sexta-feira, 20 de setembro de 2019

António Costa está tranquilo, mas não devia



António Costa está tranquilo, mas não devia

Demasiadas vezes o pragmatismo de Costa confunde-se com um conformismo diante das falhas éticas recorrentes de membros do governo e dos seus camaradas de partido.

João Miguel Tavares
21 de Setembro de 2019, 6:46

As primeiras declarações do primeiro-ministro após a demissão do secretário de Estado da Protecção Civil, na sequência das buscas relacionadas com as golas antifumo (e não só), foram estas: “Sempre que o sistema de justiça funciona, o governo está tranquilo.” Depois, António Costa, possuído ainda pelo espírito da tranquilidade, aliviou-se de mais um trio de generalidades catitas – a importância da separação de poderes, a garantia de que ninguém está acima da lei, a independência da investigação criminal –, disse tchauzinho aos jornalistas, e seguiu para a campanha eleitoral, a assobiar para o ar, como se aquilo não fosse nada com ele ou com o seu ministro e amigo Eduardo Cabrita.

Mas esperem lá – serão as coisas assim tão simples? Não me parece que sejam. O Jornal Económico fez as contas e contabilizou 15 demissões por polémicas nesta legislatura. Entre elas, há licenciaturas falsas; um secretário de Estado da Saúde com ligações à ex-presidente da instituição Raríssimas; três secretários de Estado que foram ao Europeu 2016 pagos pela Galp; um ministro da Defesa apanhado em trapalhadas inqualificáveis a propósito de Tancos; os primos, os maridos e as mulheres do Familygate; e agora esta confusão que envolve o ministério da Administração Interna e a Autoridade Nacional da Protecção Civil. É obra. Todas essas pessoas (à excepção de Azeredo Lopes) foram bastante rápidas a demitirem-se, é verdade. Mas será que a velocidade da demissão diminui a responsabilidade de quem escolheu essas pessoas para os seus cargos?

A frase “sempre que o sistema de justiça funciona, o governo está tranquilo” é absurda neste contexto, porque o senhor primeiro-ministro não está a falar dos negócios escuros de um banco privado, nem de suspeitas de corrupção praticadas por um anónimo funcionário. António Costa está a falar da sua equipa. Mesmo que a justiça funcione, o que é óptimo, o governo não pode estar tranquilo, na medida em que, pelos vistos, se equivocou na equipa que escolheu. Seria como um treinador de futebol estar tranquilo depois de levar 15-0, argumentando que foi o sistema desportivo a funcionar.

Sim, Costa é muito esperto, mas há certas chico-espertices que não podemos engolir sem pestanejar, nomeadamente a táctica habilidosa de correr com todos os membros do governo assim que são constituídos arguidos. Atenção: a táctica está correcta. O que é incorrecto é aquilo que se segue: António Costa aproveita para atirar os problemas pela janela de São Bento, põe um cordão sanitário à sua volta, lava as mãos, e já está. Depois, diz aos jornalistas: “Problema? Qual problema? Então estes senhores não saíram imediatamente do governo? É o sistema a funcionar.” Sim, é verdade, eles saíram, mas quem lá os meteu ficou, e não cabe na cabeça de ninguém não haver um dever sério de explicação e uma reflexão aprofundada sobre os problemas endémicos de aproveitamento dos dinheiros públicos para receber vantagens próprias ou alheias. Isto não são casos isolados. São estruturas de corrupção instaladas de pedra e cal no Estado.

Esta reflexão, infelizmente, está toda por fazer. Demasiadas vezes o pragmatismo de Costa confunde-se com um conformismo diante das falhas éticas recorrentes de membros do governo e dos seus camaradas de partido. Ainda se lembram que Eduardo Cabrita chamou “cobras” aos jornalistas em off, a propósito deste caso das golas? Está agora à vista de todos onde é que estava o veneno. 

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