IMAGENS DE OVOODOCORVO
"Let us not reduce the European Union to an
ATM"
David Sassoli / Presidente
do Parlamento Europeu
ANÁLISE
CORONAVÍRUS
O “momento multibanco” da União Europeia
23 de Julho de
2020, 11:05
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
1. Num discurso
efectuado a 17/07/2020, nas vésperas do Conselho Europeu extraordinário sobre
Quadro Financeiro Plurianual (QFP) e o Plano de Recuperação para a Europa, o
Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, falou na necessidade de “não
reduzirmos a União Europeia a uma caixa multibanco”. Este é talvez o melhor
epíteto que poderíamos encontrar para a discussão orçamental: o “momento
multibanco” da União Europeia. Para além dos avisos já gastos de que seria o
fim União Europeia se não houvesse acordo — já lemos e ouvimos isto tantas
vezes que se tornou uma retórica completamente fútil e vazia —, o que esteve em
causa são normais (e sublinho a palavra “normais” em democracia) divergências e
lutas políticas numa discussão orçamental desta envergadura. É necessário notar
que, por um acaso de circunstâncias, se juntaram dois temas intrinsecamente
difíceis: as negociações do Quadro Financeiro Plurianual (QFP 2021-2027) —
qualquer negociação anterior de um orçamento de longo prazo sempre foi, à
partida, objecto de posições divergentes entre os Estados-membros — e o Plano
de Recuperação para a Europa devido ao impacto desastroso da pandemia da
covid-19 na economia. Assim, o mais importante é compreendermos bem a
complexidade europeia e dos seus processos político em vez de nos perdermos com
a retórica inútil do fim da União Europeia e em analogias históricas
discutíveis.
2. Em Maio de
2020, na altura da proposta franco-alemã e do Plano da Comissão, as referências
grandiosas a momentos do passado e a (supostas) analogias históricas, não
faltaram. Alguns viram aí travessia do Rubicão feita por Angela Merkel, levando
consigo atrás a União Europeia — um ponto de não retorno tal como ocorreu Júlio
César no século I a.C., que ignorou a proibição do Senado e prosseguiu com os
seus exércitos em direcção a Roma. Agora Angela Merkel e Emmanuel Macron
levavam a União em direcção a uma imparável mutualização/federalização da
dívida. Todavia, o resultado dessa travessia do Rubicão foi provocar a segunda
guerra civil da República Romana, o que, se usarmos plenamente a analogia
histórica, não augura nada de bom para a União Europeia.
Outros
(re)descobriram as virtudes de Alexander Hamilton (um nome obscuro para muitos
europeus), o primeiro Secretário do Tesouro/Ministro das Finanças dos Estados
Unidos da América (EUA) em finais do século XVIII. Sob a sua iniciativa, a
dívida da guerra da independência das antigas colónias britânicas foi
federalizada. Na União Europeia estaríamos agora perante um “momento
halmiltoniano” de mutualização / federalização da dívida. Para além das enormes
diferenças entre os EUA de finais do século XVIII e a União Europeia do século
XXI, aparentemente ninguém se lembrou na Europa que Alexander Hamilton é também
o mentor do proteccionismo norte-americano — um pioneiro do America first — e que
a “guerra de tarifas”, tão ao gosto de Donald Trump, está próxima das teses de
hamiltonianas. O argumento proteccionista clássico está bem delineado no Report
on Manufactures/Relatório sobre as Manufacturas de 1791.
3. Analogias
históricas à parte, com actual grau de integração da União Europeia — uma união
económica e monetária — as questões políticas internas dos Estados-membros
projectam-se, de forma natural, na política europeia. Há vários grupos de
Estados, institucionalizados ou informais, que se têm criado dentro desta, os
quais são hoje uma parte crucial dos seus processos políticos. Provavelmente,
ainda não são bem percebidas as múltiplas implicações que daí resultam em toda
a sua amplitude. Alguns, seduzidos pela retórica de Emmanuel Macron, imaginam a
União Europeia ainda nos “bons velhos tempos” do eixo franco-alemão, uma
espécie G2 constituído pela França e pela Alemanha. É verdade que esse é um
grupo matricial da União Europeia, mas também já se alterou substancialmente.
