Teresa de Sousa
OPINIÃO
Trump e Johnson,
a mesma luta
O risco é o mesmo
nos dois grandes bastiões da democracia liberal: dar a vitória aos populistas.
29 de Setembro de
2019, 7:20
1. É
absolutamente irresistível a última capa da Economist, mais uma daquelas que a
revista britânica nos costuma oferecer e que têm o condão de contar uma
história completa. Desta vez, a revista recorre a duas figuras da Alice no País
das Maravilhas para sublinhar um facto tão evidente como preocupante: a
similitude e o paralelismo dos acontecimentos políticos no Reino Unido e nos
Estados Unidos nos últimos três anos. “Twitterdum and Twaddledee”, Trump e
Johnson no papel dos dois irmãos gémeos que andam sempre juntos.
Não são boas as
notícias que nos vêm do mundo anglo-saxónico, que teve uma influência decisiva
na construção da ordem internacional liberal desde o pós-guerra e serviu de
referência às democracias liberais. É dele que nos chegam as piores notícias
sobre a vaga populista que se apoderou do mundo. Pode comparar-se Boris Johnson
a Donald Trump? Pode comparar-se a crise da democracia americana à crise da
democracia britânica? Há alguns meses, talvez fôssemos tentados a responder que
não. Hoje, a resposta arrisca-se a ser diferente.
Voltemos à
Economist. “No dia 24 de Setembro, o dia em que se encontraram em Nova Iorque,
o Presidente americano e o primeiro-ministro britânico, dois expoentes do novo
populismo, falharam perante as instituições dos seus países.” A coincidência é
notável. Nesse dia, em Washington, Nancy Pelosi anunciava a abertura de um
processo de impeachment a Donald Trump, enquanto, em Londres, o Supremo
Tribunal declarava ilegal a decisão de Johnson de “suspender” o Parlamento por
cinco semanas. No caso dos EUA, a decisão de Pelosi tornou-se praticamente
inevitável, mesmo que a poderosa speaker da Câmara dos Representantes se
tivesse oposto a ela durante muito tempo, considerando que serviria na
perfeição a estratégia de radicalização e de vitimização do Presidente e que
seria inútil, porque acabaria por chumbar no Senado, que tem a última palavra.
O caso contra Trump “é muito mais sério do que um arrombamento [de instalações
do Partido Democrata para roubar informação com o conhecimento de Nixon] ou um
caso amoroso [de Clinton com uma estagiária da Casa Branca]”. Se se provarem os
factos, que o Presidente nem sequer nega, isso significa que Trump “subverteu o
interesse nacional para conseguir uma vendeta política”, citando ainda a
revista britânica. O Presidente americano chegou a suspender sem justificação a
decisão do Congresso sobre uma ajuda militar de 400 milhões de dólares a Kiev,
fazendo dela moeda de troca para encontrar “munições” contra o vice-presidente
de Obama que, por sinal, é o candidato democrata mais bem posicionado para
derrotá-lo em 2020. “Dá-me qualquer coisa escabrosa sobre Joe [Biden] e eu
dou-te em troca armas e dinheiro.” O caso ultrapassa todos os limites e é muito
simples de entender, ao contrário de outros (muitos) escândalos em que Trump
está envolvido, a começar pela preciosa ajuda do Kremlin para vencer as
presidências de 2016.
Hoje, já se
conhece com muito mais pormenor o modus operandi de Moscovo quer nos EUA, quer
na Europa para influenciar a opinião pública a favor dos seus interesses (e dos
políticos que melhor os podem servir), recorrendo a meios electrónicos
sofisticados, nomeadamente através das redes sociais, para espalhar notícias
falsas e financiando os partidos extremistas. Como a Economist ou o Financial
Times ou a generalidade da imprensa de referência americana sugerem, Nancy
Pelosi foi obrigada a desencadear o processo de impeachment pela razão simples
de que Trump passou uma linha a partir da qual não o fazer seria aceitar o
“vale tudo” na vida política americana. “Recusar um processo de impeachment a
Trump abriria um precedente para futuros presidentes: qualquer coisa ao mesmo
nível ou igual ao que fez o 45º Presidente passaria a ser politicamente
aceitável”.
