Fortes impactos,
fracos resultados
O afluxo de mais
capital ao imobiliário português vai agravar os impactos negativos sobre o
bem-estar de milhares de cidadãos nacionais e sobre o património cultural e
natural do país.
Victor Cóias
28 de Setembro de
2019, 2:30
Os diplomas
legais que impulsionaram a apoteose que vive atualmente o cluster
Turismo/Imobiliário/Construção (lei das rendas, vistos gold, regime excecional
de reabilitação urbana, simplificação dos alvarás), foram promulgados após a
entrada da troika em Portugal. No entanto, as primeiras medidas (regime
jurídico da reabilitação urbana, projetos PIN, estatuto de residente não
habitual), remontam à anterior governação socialista e resultam de iniciativas
legislativas concretizadas durante a elaboração da Estratégia de Reabilitação
Urbana de Lisboa 2011/2024 e com ela consonantes.
Foram fortíssimos
os efeitos da nova estratégia sobre as cidades e os seus moradores. O índice de
preços da habitação (IPH) registou, entre 2014 e meados de 2019, um crescimento
muito superior à inflação, medida pela variação do índice de preços no
consumidor (IPC). Efetivamente, enquanto os preços no consumidor, sem a
habitação, aumentaram 3,5%, os preços da habitação aumentaram, naquele período
e no conjunto do país, 49,5% (gráfico I).
O agravamento dos
preços da habitação é ainda maior em Lisboa e no Porto. Na capital, há exemplos
de transações em que compradores estrangeiros pagaram mais de 7000 €/m2. A
rápida subida dos preços da habitação é muito relevante para os cidadãos, com
reflexo na taxa de esforço de quem se propõe arrendar ou adquirir uma
habitação. Em resultado, desde os últimos censos, em 2011, até 2017 e
descontando os novos residentes estrangeiros, Lisboa perdeu 63.300 moradores
nacionais (12,9%) e o Porto perdeu cerca de 20.600 (9,2%). Constata-se,
portanto, um claro processo de gentrificação ou elitização, que se tem
traduzido no frequente despejo dos moradores originais usando as disposições
facilitadoras introduzidas na legislação, nomeadamente pelo regime do arrendamento
urbano promulgado em 2012. O rápido aumento das rendas, coloca as casas nas
zonas históricas fora do alcance dos cidadãos nacionais, em particular dos das
faixas mais jovens, que são empurrados para os dormitórios suburbanos, num
processo particularmente penoso para os estratos sociais mais vulneráveis.
Além do grande
impacto sobre os moradores, a proliferação de alojamentos locais e de hotéis
resultante do crescimento do turismo low-cost, altera o caráter e a “atmosfera”
dos centros e bairros históricos, desvalorizando-os enquanto património
cultural, aos olhos dos próprios visitantes. Este efeito é agravado pelo
licenciamento de empreendimentos dissonantes da envolvente e desenquadrados da
textura urbana consolidada.
No caso de
Lisboa, a reabilitação em curso nas áreas históricas está a ser feita em
contradição com os objetivos estratégicos apregoados pela câmara, nomeadamente,
os de “promover a sustentabilidade cultural e social”, e de “garantir a
proteção e promover a valorização do património cultural.” O mesmo acontece nos
centros históricos do Porto e de outras cidades, em contradição com a
Estratégia Nacional para a Habitação (ENH), que visa o contributo da
qualificação dos alojamentos para a inclusão social.
Em resultado do
conjunto de simplificações na legislação e nos procedimentos de licenciamento,
as intervenções de reabilitação são elas próprias frequentemente precárias e de
reduzida durabilidade. A dispensa de reforço estrutural é particularmente grave
no caso dos edifícios de zonas do país de maior risco sísmico. Nessas zonas, a
reabilitação, que se traduz sempre num aumento da exposição de pessoas e bens
ao risco sísmico, é acompanhada duma falsa perceção da segurança, com a
agravante da própria vulnerabilidade sísmica dos edifícios ser frequentemente
aumentada. Esta reabilitação “enganosa” pode estar a gerar um ónus de dimensão
incalculável para as autarquias envolvidas, que são as responsáveis últimas
pela segurança do edificado. Conscientes do problema, as seguradoras fogem a
vender apólices que cubram o risco sísmico e, aquelas que vendem, têm
normalmente salvaguardas quanto a defeitos de projeto ou de execução.
Do ponto de vista
da economia, o crescimento conseguido através da tríade T/I/C é precário e
insustentável. Precário porque sob a constante ameaça de fatores externos, como
a oferta alternativa e abundante doutras geografias, incluindo destinos
turísticos mais low-cost, os caprichos da “moda” turística e residencial, as
flutuações das taxas de juro ou as maquinações dos especuladores; insustentável
não só pela degradação da atratividade do país como destino turístico, mas
também pelos efeitos negativos sobre a balança de pagamentos (gráfico II).
O modelo de
crescimento é também ineficaz, na medida em que não responde às causas-raiz dos
problemas crónicos que afetam Portugal. A prevalência do cluster T/I/C
traduz-se na mobilização de recursos financeiros para estes setores, esquecendo
outros mais relevantes para a solidez da economia e a competitividade do país.
Embora, através
da aposta no T/I/C, se tenha conseguido, de início, um crescimento
significativo do emprego, tal crescimento não é acompanhado pela evolução do
PIB, porque os postos de trabalho entretanto criados, além de precários, são de
reduzido valor acrescentado. Com o PIB per capita estagnado em relação à média
da UE, Portugal foi, desde 2015, ultrapassado por três países (Estónia,
Lituânia e Eslováquia), e há outros três (Letónia, Polónia e Hungria), que se
aproximam rapidamente.
Estudos recentes
da Universidade do Algarve sobre a economia da região, mostram que o turismo
tem conduzido à concentração da produção em setores de baixo valor
acrescentado, reduzindo quer o peso da produção de bens transacionáveis no
conjunto da economia, quer a resiliência do emprego. Autores como Piketty e
Stiglitz põem em causa o investimento no imobiliário e na construção como
estratégia de crescimento da economia: a prosperidade gerada não é sustentável
e a desigualdade entre ricos e pobres aumenta.
Com o apoio do
poderoso lóbi do cluster Turismo/Imobiliário/Construção, continuam, no entanto,
a surgir em Portugal iniciativas visando o reforço da aposta nesse modelo de
crescimento, como é o caso da realização, ano após ano, de “cimeiras do
imobiliário” destinadas a potenciais investidores estrangeiros. Estas
iniciativas convocam para o Estoril a chamada global investment community, que
tanto pode incluir fundos de investimento e gestores de fortunas, como simples
especuladores e entidades ilícitas à espreita de oportunidades de branqueamento
de capitais.
O afluxo de mais
capital ao imobiliário português, atraído pelos ativos em venda apressada ou
pelas facilidades concedidas pelo Estado ao negócio imobiliário, vai agravar os
impactos negativos sobre o bem-estar de milhares de cidadãos nacionais e sobre
o património cultural e natural do país. O crescimento económico que
proporciona pouco mais é do que um fogacho.
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