domingo, 15 de setembro de 2019

Ainda o “modo de vida europeu”



Teresa de Sousa
ANÁLISE
Ainda o “modo de vida europeu”

As escolhas feitas por Von der Leyen não implicam uma condenação generalizada, mas são um preocupante sinal dos tempos.

15 de Setembro de 2019, 6:10

1. O que se espera da figura que preside à Comissão Europeia? Que tenha uma visão global da União Europeia, da sua natureza, dos seus problemas e dos seus principais desafios. Que consiga fazer-se respeitar pelos governos europeus, fazendo ouvir a sua voz com a devida atenção no Conselho Europeu, o órgão que detém as rédeas da condução política da União e cujo poder se viu reforçado ao longo da crise que a Europa atravessou na última década. Que compreenda os pontos essenciais da agenda europeia em cada momento, a nível interno e na sua relação com o mundo, não se deixando enredar nas “pequenas e médias” medidas de que a eurocracia se alimenta. Que seja capaz de liderar um órgão colegial no qual estão representados todos os Estados-membros, com as suas particularidades e os seus interesses específicos, mesmo que, por definição, cada comissário deva ser o mais independente possível do seu país de origem. É um caderno de encargos pesado, que exige habilidade política, bom senso e autoridade.

2. Jacques Delors, que presidiu à Comissão entre 1985 e 1995, foi em boa medida o modelo em relação ao qual os seus sucessores tiveram de se comparar. Presidiu a alguns momentos históricos da integração europeia. Ganhou uma enorme autoridade junto dos chefes de Estado e de Governo. Mas é justo recordar que a sua liderança foi bastante facilitada pelo apoio fundamental que recebeu quase sempre do eixo franco-alemão. Coube-lhe também liderar uma Europa mais pequena, mais homogénea e mais ocidental. Muito longe da actual União Europeia, alargada à dimensão do continente, a viver as dores da adaptação a um mundo nos antípodas daquele que a viu nascer, e que se move hoje na direcção contrária do seu próprio modelo de integração. Os sucessores de Delors foram figuras políticas menos dominantes, mais susceptíveis de se vergar à pressão dos grandes países. Durante a crise financeira e a crise do euro, essa subordinação foi particularmente evidente, com a Comissão Barroso a aceitar sem pestanejar os diktats de Berlim. Jean-Claude Juncker foi o “último dos moicanos” de uma velha geração de europeístas, para os quais a Europa foi quase um modo de vida, nem sempre capazes de se adaptar a uma realidade muito mais complexa e muito mais adversa ao velho sonho europeu. A Comissão Juncker agiu algumas vezes em formação dispersa, sobretudo durante a crise, com os “ortodoxos” da austeridade a assumirem o comando das operações. São famosos os desabafos do ainda presidente da Comissão sobre a sua impotência perante a vontade dos grandes países – com particular relevo, naturalmente, para França e Alemanha.

3. A escolha da nova presidente da Comissão não foi um processo simples. Aliás, poucas horas antes de o seu nome ser colocado em cima da mesa num dramático Conselho Europeu extraordinário no início de Julho, não fazia parte, nem de perto nem de longe, dos nomes possíveis para desempenhar o cargo. A sua escolha resulta do confronto entre os principais grupos políticos em torno dos chamados “Spitzenkandidaten” (os candidatos à liderança da Comissão que cada um dos partidos políticos europeus apresentou nas eleições para o Parlamento Europeu de Maio) sobre a forma de distribuir entre eles os cargos mais importantes das instituições da União – quem preside à Comissão, ao Conselho Europeu, ao BCE e à diplomacia europeia. A parte mais inesperada, e porventura mais pesada de consequências, desta “guerra” acabou por ser a rebelião do PPE contra o acordo que tinha sido encontrado entre a chanceler alemã, o Presidente francês e os líderes socialistas (em particular, os dois primeiros-ministros de Portugal e Espanha) para uma distribuição de cargos que dava a Comissão ao socialista Frans Timmermans e o Conselho ao PPE, com a directora-geral do FMI, a francesa Christine Lagarde, a suceder a Mario Draghi no BCE. O PPE não quis abdicar do direito a ter a Comissão, enquanto partido mais votado nas eleições europeias. Acabou por entrar no jogo de Viktor Orbán e dos seus amigos polacos, para quem Timmermans era a figura a abater. Por uma simples razão: foi ele o responsável pelos processos abertos contra Budapeste e Varsóvia por violação das regras do Estado de Direito. Macron tirou Von der Leyen do bolso e construiu uma maioria em torno do seu nome, que contou com o beneplácito de Orbán e do Governo de Varsóvia.

