EDITORIAL
Precisamos de cidades compatíveis
Apoiar financeiramente a reconversão do mercado do
alojamento local em mercado de rendas acessíveis concilia uma oferta sem
procura com uma procura sem oferta.
AMÍLCAR CORREIA
DIRECTOR-ADJUNTO
29 de Julho de
2020, 5:30
O turismo teve um
impacto descarado na economia e no urbanismo das nossas cidades. A recuperação
económica dos últimos anos, quer no emprego, quer na construção, por exemplo, é
indissociável do capital que o país conseguiu obter como destino de férias
seguro e como local de investimento (por muito que esse emprego fosse precário
e o investimento em Lisboa e Algarve ficasse a dever alguma coisa aos vistos
gold). É uma constatação. Portugal foi descoberto. E foi moda.
A explosão de
procura, num contexto de grande mobilidade e de democraticidade das ligações
aéreas, teve como consequência a multiplicação de hotéis e, particularmente, de
alojamentos locais que ou ocuparam os edifícios devolutos dos centros
históricos abandonados ou expulsaram, por força do aumento do preço das rendas,
os residentes para zonas mais periféricas. O processo de “gentrificação”
ocorreu por todo o lado, porque o modelo assente na oferta turística é uma
indústria padronizada.
A pandemia teve
um efeito devastador na indústria da aviação e em toda a actividade turística.
É um facto: o número de novos alojamentos locais abertos em Abril passou para
níveis de 2014 e as taxas médias de ocupação em Maio rondavam os 5% em Lisboa e
os 3% no Porto.
Embora por vezes
muito discutível, o alojamento local teve o condão de fazer com que muitos
edifícios em ruína fossem recuperados, o que de outra forma não aconteceria.
Aos programas de reabilitação urbana faltou-lhes agilidade, rapidez e preços
competitivos. Acresce que a reabilitação se destinava, sobretudo, aos
quarteirões, ao passo que o que faziam os privados era recuperar casa a casa,
edifício a edifício.
Apoiar
financeiramente a reconversão do mercado do alojamento local em mercado de
rendas acessíveis — com o Estado a comparticipar a 50% a diferença entre a
renda paga e a renda recebida, como prevê o projecto de decreto-lei que o
Governo quer aprovar em breve — concilia uma oferta sem procura com uma procura
sem oferta. Acrescentar a isso a garantia de alojamento para pessoas em
situação de emergência já se parece com uma política de habitação.
A pandemia pode
ter como efeito o regresso dos residentes aos centros das cidades (as câmaras
de Lisboa e do Porto já o fazem de alguma forma) e o surgimento de um mercado
de arrendamento menos especulativo e mais ético. O deslumbramento acabou;
precisamos de cidades compatíveis. É assim que as cidades se corrigem e se regeneram.
HABITAÇÃO
Governo vai criar bolsa com 18.660 casas para
arrendamento acessível
Medida aguarda aprovação no Conselho de Ministros. Cerca
de 20% dos fogos podem ser cedidos às câmaras. Investimento público ascende a
2300 milhões de euros.
Victor Ferreira
Victor Ferreira
29 de Julho de 2020, 6:08
A lista
provisória inclui de tudo: está lá por exemplo a antiga sede da associação
académica da Universidade do Algarve, junto ao pólo das Gambelas, em Faro; ou o
edifício da antiga Escola Secundária Afonso Domingues, em Lisboa; o imóvel do
antigo hospital pediátrico de Coimbra ou o psiquiátrico Magalhães de Lemos em
Vila do Conde. Também há palácios devolutos, antigos conventos, moradias,
terrenos, quintas, apartamentos, blocos de apartamentos. Tudo isto será
integrado numa bolsa de imóveis que o Governo quer criar e que serão transformados,
com mais ou menos intervenção, em fogos para arrendamento a custo acessível.
Numa contagem
preliminar, foram identificados 18.660 fogos, dos quais pelo menos 20% estarão
em condições de serem transferidos para as autarquias. Outros poderão ser
entregues, por exemplo, a parcerias público-comunitárias, que terão de
reinvestir os rendimentos em projectos de desenvolvimento comunitário.
Essa é a
determinação do executivo que, contactado pelo PÚBLICO através do Ministério
das Infra-estruturas e da Habitação, recusou reagir sobre este tema. O diploma
continua a ser trabalhado mas poderá ser votado ainda esta semana pelo Conselho
de Ministros. Visa responder à falta de habitação a custo acessível, mas
responde igualmente à crise do sector da construção, atingido pela travagem
económica causada pela pandemia, visto mobilizar mais de dois mil milhões de
euros de investimento em obras.