2. Pelosi disse
muito simplesmente que “ninguém está acima da lei”. No mesmo dia, quase à mesma
hora, Lady Brenda Hale, que preside ao Supremo Tribunal britânico, declarava
ilegal (por unanimidade dos onze juízes) a decisão do primeiro-ministro de
suspender por cinco semanas o funcionamento do Parlamento britânico exactamente
com o mesmo argumento. A juíza Hale limitou-se aos factos e ao costume
constitucional britânico, considerando que “ninguém está acima da lei” e
citando uma decisão judicial de 1611: “O Rei não tem nenhuma prerrogativa, a
não ser aquela que a lei do país lhe permite”. Johnson não apresentou nenhuma razão
compreensível para a suspensão de cinco semanas do Parlamento (até ao dia 14 de
Outubro, véspera da cimeira europeia em que tudo será decidido sobre o
“Brexit”). O Parlamento foi imediatamente reaberto.
Johnson, como
Trump, atacou a decisão do Supremo Tribunal, os seus fiéis acusaram-no de
contrariar “a vontade do povo”. A estratégia do chefe do Governo é precisamente
essa: o Parlamento, os tribunais, a imprensa, quem quer que se oponha à sua
vontade de cumprir o “Brexit” no dia 31 de Outubro, com ou sem acordo, está a
impedir que se cumpra a “vontade do povo”. É a mesma estratégia de Trump: a
radicalização extrema da vida política, esvaziando qualquer solução de
compromisso e acusando qualquer obstrução do Congresso à sua vontade – seja ela
construir um muro na fronteira com o México ou recusar-se a apresentar a sua
declaração de rendimentos – como uma manobra contra o povo. A democracia
representativa contra a democracia referendária.
3. A imprensa de
referência britânica chama a atenção para a própria linguagem adoptada por
Johnson e pelos deputados conservadores mais exuberantes e mais radicais:
“rendição” a Bruxelas e “traição” ao povo, são duas palavras constante no seu
discurso para classificar os defensores do adiamento da data de saída para que
possa haver um acordo ou quem teime em defender a permanência do Reino Unido na
União Europeia. A lei que o Parlamento aprovou que obriga a adiar o “Brexit”
caso não haja um acordo é a “lei da rendição”. A linguagem contundente rasando
a grosseria utilizada pelo primeiro-ministro na quarta-feira passada, quando
teve de se apresentar em Westminster para a habitual sessão de perguntas ao
Governo, é, mais uma vez, semelhante à linguagem a que Trump já nos habituou.
Esperar-se-ia que alguém que foi educado em Eton e em Oxford tivesse um
comportamento diferente. A doença do populismo manifesta-se com os mesmos
sintomas.
4. A semelhança
entre a deriva populista nas duas mais antigas democracias do mundo
infelizmente não acaba aqui. Citando mais uma vez a Economist, o programa com
que o Labour se vai apresentar às eleições representa “a plataforma política
mais radical de qualquer líder britânico desde Margaret Thatcher”. Em sentido
contrário, naturalmente. À leva de nacionalizações das grandes empresas, Jeremy
Corbyn acrescenta a semana de quatro dias, a retenção de 10 por cento do valor
das acções das empresas para entregar aos trabalhadores e o fim das escolas
privadas. A lei não o permitiria e o custo de integrar 600 mil alunos no ensino
público seria incomportável. Precisamente quando os britânicos precisavam de um
Labour moderado e responsável para derrotar a deriva populista dos
conservadores, deparam-se com a mesma deriva populista em sentido contrário.
Tal como no Reino
Unido, a radicalização de Trump está a ter como reflexo a radicalização dos
democratas. Uma maioria dos candidatos às presidenciais vem da ala esquerda do
partido. Joe Biden, o candidato moderado que tem mantido a liderança nas
sondagens e que facilmente derrotaria o Presidente, pode sair desgastado do
escândalo ucraniano. Trump vai dizer todos os dias que apenas queria apurar
eventuais actos menos próprios de Biden ou do seu filho. O impeachment tenderá
a radicalizar ainda mais o debate, dando vantagem a Elizabeth Warren, a
candidata que mais se aproxima de Biden nas sondagens. O programa da senadora
do Massachusetts tem a vantagem de dar particular ênfase ao combate à
“corrupção” que grassa em Washington D.C., onde dominam os políticos dispostos
a “vender-se aos grandes interesses económicos”, mobilizando facilmente as
bases eleitorais do partido, mas talvez não o eleitorado central. Trump falava
de “pântano”. O risco é o mesmo nos dois grandes bastiões da democracia
liberal: dar a vitória aos populistas.
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