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OPINIÃO
A cornucópia da abundância
Precisávamos do dinheiro? Claro que sim, mas não a este
preço. O princípio de que quem paga manda é uma receita para o desastre, vai
alimentar o populismo, tornar indiferente em quem se vota, erodindo a
democracia, e, se há lição que se possa tirar da História, é que dá sempre
torto mais tarde ou mais cedo.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
25 de Julho de
2020, 0:05
Parece que vem aí
muito dinheiro. Embora o custo desse dinheiro nestes dias seja muito
indiferente a quase todos, dos de cima aos de baixo, esse dinheiro tem um
enorme preço: o pouco que já sobrava de Portugal como país independente. O
salto qualitativo deste dinheiro é a passagem de Portugal a um Estado dentro da
federação europeia. Estado não no sentido de nação mas de “região”, länder,
cuja política fiscal já era controlada a partir de Bruxelas e vai agora ter a
sua política económica e social igualmente controlada. Essas políticas servem
lógicas de “desenvolvimento” que correspondem aos interesses dos países do
Norte da Europa e políticas, políticas puras, que deixam de ser controladas
pelos eleitores portugueses e muito menos pelo Parlamento português, que é já, em
grande parte em tudo o que é importante, uma ficção.
Precisávamos do
dinheiro? Claro que sim, mas não a este preço. O princípio de que quem paga
manda é uma receita para o desastre, vai alimentar o populismo, tornar
indiferente em quem se vota, erodindo a democracia, e, se há lição que se possa
tirar da História, é que dá sempre torto mais tarde ou mais cedo. Os novos
estrangeirados que nos governam nunca levantarão um dedo, como se viu com a
história dos corredores turísticos, em que temos que aceitar que a Espanha ou o
Reino Unido possam ser “seguros” e o Algarve ou o Douro não, sendo que Portugal
tem instrumentos para defender os seus interesses mas não os usa. Por exemplo,
os acordos finais com o Reino Unido dependem dos votos dos países da União Europeia.
Uma coisa é ser pequeno e fraco e outra é ser subserviente.
Depois há toda
uma outra história com o dinheiro. O dinheiro não vem para um país que
subitamente se tornou capaz, com uma varinha mais que mágica, ou que se
transformou na Noruega ou na Finlândia. E se há coisa que se pode dizer desde
já é que exactamente o dinheiro funciona contra a mudança, tende a solidificar
tudo o que está mal. É difícil imaginar-se que uma administração como a
portuguesa, fortemente clientelar, que não premeia o mérito e a competência,
com largos lençóis de patrocinato e corrupção, sem densidade e know-how para
gerir tão importantes quantias, não vai desperdiçar muito do dinheiro que vamos
receber. Deitar muito dinheiro em cima de uma estrutura débil não a torna forte
e por isso não há que ter muitas ilusões.
Por outro lado,
do discurso da “iniciativa liberal”, basta ver as filas de espera que todos os
dias a imprensa económica noticia para se perceber como tudo se está organizar
nos lóbis privados para o ir lá buscar. Agora toda a gente é “digital” e
“verde”. O discurso legitimador destes lóbis é que o Estado vai desperdiçar
este dinheiro – o que é verdade –, mas esquece que as últimas décadas da
democracia são de uma história de corrupção, aproveitamento de ligações
políticas, privatizações obscuras, salamaleques à corte dos políticos. Acresce
que o nosso patronato não é particularmente competente, gere mal e considera
que as empresas são uma extensão do seu cofre. Isto também não muda por
intervenção divina.
Estamos
condenados ao atavismo do desperdício e da corrupção? Condenados não estamos,
mas há uma alta probabilidade de ser assim e mais vale ser realista do que
iludido. Só acreditando em milagres é que deixará de ser assim. Podemos fazer
alguma coisa? Pouco, mas alguma coisa é possível. No público e no privado há
excepções. O que nos seria mais útil era identificá-las rapidamente e começar
por aí, sem nunca esquecer que são excepções. Como o dinheiro é muito pode
acontecer que ainda sobre algum para obras de mérito. E alguma probabilidade de
que se consiga fazer algumas coisas estruturais do princípio ao fim. Podem vir
a custar-nos o triplo do necessário, mas se ficar obra solidamente feita, não é
mau.
Sem ilusões, mas responsáveis por nós mesmos, vamos
esperar que alguma coisa sobre de útil do festival de gastos. Já o que demos em
troca de soberania e democracia, isso vai ser muito difícil de recuperar
Podia-se
argumentar que tudo isto é um forte argumento para entregar o controlo do uso
do dinheiro a estrangeiros, mais do que já existe e vai existir. Foi um dos
argumentos dos “frugais”, que acham que podem dar lições de moral ao mundo. Não
podem, e seria muito pior. Já que estamos na vergonha de pedir, seria pior ter
que ouvir uma frase muito portuguesa dita aos nossos “pobrezinhos” por alguns
próceres da caridade: “pegue lá esta esmola mas não gaste em vinho.”
Sem ilusões, mas
responsáveis por nós mesmos, vamos esperar que alguma coisa sobre de útil do
festival de gastos. Já o que demos em troca de soberania e democracia, isso vai
ser muito difícil de recuperar.
Historiador
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