PORTUGAL
O Estado a que isto chegou
07:00 por
Margarida Davim
O défice zero
evaporou-se, o desemprego sobe, a pandemia instalou a incerteza, os partidos à
esquerda estão mais longe e no Governo há focos de tensão e problemas. Quando
há um ano António Costa fez o discurso do Estado da Nação o país e o mundo eram
lugares diferentes.
Um Governo a
falar a várias vozes, um primeiro-ministro que se irrita ou corrige os seus
ministros e muitas sombras no horizonte. O Estado da Nação debate-se hoje no
Parlamento, sob a égide de um vírus que em poucos meses mudou tudo: fez cair a
economia, desequilibrou as contas públicas, desgastou o Governo e acelerou o
afastamento entre PS, BE, PCP e PEV.
O Governo chega
ao fim desta primeira sessão legislativa com tensões internas evidentes. É
indisfarçável o caminho próprio que Pedro Nuno Santos está a fazer a pensar num
eventual futuro como líder no pós-costismo e foi notório que António Costa e o
seu ministro das Infraestruturas não pensavam exatamente da mesma maneira sobre
a TAP.
A solução
encontrada de nacionalização parcial por acordo com os privados foi assumida
por Pedro Nuno Santos. Costa evitou ficar demasiado colado ao um dossiê que
queima. Depois de ter posto água na fervura das declarações do ministro que
dizia que se o povo paga "o povo manda", António Costa foi evitando o
assunto, deixando Pedro Nuno a falar sozinho. Mas este é um tema que promete
continuar a assombrar o Governo nos próximos meses, à medida que se forem
conhecendo as consequências do plano de reestruturação da empresa que terá como
consequências, forçosamente (e como o próprio Costa admitiu), despedimentos,
menos rotas e menos aviões.
Outro ministro
que tem desafinado com o primeiro-ministro é Augusto Santos Silva. O número
três do Governo foi já por duas vezes desautorizado por António Costa só nas
últimas semanas. Costa corrigiu a posição do Ministro dos Negócios
Estrangeiros, avisando que Portugal afinal estava contra a proposta da Comissão
Europeia de fazer depender os fundos de apoio à pandemia do cumprimento das
regras do Estado de Direito. E já antes o líder do executivo tinha contrariado
a ideia de Santos Silva de que Lisboa poderia retaliar, fechando fronteiras,
contra os países que como Reino Unido puseram Portugal na lista negra da
pandemia de covid-19.
Muito mais em
sintonia, está António Costa com o seu número dois, Pedro Siza Vieira. O
ministro da Economia não terá, contudo, vida fácil nos próximos tempos. As
tensões com os parceiros na concertação social já são evidentes e os efeitos da
crise provocada pela pandemia vão tornar a tarefa de Siza Vieira cada vez mais
complicada.
Também não terá
vida fácil a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes
Godinho, a quem falta o peso político e a experiência do seu antecessor, Vieira
da Silva, e que terá de lidar com a pressão gerada pelo prolongamento do
lay-off, o aumento do desemprego e a falta de proteção social que a pandemia
pôs a descoberto em vários setores. E ainda é possível que, com a chegada da
época da gripe, a situação nos lares de idosos, que Mendes Godinho tutela,
venha a agravar-se.
No capítulo das
tensões dentro do Governo, o caso mais público foi o do "puxão de
orelhas" de António Costa a Marta Temido durante uma reunião com os
técnicos do Infarmed sobre o surto do novo coronavírus. António Costa
exasperou-se quando a ministra da Saúde falava sobre o confinamento, recordando
que houve setores de actividade que nunca chegaram a estar em quarentena. A
frustração do primeiro-ministro era a de quem tem recebido informações
contraditórias dos técnicos e continua sem explicações para surtos (sobretudo
em Lisboa e Vale do Tejo) difíceis de controlar.