Na prática, o
Governo encarregará o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) de
constituir a referida bolsa de imóveis “devolutos ou disponíveis" para
“aumentar a oferta de habitação com apoio público”, a “ser disponibilizada nos
termos do Programa de Arrendamento Acessível”, do “regime de arrendamento
apoiado”, do “regime de renda condicionada” e “do regime de habitação a custos
controlados”.
É desta forma que
o Governo pretende cumprir uma das respostas sociais que elencou no plano de
reacção à crise pandémica. A criação de um “parque habitacional público de
habitação a custos acessíveis” foi incluída no Programa de Estabilização
Económica e Social (PEES). Já nesse documento o Governo dizia que era preciso
“identificar os imóveis públicos disponíveis”, caracterizá-los e “avaliar da
sua aptidão" como habitação familiar.
Agora, na versão
preliminar do diploma a que o PÚBLICO teve acesso, contabiliza-se um
investimento directo do Estado na ordem dos 1700 milhões de euros, aos quais se
somarão mais cerca de 600 milhões de euros, que poderão ser assumidos por
autarquias e outras entidades. A primeira estimativa aponta, por isso, para um
investimentos na ordem dos 2376 milhões de euros, montante que ainda não inclui
a componente privada, que o Governo espera que venha a existir.
IHRU contrata
reforços
A receita legal,
que ainda está a ser cozinhada, prevê que passem para essa bolsa “os imóveis do
domínio privado da administração directa e indirecta do Estado e do sector
empresarial do Estado que sejam de uso habitacional”. Incluirá também “os
devolutos ou disponíveis, incluindo terrenos cujas condições e características
permitam a sua afectação àquele uso, directamente ou mediante processo de
reconversão ou de construção”.
O próprio diploma
inclui uma lista com todo o tipo de imóveis, em dezenas de concelhos de Norte a
Sul de Portugal continental. Além desses, passarão para a bolsa os que constam
da lista de património público a ser reabilitado para arrendamento acessível,
que fui publicada como anexo ao decreto-lei 94/2019.
Caberá ao IHRU
fazer a triagem dos que estão em condições, tendo o Governo prometido 48
milhões de euros no PEES (que passaram a um reforço de 55 milhões no Orçamento
Suplementar), para reforçar a capacidade de resposta deste instituto, para
contratação de 20 pessoas para este plano e outras despesas. Feita a bolsa, as
casas poderão ser cedidas para promoção municipal ou mesmo a outras entidades.
E quando ninguém as quiser, ficarão a cargo do próprio IHRU.
Neste último
caso, por sua vez, os imóveis poderão ser integrados no Fundo Nacional de
Reabilitação do Edificado (criado há quatro anos mas que até agora não fez uma
única obra). Outra hipótese será entregá-los à “promoção público-comunitária”,
isto é, a consórcios com entidades do terceiro sector, seleccionadas por
concurso, como cooperativas, associações de moradores ou outras entidades sem
fins lucrativos. Outra via será a concessão, por concurso, dos fogos a
entidades do sector privado e do sector cooperativo e social.
Reinvestir na
comunidade
As regras para a
concessão serão depois definidas por portaria do ministro Pedro Nuno Santos,
que actualmente tutela a habitação. O mesmo se aplicará às casas que venham a
ser assumidas pelas parcerias público-comunitárias. Nestes casos, o Governo
obriga a que “os rendimentos gerados pelos imóveis sejam “obrigatoriamente
reinvestidos em projectos de desenvolvimento comunitário, designadamente, na
melhoria do edificado e da sua envolvente ou na promoção de serviços à
comunidade, ou noutros empreendimentos de habitação”.
Para gerir o que
não for entregue a terceiros, o IHRU poderá recorrer a receitas provenientes do
Orçamento do Estado, receitas próprias ou a outras fontes, como fundos
europeus. Os rendimentos gerados pelos imóveis ficarão nos cofres do IHRU.
Quando um imóvel
pertence à administração pública indirecta ou ao sector empresarial do Estado,
a sua integração na bolsa obriga a acordo com o proprietário e com conhecimento
do membro do Governo que tutele essas entidades.
Para cedência aos
municípios, o IHRU consultará, num prazo de 30 dias a contar da data da
integração na bolsa, cada autarquia sobre imóveis localizados no respectivo
território. As câmaras que estiverem interessadas receberão as casas num prazo
que pode variar entre 18, 36 ou 60 meses, dependendo das obras que sejam
necessárias para garantir a habitabilidade.
Cada autarquia
terá 45 dias para responder e se quiser ficar com o imóvel verá a propriedade
transmitida através de auto de cessão, estando obrigada a indicar o prazo
máximo para a disponibilização para habitação e um prazo mínimo de 25 anos. Se
for preciso fazer obras, as câmaras poderão recorrer a apoios do IHRU, ao
Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas ou outras
fontes disponíveis.
tp.ocilbup@arierrefov
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