quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Novo Banco e a notável arte de legalizar o roubo


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OPINIÃO
O Novo Banco e a notável arte de legalizar o roubo

O golpe de génio da alta finança predatória está em transformar aquilo que antes se chamava “roubo” num conjunto de operações financeiras extremamente opacas e complexas, pejadas de conflitos de interesse e… perfeitamente legais.

JOÃO MIGUEL TAVARES
30 de Julho de 2020, 0:00

Na sequência do óptimo artigo de investigação de Paulo Pena sobre o Novo Banco e o Portfólio Viriato, Amílcar Correia escreveu um editorial que começava assim: “O Novo Banco vendeu mais de 13 mil imóveis a um fundo anónimo sediado nas ilhas Caimão, emprestou dinheiro a quem os comprou, registou prejuízos daquele que foi o maior negócio imobiliário dos últimos anos em Portugal, e ainda recebeu compensação pelas perdas de centenas de milhões através do Fundo de Resolução.” O mais curioso nesta lista de factos é que tudo o que ali está descrito é legal. Rui Rio quer que o Ministério Público investigue, mas não é claro que haja grande coisa para investigar.

“O Novo Banco vendeu mais de 13 mil imóveis” – perfeitamente legal: como lhe explicará um bom CEO, o banco pode e deve vender, porque a sua principal vocação é a concessão de crédito e não a gestão de imóveis, actividade que requer outro tipo de competências.

“A um fundo anónimo sediado nas ilhas Caimão” – perfeitamente legal: o mundo dos offshores continua florescente e aceite por Estados e bancos centrais.

“Emprestou dinheiro a quem comprou” – perfeitamente legal: como lhe explicará um bom CEO, pode até ser um negócio catita, já que se os juros forem altos o banco vendedor consegue tirar rendimento extra via empréstimo, e se os juros forem baixos consegue um valor mais competitivo pela carteira. E se houver falha de pagamentos? Desde que o empréstimo não tenha sido concedido a 100%, ou próximo disso, o banco recebe de volta a totalidade dos imóveis e pode vendê-los outra vez.

“Registou prejuízos daquele que foi o maior negócio imobiliário dos últimos anos” – perfeitamente legal: como lhe explicará um bom CEO, apesar da enorme valorização do imobiliário, é possível que a contabilização inicial dos 13 mil imóveis tivesse sido exagerada de forma ainda mais estratosférica e, portanto, que o valor real dos imóveis esteja mais próximo daquele por que foram vendidos do que daquele por que foram contabilizados.

“Recebeu compensação pelas perdas de centenas de milhões através do Fundo de Resolução” – perfeitamente legal: como lhe explicará um bom CEO, estava tudo previsto no acordo de venda do Novo Banco, assinado pelo Estado português a 18 de Outubro de 2017 e selado por um belo bacalhau entre Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, e Donald Quintin, director-geral do fundo Lone Star.

Acaso se realize a comissão de inquérito que Rui Rio admitiu convocar sobre a venda do Novo Banco, é até possível que o ex-ministro das Finanças Mário e o actual governador do Banco de Portugal Centeno venham a confrontar-se no Parlamento, para ver quem fala verdade
E se se descobrir que o acordo foi mal negociado? Bom, nesse caso o novo governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, terá de averiguar se os interesses do Estado português foram devidamente acautelados pelo antigo ministro das Finanças, Mário Centeno, em 2017 – o que também é perfeitamente legal. Acaso se realize a comissão de inquérito que Rui Rio admitiu convocar sobre a venda do Novo Banco, é até possível que o ex-ministro das Finanças Mário e o actual governador do Banco de Portugal Centeno venham a confrontar-se no Parlamento, para ver quem fala verdade.

Estou capaz de apostar no resultado final: tudo perfeitamente legal. O golpe de génio da alta finança predatória – e isto talvez um bom CEO não explique – está em transformar aquilo que antes se chamava “roubo” num conjunto de operações financeiras extremamente opacas e complexas, pejadas de conflitos de interesse e… perfeitamente legais. Não admira que depois venha José Miguel Júdice garantir-nos que Ricardo Salgado não é nenhum gangster. Claro que não é. É apenas um bom CEO que teve azar.

Jornalista

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