Apesar da falta
de controlo da pandemia e das consultas e exames que ficaram para trás por
causa do novo coronavírus, o SNS tem resistido ao embate ainda sem mostras de
saturação, mas já com sinais de exaustão nos profissionais. Marta Temido, a
ministra que quase todos os dias tem dado a cara por um combate que está longe
de estar vencido, é (talvez contra todas as expectativas) a mais popular no
Governo. Num ranking da Intercampus para o Correio da Manhã e o Jornal de
Negócios, publicado a 7 de julho, Temido era para 18% dos inquiridos a melhor
ministra.
No campeonato dos
mais populares, Marta Temido só era batida por quem entretanto já não está no
Governo: Mário Centeno. O ex-ministro das Finanças saiu para o Banco de
Portugal e no se lugar ficou o seu ex-secretário de Estado João Leão. Mal subiu
a ministro, a Leão calhou a fava de defender o Orçamento Suplementar que ainda
tinha sido feito pelo ministro que se gabava de nunca ter apresentado um
Orçamento Retificativo. Centeno manteve assim esse currículo sem nódoa. E João
Leão estreou-se com uma previsão de défice de 7%, uma dívida pública nos 134%
do PIB e uma taxa de população ativa fora do mercado de trabalho nos 14,2%.
Nos próximos
tempos, os ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da Educação,
Tiago Brandão Rodrigues, também não esperam vida fácil. Cabrita ainda tem pela
frente a época de incêndios e já conta com a morte de dois bombeiros. Mas está
também na berlinda por causa dos 69 migrantes ilegais que nos últimos oito
meses desembarcaram no Algarve.
No caso de
Brandão Rodrigues, as verdadeiras dores de cabeça virão depois do verão.
Professores e directores já alertaram para a impossibilidade de cumprir normas
de segurança como o distanciamento físico entre alunos dentro das salas de
aulas e é impossível prever que efeito terá o regresso às aulas presenciais na
propagação da pandemia. Mas há uma coisa certa: as aulas à distância escavaram
ainda mais o fosso de desigualdade entre alunos.
Já a ministra da
Cultura, Graça Fonseca, tem estado debaixo de fogo e assim deverá continuar. A
pandemia deixou a nu as fragilidades de um setor muito precário e a ministra
tem sido atacada pela falta de apoios aos trabalhadores da cultura e por não
haver soluções concretas para a precariedade em instituições como a Casa da
Música ou a Fundação de Serralves.
Como o mundo
mudou
A 10 de julho de
2019, o mundo era um lugar diferente e o país também. António Costa subiu ao
púlpito da Assembleia da República, para falar do Estado da Nação. Lá do alto,
via um país mais estável, mais confiante, com mais crescimento e mais emprego.
"Os
portugueses deixaram de viver no sobressalto quotidiano dos cortes nas pensões
ou nos salários, na incerteza do aumento de impostos ou do encerramento de
serviços, na incógnita dos orçamentos retificativos, na instabilidade do permanente
conflito constitucional", afirmava o primeiro-ministro, que tinha
reservado palavras especiais para a esquerda logo no arranque do discurso.
"Quero por
isso saudar os Grupos Parlamentares do PS, BE, PCP e PEV por terem ousado
derrubar um muro anacrónico e assumido a responsabilidade de afirmar uma
maioria parlamentar como alternativa de Governo, garantindo a mudança de
política que os cidadãos desejavam e Portugal precisava", declarava
António Costa.
Um ano depois, o
sobressalto, a incerteza e as alterações aos orçamentos regressaram pela mão da
pandemia de covid-19. E os parceiros da esquerda estão cada vez mais longe.
BE, PCP e PEV não
têm poupado críticas às opções do Governo, que têm considerado insuficientes
para fazer face à crise social e económica provocada pelo vírus.
Quem está mais
próximo é o PSD e António Costa tem aproveitado. Os sociais-democratas têm
estado do lado do PS (com o voto a favor ou a abstenção) em temas como o
Orçamento Suplementar – contra o qual o PCP votou – ou a ida de Mário Centeno
para o Banco Portugal (onde só abstenção do PSD travou um chumbo do nome pelo
Parlamento), mas também em matéria de alterações ao regimento da Assembleia da
República.