Originalmente, nos anos 1950, o poder estava de facto na França. A Alemanha
secundava quase sempre, sem questionar, as posições francesas. (A Alemanha
pagava, a França mandava e os outros eram quase sempre “bons alunos”, ou seja,
alinhavam sem mais.)
Hoje a realidade
é outra, sendo clara a predominância germânica (e de Angela Merkel), apesar dos
esforços de Emmanuel Macron em manter a relevância do passado. Mas, para além
do G2, há realidades cada vez mais importantes e complexas na política europeia,
como muitos terão descoberto, talvez com grande surpresa, sobretudo aqueles
onde prevaleceu o quadro de wishful thinking de que a saída britânica seria um
“regresso ao paraíso” primordial de concórdia da União. Só que isso nunca
existiu, como lembra facilmente o episódio do abandono unilateral das reuniões
do Conselho, ocorrido entre 1965 e 1966, efectuado pela França do general de
Gaulle. E na altura os britânicos não tiveram a culpa, pois nem eram membros.
Hoje não faltariam Cassandras — não as da mitologia clássica grega, mas aquelas
que logo aparecem sempre que ocorre uma crise ou dificuldade política maior,
profetizando, com aura de seriedade, o fim da União Europeia.
4. Nesta
discussão orçamental emergiu de rompante o “Grupo dos Frugais” 4+1 (Holanda,
Áustria, Suécia, Dinamarca) mais a Finlândia, país que mostrou grande
proximidade de posições com esse grupo. São, grosso modo, pequenas ou médias
economias ricas do Norte da Europa que partilham em comum similar visão
orçamental — muito contida, ou muito egoísta, consoante as perspectivas —,
sendo todos contribuintes líquidos do orçamento da União. No pólo oposto esteve
o grupo dos “Amigos da Coesão”, 15 Estados beneficiários líquidos dos orçamento
europeu (Bulgária, República Checa, Chipre, Estónia, Grécia, Hungria, Letónia,
Lituânia, Malta, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Eslovénia e Espanha),
do Sul, do Centro e do Leste europeu, a grande maioria pequenas ou médias
economias também.
Num outro plano
posicionou-se o Grupo de Visegrado (Polónia, Hungria, República Checa e
Eslováquia), uma aliança política que marca sobretudo as diferenças desses 4
Estados face aos valores liberais do Ocidente europeu, como evidencia
ruidosamente o Primeiro-Ministro da Hungria, Viktor Orbán. Há ainda a chamada
“Nova Liga Hanseática” (Dinamarca, Estónia, Finlândia, Irlanda, Letónia,
Lituânia, Holanda e Suécia), um grupo informal de 8 Estados da Europa do Norte
que tendem a ter pontos de vista similares nas discussões sobre a arquitectura
da união económica e monetária. Há um bom exemplo recente da sua influência. Os
membros desse grupo que fazem parte da Zona Euro tiverem um papel decisivo na
eleição do Ministro Irlandês das Finanças, Paschal Donohoe, para o seu
presidente, derrotando a espanhola Nadia Calviño, apoiada pelo G2 e por alguns
dos “Amigos da Coesão” como Portugal.
5. Para
compreender as divergências políticas à volta do “momento multibanco” da União
Europeia é necessário olhar para a política interna dos protagonistas das
negociações sobre QFP e o Plano de Recuperação para a Europa mostra isso. O Sul
da Europa é em geral o mais afectado pela pandemia, mas também tem governos
politicamente frágeis. Portugal com um governo minoritário do Partido
Socialista; a Espanha com um governo de coligação dispondo de uma maioria
parlamentar à tangente, formada pelo PSOE e Podemos e que depende crucialmente
do apoio de partidos nacionalistas do País Basco e da Catalunha; a Itália com
um governo de coligação frágil entre o M5S e o Partido Democrático, chefiado
por Giuseppe Conte, que até agora conseguiu resistir à crónica instabilidade
política italiana. (No Sul, ironicamente, a Grécia nesta altura tem o governo
mais estável, com uma maioria da Nova Democracia). Dada sua fragilidade
política — e as enormes dificuldades económicas que se antecipam devido ao
brutal impacto da covid-19 na actividade económica — estes governos, mais do
que outros, dependem crucialmente da União Europeia. A generosidade dos apoios
financeiros da União Europeia é, assim, duplamente crucial: para lidarem com a
crise económica e para se manterem no poder.
