OPINIÃO
E se partíssemos tudo?
Não se creia que o episódio do Novo Banco é só mais um
que o povo português, sereno, submisso, impotente, vai tolerar, porque não tem
capacidade, suscetibilidade, para ser duro. As pessoas estão fartas.
Jorge Barreto
Xavier
1 de Agosto de
2020, 0:14
Ao ler o PÚBLICO
do passado dia 28 de Julho, ficámos a conhecer uma certa forma de fazer
negócios. Resumindo a notícia: no dia 10 de Outubro de 2018, o Fundo Anchorage
comprou 13.000 imóveis ao Novo Banco por 364 milhões de euros. A avaliação dos
imóveis nas contas do banco era de 631 milhões de euros. Ou seja, os imóveis
foram vendidos ao Fundo em causa com um “desconto” de 42%. Menos 267 milhões de
euros.
O Novo Banco
considerou, nas suas contas, o valor de 267 milhões de euros como prejuízo. E
pediu ao Fundo de Resolução – um Fundo em que o montante alocado a necessidades
do Novo Banco é constituído, em 80%, por dinheiro do Estado (ou seja, dos
contribuintes) – que pagasse 260 milhões de euros deste prejuízo. O Novo Banco
fez mais: emprestou ao comprador dos referidos imóveis – o Fundo Anchorage – o
dinheiro para os comprar, tendo as casas por garantia. Portanto, qual o risco
do comprador? Comprou por quase metade do preço as casas, com dinheiro
emprestado pelo próprio vendedor para o efeito. Qual o risco do vendedor?
Vendeu por quase a metade do preço e compensou o prejuízo com dinheiro do Fundo
de Resolução, essencialmente, constituído com dinheiro dos contribuintes. Quem
são os compradores? Não fazemos a mínima ideia – podem ser pessoas ligadas ao
Novo Banco, ligadas a empresas que compraram o Novo Banco, pode até ser o Rato
Mickey. É que atrás do nome Fundo Anchorage, pela legislação em vigor, é
impossível saber quem são, no concreto, os seus beneficiários.
Podemos achar que
esta situação é completamente anormal. E é. Mas convém dizer que esta
anormalidade é uma quase normalidade no sistema financeiro. O sistema está
cheio de expedientes deste género: compradores que compram com risco zero ou
próximo do zero; vendedores que vendem com risco zero ou próximo do zero;
contribuintes que pagam a fatura. O sistema financeiro está habituado a
internalizar os lucros e a externalizar os prejuízos. Quando há lucros,
banqueiros, donos de bancos, empresários, milionários, e mesmo espertalhões
recém-chegados, beneficiam. Milhões, não tostões. Quando há prejuízos, Estados
e contribuintes pagam. Milhões, não tostões.
Àqueles de nós
que dependemos do esforço do trabalho e não de rendas, é levado pelo Estado,
diretamente, entre IRS e Segurança Social, todos os anos, 20% a 50% do
rendimento (a que se soma o que se paga de impostos indiretos). Parte
importante do nosso tempo de trabalho, do resultado do nosso esforço, serve
para o Estado pagar a bancos que pagam a milionários para serem ainda mais
ricos.
Só para falar em
episódios recentes, é ver a história da crise financeira internacional que se
iniciou em 2008 (e vale a pena lembrar os esquemas desonestos que o sistema
financeiro praticou e que provocaram essa crise, demonstrando a relação mais
que efetiva entre sistema financeiro e economia real).
É também o que se
passa, provavelmente, com esta lamentável história que a notícia do PÚBLICO
revela. Tudo legal, claro. Porque a lei nem sempre está do lado dos lesados.
Pode até dizer-se que a lei serve, muitas vezes, os infratores – a realidade
dos factos demonstra-o.
Muito do que
disse até agora são generalizações. E, como todas as generalizações, estas pode
provocar uma leitura injusta da realidade.
Quer dizer: há
banqueiros honestos, há milionários honestos, há juristas cuja tarefa na vida
não é andar a fintar o sentido da justiça.
Todavia, pode
haver um sentimento de raiva – é esta a palavra – quando sabemos destas
vergonhas. Raiva, sim, por verificarmos que não nos respeitam, a nós, cidadãos
que não andamos na roda viva das bolsas, dos bancos, dos hedge funds, dos
mercados primários e secundários, etc. Porque nos dizem que vivemos numa
sociedade democrática, concorrencial, socialmente responsável.
