempre a nossa forma de viver.
E no entanto está
ali tudo, e esse tudo não foi suficiente. Bruno Candé acabou assassinado, a
confirmarem-se os testemunhos, com motivações racistas. O que fazer perante uma
tal desproporção entre aquilo que ele deu aos seus próximos (à sua terra que um
racista lhe negaria) e aquilo que ele acabou por receber, quatro balas na via
pública?
Para a morte, não
há resposta. Mas há respostas. Certamente que Bruno Candé irá ser lembrado.
Seria de esperar que as câmaras municipais das suas terras — Lisboa e Loures —
se unissem para criar um prémio em seu nome, que dessem bolsas de estudo
inspiradas na sua vida a jovens que queiram ser atores, que apoiem projetos
como aqueles que levaram um jovem da Zona J de Chelas a fazer teatro alemão,
telenovelas portuguesas, levar cultura ao Alentejo com música em francês de um
cantor belga.
Mas de todos nós
a resposta tem de ser um compromisso cada vez maior em combater o racismo e
erradicá-lo. Sim: não minimizar nem legitimar nem aceitar o racismo, mas
recusá-lo sob todas as suas formas, até o erradicar.
Certamente haverá
quem estranhe tal objetivo, ou considere este programa demasiado ambicioso.
Mais estranho ainda é haver quem considere o racismo um absurdo, a mais
arbitrária das injustiças, um preconceito inaceitável — e depois aceitá-lo. Se
o racismo é tudo isso, o racismo tem de ser erradicável. E só ao ter a
erradicação do racismo nós conseguiremos combater o racismo eficazmente.
Porque não
deveria ser o racismo erradicável? Já houve na história preconceitos arreigados
que estão para todos os efeitos erradicados — e ao contrário da crença, o
processo da sua erradicação não foi lento e gradual: bastou um caso em meados
do século XVIII, o da italiana Cecília Farragó, para que a crença na bruxaria
das mulheres sofresse um rude golpe de que nunca mais recuperou. A escravatura
deixou de ser o sistema económico preponderante na maior parte do mundo. A
homossexualidade deixou de ser crime na maior parte do mundo. Embora seja
verdade que todos os avanços conquistados podem ser revertidos — veja-se o
recrudescimento do antissemitismo nas últimas décadas — é verdade também que
temos hoje o ingrediente principal deste combate numa geração para quem não
basta apenas alguém dizer-se “não-racista”, é preciso ser-se consistentemente antirracista.
Isto significa
também a cada passo responsabilizar todos aqueles que fomentam ou legitimam o
ódio racial, e desmascarar o oportunismo incendiário deles. É, como vemos, uma
tarefa permanente, mas necessária. Erradicar o racismo não é para um futuro
longínquo. É o nosso dever de hoje e de sempre, por Bruno Candé. Por todos os
Brunos. E por todos nós.
Historiador;
fundador do Livre
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