A favor destes
países jogou o facto de na Alemanha, que vai ter eleições parlamentares em
Setembro ou Outubro de 2021, Angela Merkel não concorrer a chanceler. Assim
Angela Merkel pode desligar — muito mais do que faria noutras circunstâncias —,
a sua acção europeia da política interna. Contra estes países jogou o facto de
na Holanda irem ocorrer eleições parlamentares em Março de 2021 e o actual
primeiro-ministro — Mark Rutte — ser novamente candidato. Ocorre ainda que na
Holanda o eleitorado é largamente favorável à redução das contribuições do país
para a União Europeia, ou seja, essa vontade vai além da sua área política de
centro-direita. Esta é, aliás, uma característica bastante transversal ao
eleitorado da generalidade dos países (ricos) do Norte da Europa. Ao contrário
da maneira usual de retratar a política da União Europeia no Sul da Europa —
que vê logo nestas divergências políticas graves anomalias de solidariedade —
estas são divergências normais tendo em conta a heterogeneidade europeia e a
luta política subjacente a qualquer processo político democrático.
6. Com o acordo
político de 21 de Julho de 2020 obtido no longo Conselho Europeu — que alterou,
em maior ou menor grau, consoante as matérias, as propostas anteriores da
Comissão sobre o QFP e o Plano de Recuperação da Europa —, todos puderem
reclamar vitória. Como habitualmente, cada um acentua a faceta que mais lhe
convém. Do lado dos beneficiários líquidos como Portugal, Espanha e Itália, o
que se vai receber da União, enaltecendo a solidariedade europeia e proclamando
o seu europeísmo; do lado dos
contribuintes líquidos, como a Holanda, a Áustria, a Suécia e a
Dinamarca, o que não se vai pagar — os reembolsos obtidos — e os mecanismos de
condicionalidade introduzidos no acesso aos fundos (incluindo aqui a nova
possibilidade de parar temporariamente o processo por sérios desvios de um Estado-membro em
relação ao cumprimento satisfatório dos objectivos e metas relevantes, levando
ao assunto a discussão do Conselho Europeu
— veremos, na prática como isso será usado); e, ainda, do lado do Grupo
de Visegrado, o quase afastamento da condicionalidade ligada ao Estado de
Direito, que ficou reduzida a uma vaga declaração de princípio.
Olhando, todavia,
para os objectivos e valores descritos inicialmente no Plano da Comissão e para
as diversas alianças negociais, há interrogações interessantes que ficam no ar.
Uma interrogação importante que não tem sido colocada é sobre a razão pela qual
a França e Alemanha — estando ambas empenhadas em manter a lógica e valores
iniciais do Plano da Comissão — não se dispuseram a aumentar as suas
contribuições para o orçamento da União Europeia, substituindo-se, no todo ou
em parte, ao valor que Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca e também Finlândia
não quiseram pagar (segundo estes, não podem pagar). Assim, provavelmente seria
possível manter o nível de subvenções inicial, ou seja, de apoios financeiros
sem necessidade de reembolso e evitar a condicionalidade introduzida sob
pressão do Grupo dos Frugais.
