sexta-feira, 24 de julho de 2020

O Estado a que isto chegou



PORTUGAL
O Estado a que isto chegou

07:00 por Margarida Davim

O défice zero evaporou-se, o desemprego sobe, a pandemia instalou a incerteza, os partidos à esquerda estão mais longe e no Governo há focos de tensão e problemas. Quando há um ano António Costa fez o discurso do Estado da Nação o país e o mundo eram lugares diferentes.

Um Governo a falar a várias vozes, um primeiro-ministro que se irrita ou corrige os seus ministros e muitas sombras no horizonte. O Estado da Nação debate-se hoje no Parlamento, sob a égide de um vírus que em poucos meses mudou tudo: fez cair a economia, desequilibrou as contas públicas, desgastou o Governo e acelerou o afastamento entre PS, BE, PCP e PEV.

O Governo chega ao fim desta primeira sessão legislativa com tensões internas evidentes. É indisfarçável o caminho próprio que Pedro Nuno Santos está a fazer a pensar num eventual futuro como líder no pós-costismo e foi notório que António Costa e o seu ministro das Infraestruturas não pensavam exatamente da mesma maneira sobre a TAP.

A solução encontrada de nacionalização parcial por acordo com os privados foi assumida por Pedro Nuno Santos. Costa evitou ficar demasiado colado ao um dossiê que queima. Depois de ter posto água na fervura das declarações do ministro que dizia que se o povo paga "o povo manda", António Costa foi evitando o assunto, deixando Pedro Nuno a falar sozinho. Mas este é um tema que promete continuar a assombrar o Governo nos próximos meses, à medida que se forem conhecendo as consequências do plano de reestruturação da empresa que terá como consequências, forçosamente (e como o próprio Costa admitiu), despedimentos, menos rotas e menos aviões.

Outro ministro que tem desafinado com o primeiro-ministro é Augusto Santos Silva. O número três do Governo foi já por duas vezes desautorizado por António Costa só nas últimas semanas. Costa corrigiu a posição do Ministro dos Negócios Estrangeiros, avisando que Portugal afinal estava contra a proposta da Comissão Europeia de fazer depender os fundos de apoio à pandemia do cumprimento das regras do Estado de Direito. E já antes o líder do executivo tinha contrariado a ideia de Santos Silva de que Lisboa poderia retaliar, fechando fronteiras, contra os países que como Reino Unido puseram Portugal na lista negra da pandemia de covid-19.

Muito mais em sintonia, está António Costa com o seu número dois, Pedro Siza Vieira. O ministro da Economia não terá, contudo, vida fácil nos próximos tempos. As tensões com os parceiros na concertação social já são evidentes e os efeitos da crise provocada pela pandemia vão tornar a tarefa de Siza Vieira cada vez mais complicada.

Também não terá vida fácil a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, a quem falta o peso político e a experiência do seu antecessor, Vieira da Silva, e que terá de lidar com a pressão gerada pelo prolongamento do lay-off, o aumento do desemprego e a falta de proteção social que a pandemia pôs a descoberto em vários setores. E ainda é possível que, com a chegada da época da gripe, a situação nos lares de idosos, que Mendes Godinho tutela, venha a agravar-se.

No capítulo das tensões dentro do Governo, o caso mais público foi o do "puxão de orelhas" de António Costa a Marta Temido durante uma reunião com os técnicos do Infarmed sobre o surto do novo coronavírus. António Costa exasperou-se quando a ministra da Saúde falava sobre o confinamento, recordando que houve setores de actividade que nunca chegaram a estar em quarentena. A frustração do primeiro-ministro era a de quem tem recebido informações contraditórias dos técnicos e continua sem explicações para surtos (sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo) difíceis de controlar.

Apesar da falta de controlo da pandemia e das consultas e exames que ficaram para trás por causa do novo coronavírus, o SNS tem resistido ao embate ainda sem mostras de saturação, mas já com sinais de exaustão nos profissionais. Marta Temido, a ministra que quase todos os dias tem dado a cara por um combate que está longe de estar vencido, é (talvez contra todas as expectativas) a mais popular no Governo. Num ranking da Intercampus para o Correio da Manhã e o Jornal de Negócios, publicado a 7 de julho, Temido era para 18% dos inquiridos a melhor ministra.

No campeonato dos mais populares, Marta Temido só era batida por quem entretanto já não está no Governo: Mário Centeno. O ex-ministro das Finanças saiu para o Banco de Portugal e no se lugar ficou o seu ex-secretário de Estado João Leão. Mal subiu a ministro, a Leão calhou a fava de defender o Orçamento Suplementar que ainda tinha sido feito pelo ministro que se gabava de nunca ter apresentado um Orçamento Retificativo. Centeno manteve assim esse currículo sem nódoa. E João Leão estreou-se com uma previsão de défice de 7%, uma dívida pública nos 134% do PIB e uma taxa de população ativa fora do mercado de trabalho nos 14,2%.

Nos próximos tempos, os ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, também não esperam vida fácil. Cabrita ainda tem pela frente a época de incêndios e já conta com a morte de dois bombeiros. Mas está também na berlinda por causa dos 69 migrantes ilegais que nos últimos oito meses desembarcaram no Algarve.

No caso de Brandão Rodrigues, as verdadeiras dores de cabeça virão depois do verão. Professores e directores já alertaram para a impossibilidade de cumprir normas de segurança como o distanciamento físico entre alunos dentro das salas de aulas e é impossível prever que efeito terá o regresso às aulas presenciais na propagação da pandemia. Mas há uma coisa certa: as aulas à distância escavaram ainda mais o fosso de desigualdade entre alunos.

Já a ministra da Cultura, Graça Fonseca, tem estado debaixo de fogo e assim deverá continuar. A pandemia deixou a nu as fragilidades de um setor muito precário e a ministra tem sido atacada pela falta de apoios aos trabalhadores da cultura e por não haver soluções concretas para a precariedade em instituições como a Casa da Música ou a Fundação de Serralves.

Como o mundo mudou
A 10 de julho de 2019, o mundo era um lugar diferente e o país também. António Costa subiu ao púlpito da Assembleia da República, para falar do Estado da Nação. Lá do alto, via um país mais estável, mais confiante, com mais crescimento e mais emprego.

"Os portugueses deixaram de viver no sobressalto quotidiano dos cortes nas pensões ou nos salários, na incerteza do aumento de impostos ou do encerramento de serviços, na incógnita dos orçamentos retificativos, na instabilidade do permanente conflito constitucional", afirmava o primeiro-ministro, que tinha reservado palavras especiais para a esquerda logo no arranque do discurso.

"Quero por isso saudar os Grupos Parlamentares do PS, BE, PCP e PEV por terem ousado derrubar um muro anacrónico e assumido a responsabilidade de afirmar uma maioria parlamentar como alternativa de Governo, garantindo a mudança de política que os cidadãos desejavam e Portugal precisava", declarava António Costa.

Um ano depois, o sobressalto, a incerteza e as alterações aos orçamentos regressaram pela mão da pandemia de covid-19. E os parceiros da esquerda estão cada vez mais longe.

BE, PCP e PEV não têm poupado críticas às opções do Governo, que têm considerado insuficientes para fazer face à crise social e económica provocada pelo vírus.

Quem está mais próximo é o PSD e António Costa tem aproveitado. Os sociais-democratas têm estado do lado do PS (com o voto a favor ou a abstenção) em temas como o Orçamento Suplementar – contra o qual o PCP votou – ou a ida de Mário Centeno para o Banco Portugal (onde só abstenção do PSD travou um chumbo do nome pelo Parlamento), mas também em matéria de alterações ao regimento da Assembleia da República.

BE, PCP e PEV falam muitas vezes de "bloco central" e essa é uma ideia que António Costa não gosta de alimentar para evitar perder votos à esquerda, mas Rui Rio deve continuar a dar-lhe a mão em temas nos quais não conta com o apoio de bloquistas e comunistas.

E a oposição? O que dirá?
À esquerda, a análise feita ao estado da nação não é animadora. A pandemia revelou problemas sociais que BE e PCP querem atacar e o debate desta sexta-feira servirá para voltar a pôr em cima da mesa essas reivindicações.

Paula Santos do PCP explica à SÁBADO que a importância de alterar as leis laborais para combater a precariedade, a aposta na produção nacional e o reforço do investimento no setor público e em apoios sociais está no topo das prioridades que Jerónimo de Sousa deverá recordar ao primeiro-ministro no debate.

"O estado do país está marcado por um conjunto de problemas estruturais que a pandemia deixou ainda mais evidentes", nota a deputada comunista, que defende a urgência de combater "os baixos salários, a precariedade e desregulação dos horários de trabalho", mas também "o défice produtivo, o défice alimentar e a necessidade de reduzir a dependência do país relativamente a terceiros".

Para o PCP, a pandemia foi também o momento em que ficou clara a importância de manter a "soberania e capacidade produtiva para os alimentos necessários", numa "aposta na produção nacional, na agricultura e nas pescas".

Também à esquerda, falará pelo PEV o deputado José Luís Ferreira, com as questões suscitadas pela covid-19 à cabeça. Fonte oficial de Os Verdes adianta à SÁBADO que o partido levará para o debate "a importância de um forte estado social " e de um "SNS forte", mas também "a necessidade de olharmos para a produção nacional como valor da nossa soberania, assim como a necessidade de olhar para as questões ambientais como motor de desenvolvimento económico".

A aprovação do fim dos debates quinzenais também não será esquecida pelo PEV. "Abordaremos ainda aquilo que consideramos ser uma fragilização da democracia", adianta a mesma fonte, que dá como exemplos a redução dos debates com o primeiro-ministro no Parlamento e "as exigências acrescidas para apresentação de petições pelos cidadãos" (que passam a ser aceites apenas com um mínimo de 10 mil assinaturas).

Para o CDS, a forma como as alterações ao Regimento da Assembleia da República aprovadas nesta sessão legislativa vão mesmo "limitar direitos democráticos de participação" de alguns partidos e esse é um tema incontornável na análise que os centristas fazem do estado da Nação.

Telmo Correia, líder parlamentar centrista, defendeu mesmo, em declarações à Lusa, que "há um aproveitamento da realidade da pandemia para limitar direitos democráticos de participação das várias forças políticas e concentrar oportunisticamente esse debate numa espécie de unanimismo pandémico, de que ninguém poderia discordar".

No debate, os centristas – que consideram que a resposta do Governo à pandemia "podia ter sido melhor, mas não foi má globalmente" – vão criticar o que consideram ter sido um desconfinamento "feito de forma precipitada" e a falta de resposta adequada aos problemas que alguns setores económicos, como turismo, estão a viver em consequência do surto de covid-19.

Pelo PAN, falará André Silva, que, segundo fonte oficial do partido avançou à SÁBADO, terá como temas "o modelo económico, a crise climática e a proteção animal", cabendo à deputada Bebiana Cunha fazer perguntas sobre o SNS e o novo ano escolar e a Inês de Sousa Real levantar questões sobre "habitação, pobreza e combate à corrupção".

Contactada pela SÁBADO, fonte oficial do PSD não quis adiantar os temas que levará ao debate do Estado da Nação.   

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