Um reitor para o
futuro: sobre o fim da carne na Universidade de Coimbra
A UC não proibiu
os seus estudantes de comer carne de vaca, o que podem perfeitamente ainda
fazer nas suas casas ou em restaurantes, tendo-se limitado apenas a vedar esse
alimento nas suas cantinas, decisão essa que foi motivada por um consenso
existente ao nível dos principais comités científicos internacionais e
entidades ambientalistas.
Nuno Alvim
Nuno Alvim é
activista e presidente da Associação Vegetariana Portuguesa, um confesso
idealista e também um nadinha realista.
20 de Setembro de
2019, 18:09
Se o objectivo
foi colocar a sociedade a falar do assunto, o reitor da Universidade de Coimbra
(UC) conseguiu-o, durante a cerimónia de recepção aos estudantes do presente
ano académico, ao anunciar que pretendia remover a carne de vaca do menu das
cantinas universitárias a partir de Janeiro de 2020, defendendo a medida como
um dos primeiros passos importantes para a UC alcançar a neutralidade carbónica
até 2030.
O rebuliço social
gerado poderá ser uma consequência inevitável de uma medida que confronta o
status quo e mexe com a ordem das coisas, podendo inclusive desencadear uma
discussão informativa e uma transformação positiva que é desejável, mas o
desiderato de Amílcar Falcão, reitor da UC, será certamente ulterior e motivado
por um elevado sentido de responsabilidade ética e social. Conforme refere num
comunicado, está na altura dos líderes mundiais perceberem que as alterações
climáticas são uma ameaça verdadeira e em causa está o “futuro do planeta e dos
nossos jovens, dos nossos filhos e netos”. Talvez não seja uma medida que
revolucione o mercado como o conhecemos, mas que, como argumenta o reitor,
serve fundamentalmente para consciencializar as pessoas para a problemática. De
longe a reacção mais interessante de analisar de todas será a da Confederação
dos Agricultores de Portugal (CAP), que em resposta à medida emitiu um
comunicado a condenar a decisão, rotulando-a de “imposição” e acusando a
reitoria da UC de infundado alarmismo. Mais, dizem-se também perplexos com a
situação.
Perplexo fico eu,
com o mal disfarçado conflito de interesses. Isto é quase como ler um
comunicado da ANA (Aeroportos de Portugal) a anunciar que o Aeroporto do
Montijo seria muito bom para o ambiente, em especial para a passarada que por
lá anda, apesar do alerta em contrário lançado por várias organizações
ambientais, ou ver a Fundação Berardo emitir uma declaração a defender a
integridade do Sr. Joe Berardo, alegando que este não andou a apropriar fundos
de ninguém e que a audição com a Comissão Parlamentar foi toda ela manipulada,
como se fazia nos bons velhos tempos da URSS. Parece suspeito?
Qual é a
credibilidade de uma entidade que contesta uma medida que afectará
negativamente as suas receitas financeiras? Zero. E Zero é também o nome da
associação ambientalista ZERO (Associação Sistema Terrestre Sustentável), que
em 2018 concluiu, num estudo pioneiro da pegada ecológica dos municípios
portugueses, que a alimentação é o que mais contribui para esta pegada (em
cerca de 30%), e ao nível da dieta dos portugueses o consumo de carne
representa a maior pegada (23 a 28%). Comparativamente, o sector dos
transportes em Portugal contribui com cerca de 19 a 23% da pegada dos
portugueses. Por isso talvez o senhor reitor da Universidade de Coimbra tenha
farejado aqui alguma coisa que faz sentido: a mudança tem que começar no prato
também. E quem perde tempo a vasculhar a vida privada do reitor para ver se
conduz um carro movido a combustíveis fósseis, não estará a ignorar a
possibilidade de se poder fazer ainda maior diferença com o nosso carrinho de
compras?
Mas a CAP ainda
foi mais longe e considerou que a medida é “imponderada”, “infundada” e baseada
em “alarmismos incompreensíveis”. Quais relatórios da FAO (Nações Unidas) ou do
IPCC que alertam para a necessidade global de reduzir drasticamente o consumo
de carne, em particular da carne vermelha, como medida prioritária para travar
as alterações climáticas e evitar atingir um ponto de não-retorno em 2030. E
quem é que está para ouvir de especialistas da Comissão EAT, da revista
científica Lancet, que afirmam que só conseguiremos alimentar 10 mil milhões de
pessoas em 2050 se baixarmos o consumo de carne vermelha em pelo menos metade e
duplicarmos o consumo de legumes? Ou quem é que acredita em estudos publicados
na revista Science que ecoam o que já foi dito antes?
Isso é que não!