7. Como já
notado, na realidade o Plano de Recuperação da Europa da Comissão até foi
bastante alterado. Os 500 mil milhões de Euros de subsídios e 250 mil milhões
de empréstimos, passaram para 390 mil milhões de Euros de subsídios e 360 mil
milhões de empréstimos. Para os mais distraídos, continuou a poder falar-se no
mesmo número global sonante — um slogan de 750 mil milhões de Euros —, como se
fosse a mesma coisa. Claro que não é. Mas é necessário notar ainda que a
pergunta anteriormente colocada é muito incómoda para a Alemanha, pois é para
onde toda a gente se vira a nível europeu, quando é necessário um apoio
financeiro de alguma dimensão, como mostrou a crise anterior. Para a França,
ninguém olha da mesma maneira pois tornou-se já muito evidente que não tem essa
capacidade, nem poder. Sob a aparência de um paritário G2, há uma lógica muito
diferente de ambos os Estados, com primazia para a Alemanha, apesar de na
superficialidade poder não ser óbvia.
Com Angela
Merkel, a Alemanha conseguiu a notável proeza de ficar com uma impecável imagem
europeísta e ser um dos maiores beneficiários da dureza negocial de Mark Rutte
e dos seus colegas frugais. Os números finais acordados são reveladores: é o
país que tem o maior desconto orçamental, mantendo os seus 3,671 mil milhões de
Euros de reembolso/ano (o segundo é a Holanda que aumentou, de facto, o seu
reembolso para 1,921 mil milhões de Euros/ano; a Suécia, a Áustria e a
Dinamarca também o conseguiram). Por outras palavras, passando quase
despercebida, a Alemanha, à boleia do Grupo dos Frugais, irá ter em 2021-2027
um total reembolsos de 25,697 mil milhões de Euros do orçamento europeu.
Aspecto importante a reter, a França — país com o qual supostamente estaria em
total sintonia —, queria acabar com tais reembolsos do orçamento europeu.
Vejamos melhor a hábil estratégia alemã.
8. Ao contrário
de Emmanuel Macron, que procura quase sempre o protagonismo, como também aqui
se viu, e se envolveu em tricas políticas desnecessárias, Angela Merkel foi
muito mais prudente, e, sobretudo, politicamente inteligente. Para lidar com a
actual crise gerada pela pandemia da covid-19 a nível europeu, Angela Merkel
percebeu que precisava de Emmanuel de Macron para a coreografia política. O
plano inicial de um fundo recuperação de 500 mil milhões de Euros surgiu num
timing perfeito para a Alemanha: retirou o pesado ónus que estava a ter na
opinião pública europeia a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão
sobre a compra de dívida pública pelo Banco Central Europeu (BCE). Para além
disso, como notado, Angela Merkel não é candidata a novas eleições e podia
ignorar os críticos internos — que são sobretudo da área do seu próprio partido
e mais à direita —, dispondo-se a aceitar, a título excepcional, um certa dose
de mutualização da dívida a nível europeu. Ao mesmo tempo, delegou a tarefa de
“maus da fita” ao Grupo dos Frugais, deixando a atitude de dureza negocial
sobretudo para Mark Rutte, postura que provavelmente desagradou muito menos a
Angela Merkel do que muitos imaginam (continua, no essencial, próxima da lógica
orçamental alemã). Não foi por acaso que, quase sempre se manteve discreta no
Conselho Europeu, como os mais atentos notaram.
Quanto à tarefa
de enfant terrible europeísta ficou entregue a Emmanuel Macron, deixando-o
acreditar que o seu país ainda mantém a influência Europa, como nos tempos de
Charles de Gaulle ou de François Miterrand. É bom para a imagem externa da
Alemanha deixar esse protagonismo, com pouco poder real, para a França, pois os
estereótipos do nazismo reemergem com facilidade, como a crise anterior da Zona
Euro mostrou. (Basta lembrar as vezes que Angela Merkel foi caricaturada como
nazi, em especial devido à sua dureza negocial com a Grécia, que desenterrou
também a questão das indemnizações da II Guerra Mundial não pagas pela
Alemanha).
Mas tudo isto
poderia ser motivo para um enredo de uma nova obra de ficção do escritor
austríaco Robert Menasse, que já publicou A Capital (trad. port. Dom Quixote,
2019), uma imperdível sátira sobre meandros da política e burocracia europeia,
com imenso humor à mistura. Agora há um novo título: “o momento multibanco da
União Europeia”.
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