BE, PCP e PEV
falam muitas vezes de "bloco central" e essa é uma ideia que António
Costa não gosta de alimentar para evitar perder votos à esquerda, mas Rui Rio
deve continuar a dar-lhe a mão em temas nos quais não conta com o apoio de
bloquistas e comunistas.
E a oposição? O
que dirá?
À esquerda, a
análise feita ao estado da nação não é animadora. A pandemia revelou problemas
sociais que BE e PCP querem atacar e o debate desta sexta-feira servirá para
voltar a pôr em cima da mesa essas reivindicações.
Paula Santos do
PCP explica à SÁBADO que a importância de alterar as leis laborais para
combater a precariedade, a aposta na produção nacional e o reforço do
investimento no setor público e em apoios sociais está no topo das prioridades
que Jerónimo de Sousa deverá recordar ao primeiro-ministro no debate.
"O estado do
país está marcado por um conjunto de problemas estruturais que a pandemia
deixou ainda mais evidentes", nota a deputada comunista, que defende a
urgência de combater "os baixos salários, a precariedade e desregulação
dos horários de trabalho", mas também "o défice produtivo, o défice
alimentar e a necessidade de reduzir a dependência do país relativamente a
terceiros".
Para o PCP, a
pandemia foi também o momento em que ficou clara a importância de manter a
"soberania e capacidade produtiva para os alimentos necessários",
numa "aposta na produção nacional, na agricultura e nas pescas".
Também à
esquerda, falará pelo PEV o deputado José Luís Ferreira, com as questões
suscitadas pela covid-19 à cabeça. Fonte oficial de Os Verdes adianta à SÁBADO que
o partido levará para o debate "a importância de um forte estado social
" e de um "SNS forte", mas também "a necessidade de
olharmos para a produção nacional como valor da nossa soberania, assim como a
necessidade de olhar para as questões ambientais como motor de desenvolvimento
económico".
A aprovação do
fim dos debates quinzenais também não será esquecida pelo PEV.
"Abordaremos ainda aquilo que consideramos ser uma fragilização da
democracia", adianta a mesma fonte, que dá como exemplos a redução dos
debates com o primeiro-ministro no Parlamento e "as exigências acrescidas
para apresentação de petições pelos cidadãos" (que passam a ser aceites
apenas com um mínimo de 10 mil assinaturas).
Para o CDS, a
forma como as alterações ao Regimento da Assembleia da República aprovadas
nesta sessão legislativa vão mesmo "limitar direitos democráticos de
participação" de alguns partidos e esse é um tema incontornável na análise
que os centristas fazem do estado da Nação.
Telmo Correia,
líder parlamentar centrista, defendeu mesmo, em declarações à Lusa, que
"há um aproveitamento da realidade da pandemia para limitar direitos
democráticos de participação das várias forças políticas e concentrar
oportunisticamente esse debate numa espécie de unanimismo pandémico, de que
ninguém poderia discordar".
No debate, os
centristas – que consideram que a resposta do Governo à pandemia "podia
ter sido melhor, mas não foi má globalmente" – vão criticar o que
consideram ter sido um desconfinamento "feito de forma precipitada" e
a falta de resposta adequada aos problemas que alguns setores económicos, como
turismo, estão a viver em consequência do surto de covid-19.
Pelo PAN, falará
André Silva, que, segundo fonte oficial do partido avançou à SÁBADO, terá como
temas "o modelo económico, a crise climática e a proteção animal",
cabendo à deputada Bebiana Cunha fazer perguntas sobre o SNS e o novo ano
escolar e a Inês de Sousa Real levantar questões sobre "habitação, pobreza
e combate à corrupção".
Contactada pela
SÁBADO, fonte oficial do PSD não quis adiantar os temas que levará ao debate do
Estado da Nação.
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