Bando de alarmistas que esta gente é! Não é com base em relatórios científicos
e comités independentes de especialistas em ciências do ambiente que devemos
desenvolver as políticas públicas do ambiente, mas sim com base na opinião dos
senhores que criam as vaquinhas e as matam para poder fazer muito tostão com o
bifinho. Em parte, é de facto incompreensível a falta de honestidade e a
servidão aos interesses financeiros em detrimento dos interesses das gerações
vindouras. Ou talvez não seja assim tão incompreensível porque efectivamente é
de esperar esta reacção de um sector frágil e que pode ficar economicamente
debilitado caso outras instituições decidam seguir o mesmo trajecto.
Razão pela qual
deve existir um Estado interventivo que, reconhecendo a importância de
transformarmos os nossos hábitos de consumo para combater as alterações
climáticas, saiba suportar as famílias de produtores na sua transição para um
outro modelo produtivo. De todo o modo, o sector da agricultura em Portugal tem
claramente que se reinventar e largar a canga ideológica a que ficou preso, se
quiser dar um passo de entrada no século XXI, assumindo os novos desafios que
enfrentamos colectivamente.
“A CAP ainda foi
mais longe e considerou que a medida é 'imponderada', 'infundada' e baseada em
'alarmismos incompreensíveis'. Quais relatórios da FAO ou do IPCC que alertam
para a necessidade global de reduzir drasticamente o consumo de carne, em
particular da carne vermelha, como medida prioritária para travar as alterações
climáticas e evitar atingir um ponto de não-retorno em 2030.”
A CAP lançou por
fim o repto aos estudantes da UC, para que estes se opusessem à medida, talvez
na expectativa de que estes fizessem uma greve em prol da indústria de
bovicultores, mas a ideia parece já ter caído em manta rota, pois a Associação
Académica de Coimbra, por intermédio do seu presidente, já validou esta medida,
considerando-a como tomada de decisão ousada mas necessária para fazer face ao
aquecimento global.
À CAP ainda se
juntou a Confagri, a Associação de Produtores de Leite de Portugal e a
Associação Portuguesa das Indústrias Curtumes, todas elas fazendo acusações
semelhantes, apelidando também a medida de “populista”, “autoritária” e
“infundada”. Isto é tudo boa malta que se preocupa genuinamente com as alterações
climáticas e a sua isenção é de enaltecer. Um bom exemplo disto é Pedro
Espadinha, o presidente da Federação Nacional de Associações de Bovicultores,
que alegou que a medida promovida pela UC não pode sequer ser “corroborada
cientificamente”.
O que parece mais
crispar a opinião pública, no entanto, e fazer comichão emocional a algumas
pessoas, é a insistência na ideia de que o comportamento social e individual
deve funcionar como um mercado livre e cada um pode fazer como aprouver, desde
que dentro das balizas da lei. Mas admitem inúmeras excepções. A maioria das
pessoas não parece exaltar-se muito perante a ideia de que fumar seja vedado em
alguns locais públicos, como nas próprias universidades, ou que seja
introduzida uma lei que proíbe o uso de plástico de utilização única. Parece
que a ingerência do Estado é aceite para umas coisas e menos para outras, em
especial, quando nos aproximamos do domínio da alimentação. A prová-lo, o
comunicado de que a UC iria também substituir os artigos em plástico do kit de
recepção aos novos estudantes por alternativas mais ecológicas não parece ter
suscitado muita polémica, embora seja também uma aparente “imposição” sobre as
liberdades dos estudantes de usar artigos em plástico.
Toda a indignação
é infundada neste caso, contudo, pois em boa verdade, a UC não proibiu os seus
estudantes de comer carne de vaca, o que podem perfeitamente ainda fazer nas
suas casas ou em restaurantes, tendo-se limitado apenas a vedar esse alimento
nas suas cantinas, decisão essa que foi motivada por um consenso existente ao
nível dos principais comités científicos internacionais e entidades
ambientalistas, isto é, que o consumo de carne vermelha deve ser reduzido
drasticamente com vista a mitigar as alterações climáticas, sendo que alguns
organismos apontam para a necessidade de uma redução em pelo menos 90%.
E será que o
reitor da UC poderia ter optado por fazer as coisas de forma diferente, talvez
escolhendo um percurso mais moderado de desfasamento gradual destas carnes?
Poder até podia, mas foi mais ambicioso, apercebendo-se que não estamos numa
posição civilizacional para tomar meias medidas, de adoptar políticas
pseudo-ecológicas, que colocam o lucro corporativista acima da protecção do
equilíbrio ambiental, conforme sucessivos governos e instituições nos têm vindo
a habituar. Figuras pioneiras como o reitor Amílcar Falcão serão um dia
recordadas pela sua integridade e pela coragem de desafiar os cânones da
sociedade e os interesses extractivistas das indústrias, isto para defender um
bem comum, um direito fundamental: o das gerações actuais e vindouras poderem
vir a beneficiar de um planeta que não esteja já depauperado, de poderem gozar
do mesmo conforto social, cultural e económico que muitos de nós desfrutam
presentemente
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