IMAGENS DE OVOODOCORVO |
Prime Minister question time ... |
OPINIÃO
Com o mau estado do Parlamento, a nação não pode estar
famosa
Mesmo que o debate quinzenal não seja trabalho digno de
primeiro-ministro, é trabalho fundamental para o líder da oposição. É uma pena
que Rui Rio não perceba isto.
SUSANA PERALTA
24 de Julho de
2020, 0:01
Chegou o dia do
ano em que assistimos ao debate do Estado da Nação, um momento importante no
escrutínio do Parlamento à atividade do governo. Infelizmente, ocorre na mesma
semana em que os dois maiores partidos enterraram o debate quinzenal com o
primeiro-ministro. Os debates passam a ocorrer de dois em dois meses, fora das
férias parlamentares, pelo que podemos esperar talvez uns cinco por ano. É
curto. O formato quinzenal atual nasceu em 2008 para substituir as visitas
mensais do primeiro-ministro ao Parlamento que, por sua vez, vinham dos anos
90, quando Guterres era primeiro-ministro. Ou seja: o PS e o PSD atrasaram o
relógio da democracia para o século passado.
Vale a pena
recordar que foi Paulo Portas, então líder do CDS-PP, que lançou o repto a José
Sócrates para este aceitar um “mecanismo de controlo democrático do governo”
que consistia numa sessão semanal de debate rápido com os deputados.
Provavelmente, Paulo Portas inspirava-se do modelo do Parlamento britânico, que
todas as quartas-feiras recebe o primeiro-ministro do meio dia ao meio dia e
meia para as lendárias PMQs (Prime Minister’s Questions). Num momento de
irrefletido otimismo, terá Portas imaginado que o Parlamento português poderia
colocar-se ao nível do britânico na qualidade do debate e do escrutínio? É
provável, mas a realidade voltou a ganhar e a nossa pobre democracia é o que é.
O artigo Parliamentary
Question Times: How Legislative Accountability Mechanisms Affect Mass Political
Engagement, publicado em 2014 por Rob Salmond no The Journal of Legislative
Studies, motiva a sua análise com o primeiro debate de Michael Howard como
líder do Partido Conservador com o primeiro-ministro Tony Blair, em novembro de
2003. Na altura, a BBC declarou que tinha sido um momento “contundente e
eletrizante” e o Financial Times disse que o debate tinha consolidado a
reputação do PMQ como o “momento alto da semana política”. Para o Daily
Telegraph, o PMQ é simplesmente o “best show in town”. Não é só no Reino Unido
que existe um debate deste género. Com as suas diferenças, por exemplo, no
caráter imprevisto das perguntas, a maior parte das democracias ocidentais tem
um debate parecido com o PMQ britânico. Em Westminster, o PMQ é um momento de
insultos, palmas, assobios e apupos. O PÚBLICO lembrou na terça-feira que
António Costa qualificou em 2013 os debates quinzenais de “uma das invenções
mais estúpidas” da Assembleia da República, que contribuiriam para a
deterioração das relações interpessoais entre os interlocutores. Parece-me
estranho que pessoas adultas num Parlamento não consigam distinguir picardia
política de ofensas pessoais, mas adiante. E se este lado colorido dos debates
com o primeiro-ministro tivesse a sua utilidade?
O artigo analisa
os dados do Comparative Study of Electoral Systems entre 1995 e 2002. Através
do comportamento de 29 mil indivíduos em diferentes países, mostra que a
qualidade dos debates (medida pelo número de discursos por hora) aumenta o
interesse dos cidadãos na política, o conhecimento político e a participação
eleitoral. Os momentos altos destes debates, um pouco por todo o mundo, são
reproduzidos nos meios de comunicação e transmitem posicionamentos políticos ao
eleitorado. O Global Parliamentary Report de 2017 também sublinha a importância
das perguntas orais aos membros do governo para informar e aumentar a
consciência acerca dos temas discutidos. A análise feita pelo autor não permite
descartar que os resultados tenham a explicação contrária, ou seja, que
cidadãos mais conhecedores, interessados e participativos forcem os políticos a
produzir debates de melhor qualidade. Mas estes debates são na mesma um sinal
de democracia saudável. Em Portugal, temos uma abstenção galopante e partes do
eleitorado, como os jovens, cada vez mais afastados da política. E estamos a
braços com a maior crise económica e social desde que medimos estas coisas.
Tudo isto exigia mais cuidado. Mas o Parlamento é aquela instituição em que
todos os partidos exceto o PS se manifestaram contra a nomeação de Mário
Centeno como governador do Banco de Portugal e isso não serviu de nada. Já está
habituado a ser mal tratado.
Rui Rio disse há
poucas semanas que os debates quinzenais impedem o primeiro-ministro de
trabalhar, como se submeter-se ao escrutínio do poder legislativo fosse uma
desprezível distração na agenda ocupada do chefe omnisciente e todo-poderoso.
Que o líder da oposição pense isto já é suficientemente mau. Que o declare
publicamente e ajude o partido do governo a acabar com os debates quinzenais
entra no domínio do trágico. O Parlamento é o lugar por excelência para fazer
oposição e os debates quinzenais servem para incomodar o governo. Ao líder da
oposição, exige-se que seja incómodo e não que ajude o primeiro-ministro quando
este decide que não quer ir ao Parlamento prestar contas. Já agora, à atenção
de Rui Rio, há outro artigo publicado também no The Journal of Legislative
Studies, em 2017, que tem o título sugestivo de How much power do oppositions
have? Comparing the opportunity structures of parliamentary oppositions in 21
democracies. Entre os instrumentos de poder da oposição analisados pelo autor
conta-se o PMQ à maneira de Westminster. Mesmo que não seja trabalho digno de
primeiro-ministro, é trabalho fundamental para o líder da oposição. É uma pena
que Rui Rio não perceba isto. Ou talvez perceba o suficiente para saber que
estes debates são frequentemente utilizados como palco para deputados e
deputadas com menor peso político. Nesse caso, o PS e o PSD coligaram-se para
retirar visibilidade à verdadeira oposição. Ficamos conversados.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário