Testemunhas ouviram insultos racistas contra Bruno Candé.
“Tenho armas do Ultramar e vou-te matar”
Assassinato ocorreu em plena Avenida de Moscavide no
sábado. Na quarta-feira vários comerciantes da zona ouviram Bruno Candé ser
alvo de insultos racista proferidos pelo arguido, que terá também ameaçado
matá-lo. Homem de 76 anos ficou em prisão preventiva por homicídio qualificado
e posse de arma ilegal.
Joana Gorjão
Henriques 27 de Julho de 2020, 21:26
Depois do
acidente de bicicleta que lhe deixou o lado esquerdo do corpo com limitações
motoras, o actor Bruno Candé Marques, de 39 anos, andava bastante a pé. Já
durante a pandemia de covid-19 era frequente ir ao café na Avenida de
Moscavide, perto de casa. Precisava de ver pessoas, conta a sobrinha, Andreia.
Esta segunda-feira, o banco onde se costumava sentar com a cadela “Pepa” tem
flores e bilhetes de homenagem a lembrar o homem, o pai de três filhos, o irmão
de cinco, o actor.
Bruno Candé
Marques foi assassinado no sábado pelas 13h, alegadamente por um homem de 76
anos que terá disparado contra ele três tiros de uma arma em pleno dia, segundo
fonte policial. O alegado homicida, que está em prisão preventiva por homicídio
qualificado e posse de arma ilegal, seria imobilizado por dois homens até a PSP
chegar. Casado, o arguido era auxiliar de acção médica e irá ficar em prisão
preventiva na cadeia de Lisboa, tendo como advogada oficiosa Alexandra Bordalo
Gonçalves, presidente do conselho de deontologia de Lisboa da Ordem dos
Advogados.
Os testemunhos
recolhidos pelo PÚBLICO no local dão conta de que o homem começou, na
quarta-feira, por implicar com a cadela “Pepa” até terminar num rol de insultos
racistas: “preto vai para a tua terra” e “volta para a senzala”. A família, em
comunicado enviado no sábado, falava de antecedentes quanto a insultos e
alegava “que fica evidente o carácter premeditado e racista deste crime
hediondo”.
A rua em que
Bruno Candé morreu tem sobretudo comércio — lojas de roupa, cafés, oculistas,
ourivesarias, garrafeiras — por isso no sábado várias pessoas testemunharam o
crime.
Marcos Rodrigues,
dono de um café ao qual o actor costumava ir, relata que na quarta-feira, o
actor estava sentado no banco com a sua cadela. Ouviu o alegado homicida a
“insulta-lo”. Como? Disse “que ele era preto, que ele tinha que estar na
senzala, que ele ia violar a mãe dele.” Isto aos berros, recorda. Foi aí que
Marcos viu Bruno a levantar-se e a dizer: ‘“Você não fala mais assim da minha
mãe”. O dono do café não tem qualquer dúvida de que foram insultos racistas:
“Com certeza que é racista”, afirma. “O Bruno nunca fez mal a ninguém.”
Também a mulher,
Vânia Rodrigues, viu Bruno Candé e o suspeito envolvidos numa discussão nessa
mesma quarta-feira. Conhecia Bruno Candé, por ser cliente habitual, mas nunca
tinha visto o alegado homicida: “O Bruno estava mais calmo, o velhote andava
com a bengala para cima”, relata, de máscara, fazendo o gesto. Vânia Rodrigues
até disse a Bruno: “Tem calma, que ele é mais velhote e se acontece alguma
coisa vais perder a razão.” Bruno contou-lhe os insultos racistas que ouviu do
homem: “Fui à tua mãe e àquelas pretas de merda todas!”, terá dito.
Nos dias
seguintes, Vânia Rodrigues começou a reparar que o alegado homicida andava a
passear pela zona, com ar de quem estava à procura de Bruno, “e à procura de
confusão”. “Até comentei com os clientes. Mas nunca pensei que fosse para
isto.” No sábado, Bruno foi ao café pelas 10h30/11h, depois sentou-se no banco
com a cadela. Eram cerca das 13h e “só ouvi barulho”, conta Vânia. “Algumas
clientes de cor, com medo, puseram-se atrás da porta, escondidas. Eu só
telefonei para a polícia e nem saí porque tive medo.”
Mas a ameaça de
morte já tinha sido feita nessa quarta-feira, igualmente acompanhada de
insultos racistas, relata Júlio Martins, que trabalha na ourivesaria ao lado do
café e do banco onde ele foi assassinado. Ouviu uma discussão na rua, saiu da
loja e foi separar os dois homens. “Estavam só a agarrar-se. O Bruno tinha um
problema numa perna e o senhor andava de bengala, por isso nenhum tinha a
mobilidade toda. Enquanto o Bruno está a entrar no carro, o homem manda-o
embora e diz: ‘tenho armas do Ultramar em casa e vou-te matar’.” Houve mais
insultos: “preto do caralho, vai para a tua terra”, “coisas que ouvimos chamar
normalmente”, diz.
O funcionário
conta que até comentou com o colega em tom de brincadeira: “Ele agora diz que
vai matar o rapaz...” Nunca pensou testemunhá-lo no sábado, quando viu o homem
“a descer a rua, a passar a esquina, a apontar com o dedo, a meter a mão ao
bolso e ‘pum pum pum’”, descreve. “Entrámos para dentro da loja. Toda a gente
fugiu para o café.” Foi um dos colegas da ourivesaria que o imobilizou — mas
este não quis prestar declarações ao PÚBLICO.
Da porta da uma
garrafeira que fica mesmo em frente ao banco onde Bruno Candé foi morto, Maria
Silva, uma funcionária, viu o alegado homicida a caminhar na direcção de Bruno,
que conhecia como cliente. “Só ouço estalos, olhei em frente e ainda vi o
senhor com a arma apontada. Não conseguia ver o Bruno porque estava tapado pelo
canteiro. Depois surgem mais dois tiros. A cadela desata aos pulos. Com a arma
na mão, muito calmamente o homem vai à sua vida, como se nada fosse, de uma
frieza incrível. Ainda olhou duas vezes para trás.”
Os insultos
racistas do arguido datam de há pelo menos dois meses, relata Sadja Dama, um
amigo do actor que o testemunhou. Segundo conta, foi por causa da cadela que o
alegado homicida começou a discutir com Bruno. Os insultos a que assistiu num
episódio, dois meses antes, eram parecidos com os que foram ouvidos na
quarta-feira por outras pessoas: “volta para a tua terra, a tua mãe merece
estar na senzala”. Bruno respondia que tinha direito de ali estar. Aliás, Sadja
Dama até o aconselhou a não ir àquele sítio. “Não posso ficar preso em casa
porque há uma pessoa que me vai atacar por racismo”, respondeu-lhe Bruno Candé.
“Estou cansado”, referiu, o que fez Sadja pensar que aquela não seria a
primeira vez.
Segundo a PSP
referiu no domingo, inquiriu testemunhas e nenhuma apontou motivos raciais.
Esta segunda-feira o porta-voz da direcção nacional esclarece que foram
questionadas testemunhas e a PSP não chegou à conclusão de que tenha havido
“algum tipo de ofensa racista imediatamente antes dos disparos”. O porta voz da
PSP não sabe concretamente o que as testemunhas responderam e que perguntas
exactas foram feitas para originar aquela conclusão, mas neste momento a PSP
alega que, como a investigação transitou para a PJ, não irá fazer mais
comentários. Tal como a PSP, também o presidente da Junta de Freguesia de
Moscavide e Portela, o socialista Ricardo Lima, ouviu aos habitantes relatos
que descartam a tese de homicídio de origem racista.
Esta
segunda-feira de manhã, dois dias depois da tragédia, as irmãs do actor Olga e
Betty (Elisabete) depositavam flores e falavam aos jornalistas, respondem a
populares que as abordam com palavras de consolo e de indignação. Estão em
choque. Repetem: “O Bruno não merecia isto”, dizem em lágrimas.
Há cerca de dois
anos, Bruno ficou em coma durante meses depois do acidente de bicicleta. Foi
“uma luta muito dura, ter conseguido sair dessa”, conta a irmã Betty, de 42
anos. “Ele estava quase paralisado do lado esquerdo, por isso é que tinha a
“Pepa”, era uma segurança para ele, uma cadela mansinha”, acrescenta. Com o
susto dos tiros no sábado, “Pepa” fugiu mas entretanto apareceu em casa do
dono.
“Quando este
senhor começou com as ameaças, há dois meses, pensámos que era uma mania”, diz
a irmã Olga, de 52 anos. Olga vive em Inglaterra onde trabalha nas limpezas e
veio para Portugal mal soube do sucedido, assim como outros elementos da
família.
PÚBLICO -Foto
Olga foi uma
figura decisiva na vida de Bruno. Criou-o, assim como aos irmãos. Ele costumava
enchê-la de beijos, ela reclamava e hoje recorda-o com tristeza na voz e no
rosto. A mãe emigrou para Espanha para a apanha da fruta e Olga cuidava dos
cinco irmãos. O pai, “alentejano branco”, faz questão de dizer, está neste
momento com uma doença degenerativa. “Tanta luta e sofrimento para isto… não é
justo”, comenta. Betty sublinha que Bruno nunca fumou droga, nunca esteve
preso, sempre andou na linha. Deixou três filhos: de sete, cinco e quatro anos.
Actor na
telenovela A Última Mulher, estava a preparar uma peça de teatro com a Casa
Conveniente. Mónica Calle contou ao PÚBLICO no sábado que tinham estado a
preparar um espectáculo iniciado como homenagem a Bruno pelo que passou.
Bruno Candé foi
elogiado por todos os que trabalharam com ele. A Casa Conveniente era como uma
segunda família, dizem as irmãs, que o recordam como alguém divertido e
carinhoso. Nem Olga, nem a sobrinha Andreia o viram no palco. “Disso é que
estou tão arrependida”, confessa Olga, chorosa. Segundo a Casa Conveniente,
começou a colaborar com a companhia em 2011 no espectáculo A Missão -
Recordações de uma Revolução, encenado por Mónica Calle. Representou nos
espetáculos Macbeth, O Livro de Job, Rifar o Meu Coração, A Sagração da
Primavera, Noites Brancas, de Mónica Calle; Drive In, de Mónica Garnel, Atlas,
de João Borralho e Ana Galante.
A sobrinha
Andreia, de 35 anos, auxiliar de saúde que apoia idosos, era uma das suas
grandes amigas. “Bom homem, bom pai, bom tio”, descreve. Foi Andreia quem o
ajudou a tomar banho e lhe levou comida quando Bruno teve o acidente. “Ele era
uma pessoa que tinha muita força de vontade, era muito alegre. Passava muito
tempo na rua porque a médica disse que tinha de andar.” No sábado, ligou-lhe
duas vezes de manhã. “Não atendi, estava a dormir”, conta com os olhos em
lágrimas.
Bruno ainda
chegou a estudar mecânica na Casa Pia, onde esteve durante alguns anos pois a
mãe queria que ele tivesse formação escolar. Fez um curso de teatro no Chapitô
e a paixão pelo teatro começou a desenvolver-se profissionalmente. “O Bruno
sempre gostou disto. Nunca pensei que o meu irmão fosse tão bom actor, representou
muito bem todos os papéis que lhe deram”, refere a irmã Betty que lembra-o como
inspector na telenovela A Última Mulher.
Estava a escrever
um livro sobre a sua vida, porque “tem muito que contar, muita experiência de
luta e sobrevivência”, conta Olga. “Ele esteve quase para morrer porque nasceu
com problemas respiratórios. A minha mãe baptizou-o no hospital, foi uma luta.”
Bruno Candé era
católico. No carro, a caminho para casa em Chelas, Olga aponta para uma estátua
do Santo António, o padrinho do irmão. No apartamento onde entram e saem
familiares a apoiar, a mãe está sentada em frente a uma mesa com uma foto de
Bruno Candé, o Santo António, Nossa Senhora de Fátima e uma vela. A família
apoia-se. “Não tenho palavras”, desabafa.
A família aguarda
o resultado da autópsia para decidir onde e quando será feito o velório e o
funeral.
Com Ana Henriques
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