quinta-feira, 23 de julho de 2020

Com o mau estado do Parlamento, a nação não pode estar famosa


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Prime Minister question time ...

OPINIÃO
Com o mau estado do Parlamento, a nação não pode estar famosa

Mesmo que o debate quinzenal não seja trabalho digno de primeiro-ministro, é trabalho fundamental para o líder da oposição. É uma pena que Rui Rio não perceba isto.

SUSANA PERALTA
24 de Julho de 2020, 0:01

Chegou o dia do ano em que assistimos ao debate do Estado da Nação, um momento importante no escrutínio do Parlamento à atividade do governo. Infelizmente, ocorre na mesma semana em que os dois maiores partidos enterraram o debate quinzenal com o primeiro-ministro. Os debates passam a ocorrer de dois em dois meses, fora das férias parlamentares, pelo que podemos esperar talvez uns cinco por ano. É curto. O formato quinzenal atual nasceu em 2008 para substituir as visitas mensais do primeiro-ministro ao Parlamento que, por sua vez, vinham dos anos 90, quando Guterres era primeiro-ministro. Ou seja: o PS e o PSD atrasaram o relógio da democracia para o século passado.

Vale a pena recordar que foi Paulo Portas, então líder do CDS-PP, que lançou o repto a José Sócrates para este aceitar um “mecanismo de controlo democrático do governo” que consistia numa sessão semanal de debate rápido com os deputados. Provavelmente, Paulo Portas inspirava-se do modelo do Parlamento britânico, que todas as quartas-feiras recebe o primeiro-ministro do meio dia ao meio dia e meia para as lendárias PMQs (Prime Minister’s Questions). Num momento de irrefletido otimismo, terá Portas imaginado que o Parlamento português poderia colocar-se ao nível do britânico na qualidade do debate e do escrutínio? É provável, mas a realidade voltou a ganhar e a nossa pobre democracia é o que é.

O artigo Parliamentary Question Times: How Legislative Accountability Mechanisms Affect Mass Political Engagement, publicado em 2014 por Rob Salmond no The Journal of Legislative Studies, motiva a sua análise com o primeiro debate de Michael Howard como líder do Partido Conservador com o primeiro-ministro Tony Blair, em novembro de 2003. Na altura, a BBC declarou que tinha sido um momento “contundente e eletrizante” e o Financial Times disse que o debate tinha consolidado a reputação do PMQ como o “momento alto da semana política”. Para o Daily Telegraph, o PMQ é simplesmente o “best show in town”. Não é só no Reino Unido que existe um debate deste género. Com as suas diferenças, por exemplo, no caráter imprevisto das perguntas, a maior parte das democracias ocidentais tem um debate parecido com o PMQ britânico. Em Westminster, o PMQ é um momento de insultos, palmas, assobios e apupos. O PÚBLICO lembrou na terça-feira que António Costa qualificou em 2013 os debates quinzenais de “uma das invenções mais estúpidas” da Assembleia da República, que contribuiriam para a deterioração das relações interpessoais entre os interlocutores. Parece-me estranho que pessoas adultas num Parlamento não consigam distinguir picardia política de ofensas pessoais, mas adiante. E se este lado colorido dos debates com o primeiro-ministro tivesse a sua utilidade?

O artigo analisa os dados do Comparative Study of Electoral Systems entre 1995 e 2002. Através do comportamento de 29 mil indivíduos em diferentes países, mostra que a qualidade dos debates (medida pelo número de discursos por hora) aumenta o interesse dos cidadãos na política, o conhecimento político e a participação eleitoral. Os momentos altos destes debates, um pouco por todo o mundo, são reproduzidos nos meios de comunicação e transmitem posicionamentos políticos ao eleitorado. O Global Parliamentary Report de 2017 também sublinha a importância das perguntas orais aos membros do governo para informar e aumentar a consciência acerca dos temas discutidos. A análise feita pelo autor não permite descartar que os resultados tenham a explicação contrária, ou seja, que cidadãos mais conhecedores, interessados e participativos forcem os políticos a produzir debates de melhor qualidade. Mas estes debates são na mesma um sinal de democracia saudável. Em Portugal, temos uma abstenção galopante e partes do eleitorado, como os jovens, cada vez mais afastados da política. E estamos a braços com a maior crise económica e social desde que medimos estas coisas. Tudo isto exigia mais cuidado. Mas o Parlamento é aquela instituição em que todos os partidos exceto o PS se manifestaram contra a nomeação de Mário Centeno como governador do Banco de Portugal e isso não serviu de nada. Já está habituado a ser mal tratado.

Rui Rio disse há poucas semanas que os debates quinzenais impedem o primeiro-ministro de trabalhar, como se submeter-se ao escrutínio do poder legislativo fosse uma desprezível distração na agenda ocupada do chefe omnisciente e todo-poderoso. Que o líder da oposição pense isto já é suficientemente mau. Que o declare publicamente e ajude o partido do governo a acabar com os debates quinzenais entra no domínio do trágico. O Parlamento é o lugar por excelência para fazer oposição e os debates quinzenais servem para incomodar o governo. Ao líder da oposição, exige-se que seja incómodo e não que ajude o primeiro-ministro quando este decide que não quer ir ao Parlamento prestar contas. Já agora, à atenção de Rui Rio, há outro artigo publicado também no The Journal of Legislative Studies, em 2017, que tem o título sugestivo de How much power do oppositions have? Comparing the opportunity structures of parliamentary oppositions in 21 democracies. Entre os instrumentos de poder da oposição analisados pelo autor conta-se o PMQ à maneira de Westminster. Mesmo que não seja trabalho digno de primeiro-ministro, é trabalho fundamental para o líder da oposição. É uma pena que Rui Rio não perceba isto. Ou talvez perceba o suficiente para saber que estes debates são frequentemente utilizados como palco para deputados e deputadas com menor peso político. Nesse caso, o PS e o PSD coligaram-se para retirar visibilidade à verdadeira oposição. Ficamos conversados.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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