Não podemos
continuar a esperar que o sistema de governo e de justiça – sistemas que
representam a soberania que, dizem, reside no povo (!) – demorem anos, dezenas
de anos, a agir, por falhas dos próprios sistemas, por incúria ou por
conivência. Por vezes, estes sistemas parecem máquinas de fazer esquecer. Nas
demoras, delongas, nas esperas, vem o olvido e volta-se ao ramerrão do dia a
dia entre o horário de trabalho, as preocupações com as necessidades da
família, as contas e as tentativas de ter alguns momentos de relaxamento para
lá do esforço excessivo, face a rendimentos manifestamente baixos, para a
maioria da população.
E se partíssemos
tudo? Se agarrássemos em chicotes, se fizéssemos como Jesus Cristo ao expulsar
os vendilhões do Templo? Se em vez de procurar reformar um sistema podre o
destruíssemos? Se em vez de reformas fizéssemos a revolução? Se necessário, uma
revolução sangrenta?
Não, eu não penso
assim. Mas quero salientar este pensamento. Quero salientá-lo porque os
excessos, os abusos do sistema financeiro estão a minar gravemente as
instituições internacionais e nacionais – e a aumentar o número daqueles que
pensam assim. Que encontram até uma certa beleza e entusiasmo ao pensar assim.
A erosão que está a ser provocada nos Estados, nos cidadãos, nas economias, nas
sociedades, está a gerar de forma crescente núcleos de revolta, de raiva, de
extremismo, organizados em torno de projetos políticos alternativos.
Estes núcleos não
são, exclusivamente, alimentados por verdades que revelam atitudes miseráveis.
São, também, alimentados por desinformação, fake news, deepfake, enfim, vários
sistemas de intoxicação na comunicação, promovidos, deliberadamente, por
Estados, entidades e grupos interessados em desestabilizar.
As instituições
estatais têm revelado uma enorme incapacidade em responder à justa demanda dos
cidadãos pelas reformas que possam impedir os desmandos a que temos estado
sujeitos. E é face a esta incapacidade, na qual os partidos dominantes nos
sistemas democráticos têm evidentes responsabilidades, assim como as
instituições privadas mais influentes, é face a esta incapacidade que crescem
organizações que se alimentam do ressentimento, do ódio, da raiva, criando
propostas alternativas.
Ainda por cima, a
crise sanitária que estamos a viver amplia o desânimo e os sentimentos
negativos. Com a Ultra Depressão (sim, é mais que uma Grande Depressão)
associada, nos próximos anos, a insatisfação, frustração, pânico, perda de
emprego, de rendimentos e diante de todos os problemas pessoais e sociais
inerentes.
Mais ou menos
visíveis, andam por aí muitos predadores do bem comum. E os sistemas
democráticos não estão a demonstrar capacidade para proteger os cidadãos das
dinâmicas de predação
Estamos no Verão.
Portugal quer ir a banhos. Mas este é um momento chave para as instituições
democráticas.
O momento em que
se revelam grandes líderes ou a sua ausência. Um momento crítico para evitar a
predação de parte importante dos eleitorados insatisfeitos por forças
extremistas.
O momento em que
tem de haver quem nos convença que não é preciso partir tudo, quem nos convença
que o sistema é reformável, a bem da maioria, da cidadania, da equidade.
Não se creia que
este é só mais um episódio que o povo português, sereno, submisso, impotente,
vai tolerar, porque não tem capacidade, suscetibilidade, para ser duro. As
pessoas estão fartas. E as maiorias (e grandes minorias) não veem nas
discussões palacianas, nos temas fraturantes, nos grandes debates intelectuais,
elementos que correspondam ao seu pensar e sentir, a uma melhoria efetiva das
suas condições de vida e dos sistemas públicos de justiça, de democracia.
Sistemas que impeçam e punam comportamentos lesivos da comunidade, como aquele
exemplo do Novo Banco com que comecei este texto, entre tantos outros.
Mais ou menos visíveis,
andam por aí muitos predadores do bem comum. E os sistemas democráticos não
estão a demonstrar capacidade para proteger os cidadãos das dinâmicas de
predação. É aí que se começa a perguntar: será que a democracia funciona? Isto,
esta confusão em que vivemos, é que é a democracia? E se partíssemos tudo?
Ex-secretário de
Estado da Cultura; professor universitário
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