Nada disto foi pacífico no Parlamento Europeu, cioso do seu poder de condicionar as escolhas do Conselho Europeu através da figura dos “Spitzenkandidaten”. Von der Leyen teve de “conquistar” a simpatia dos principais grupos políticos, comprometendo-se com algumas das suas exigências. É preciso levar tudo isto em conta para perceber a reacção muito dura de muita gente ao novo organigrama e à nova nomenclatura da sua Comissão, e sobretudo à designação de uma vice-presidência responsável por “proteger o modo de vida europeu”, vista imediatamente como uma cedência aos populistas e à sua agenda anti-imigrantes.

4. É difícil de acreditar que Von der Leyen não tenha medido as consequências desta escolha. Tem experiência política que baste e vem de um país, a Alemanha, no qual o debate sobre os imigrantes e os refugiados tem sido particularmente intenso. Fez parte de um Governo que abriu generosamente as portas a centenas de milhares de refugiados, para não ter consciência da importância e da delicadeza que as questões da imigração hoje têm nas democracias europeias. Na sexta-feira, a sua resposta à polémica foi a transcrição via Twitter do Artigo 2.º do Tratado de Lisboa, segundo o qual o objectivo da União é promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos (…), devendo “oferecer aos seus cidadãos uma área de liberdade, segurança e justiça, sem fronteiras internas, na qual a liberdade de movimento das pessoas é garantida em conjugação com medidas apropriadas no controlo das fronteiras exteriores, do asilo, da imigração e da prevenção e combate ao crime”.

É uma boa tentativa, que não conseguirá pôr cobro à polémica.

5. À primeira vista, “proteger o modo de vida europeu” pode parecer uma ideia óbvia e inocente. Somos europeus, queremos proteger o nosso modo de vida, que pode ser definido por um Estado Social que nos garante longos períodos de férias, licenças pagas de maternidade, subsídios de desemprego decentes, saúde e educação para todos. Não é bem assim nem é essa a descrição da tarefa que Von der Leyen atribui ao comissário responsável, o grego Margaritis Schinas. Camino Mortera-Martinez, investigadora das questões de Justiça e Assuntos Internos da UE do Centre for European Reform de Londres, começa por lembrar que o trabalho do comissário grego será “coordenar as políticas de migração e asilo, promovendo a integração e garantindo que os europeus estão protegidos do terrorismo e dos ataques cibernéticos”. É esta ligação directa entre imigração e segurança que não permite uma interpretação mais benévola da nova função criada por Von der Leyen. “Ser tão directo ao ponto de ligar a necessidade de gerir a imigração com a necessidade de proteger o ‘modo de vida europeu’ (seja o que for que isto queira dizer) é roubar uma página ao livro de receitas dos movimentos populistas.” A investigadora lembra que as migrações são um tema fundamental da agenda política europeia e bem mereciam uma vice-presidência, só que numa perspectiva distinta: a liberdade de movimentos, os controlos fronteiriços e a necessidade de criar políticas comuns de asilo e de imigração. Tão simples quanto isso. A versão da nova presidente da Comissão é “iludir” a importância da questão, “acenando à agenda populista com uma mão, enquanto tenta manter a outra limpa de qualquer acusação”. É uma crítica dura, mas provavelmente certeira. “Talvez seja outra forma de dizer que vamos manter a Europa branca e cristã”, escreve Paul Dallison no site Politico.eu. Orbán passa a vida a defender a “cristandade”, acusando a democracia-cristã europeia de ter abandonado os seus valores.

Nada disto implica uma condenação generalizada das escolhas feitas por Von der Leyen, nem a ambição política que imprimiu à sua agenda e à escolha dos seus comissários. Mas é um preocupante sinal dos tempos.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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