Teresa de Sousa
ANÁLISE
Ainda o “modo de
vida europeu”
As escolhas
feitas por Von der Leyen não implicam uma condenação generalizada, mas são um
preocupante sinal dos tempos.
15 de Setembro de
2019, 6:10
1. O que se
espera da figura que preside à Comissão Europeia? Que tenha uma visão global da
União Europeia, da sua natureza, dos seus problemas e dos seus principais
desafios. Que consiga fazer-se respeitar pelos governos europeus, fazendo ouvir
a sua voz com a devida atenção no Conselho Europeu, o órgão que detém as rédeas
da condução política da União e cujo poder se viu reforçado ao longo da crise
que a Europa atravessou na última década. Que compreenda os pontos essenciais
da agenda europeia em cada momento, a nível interno e na sua relação com o
mundo, não se deixando enredar nas “pequenas e médias” medidas de que a
eurocracia se alimenta. Que seja capaz de liderar um órgão colegial no qual
estão representados todos os Estados-membros, com as suas particularidades e os
seus interesses específicos, mesmo que, por definição, cada comissário deva ser
o mais independente possível do seu país de origem. É um caderno de encargos
pesado, que exige habilidade política, bom senso e autoridade.
2. Jacques
Delors, que presidiu à Comissão entre 1985 e 1995, foi em boa medida o modelo
em relação ao qual os seus sucessores tiveram de se comparar. Presidiu a alguns
momentos históricos da integração europeia. Ganhou uma enorme autoridade junto
dos chefes de Estado e de Governo. Mas é justo recordar que a sua liderança foi
bastante facilitada pelo apoio fundamental que recebeu quase sempre do eixo
franco-alemão. Coube-lhe também liderar uma Europa mais pequena, mais homogénea
e mais ocidental. Muito longe da actual União Europeia, alargada à dimensão do
continente, a viver as dores da adaptação a um mundo nos antípodas daquele que
a viu nascer, e que se move hoje na direcção contrária do seu próprio modelo de
integração. Os sucessores de Delors foram figuras políticas menos dominantes,
mais susceptíveis de se vergar à pressão dos grandes países. Durante a crise
financeira e a crise do euro, essa subordinação foi particularmente evidente,
com a Comissão Barroso a aceitar sem pestanejar os diktats de Berlim.
Jean-Claude Juncker foi o “último dos moicanos” de uma velha geração de europeístas,
para os quais a Europa foi quase um modo de vida, nem sempre capazes de se
adaptar a uma realidade muito mais complexa e muito mais adversa ao velho sonho
europeu. A Comissão Juncker agiu algumas vezes em formação dispersa, sobretudo
durante a crise, com os “ortodoxos” da austeridade a assumirem o comando das
operações. São famosos os desabafos do ainda presidente da Comissão sobre a sua
impotência perante a vontade dos grandes países – com particular relevo,
naturalmente, para França e Alemanha.
3. A escolha da
nova presidente da Comissão não foi um processo simples. Aliás, poucas horas
antes de o seu nome ser colocado em cima da mesa num dramático Conselho Europeu
extraordinário no início de Julho, não fazia parte, nem de perto nem de longe,
dos nomes possíveis para desempenhar o cargo. A sua escolha resulta do
confronto entre os principais grupos políticos em torno dos chamados
“Spitzenkandidaten” (os candidatos à liderança da Comissão que cada um dos
partidos políticos europeus apresentou nas eleições para o Parlamento Europeu
de Maio) sobre a forma de distribuir entre eles os cargos mais importantes das
instituições da União – quem preside à Comissão, ao Conselho Europeu, ao BCE e
à diplomacia europeia. A parte mais inesperada, e porventura mais pesada de
consequências, desta “guerra” acabou por ser a rebelião do PPE contra o acordo
que tinha sido encontrado entre a chanceler alemã, o Presidente francês e os
líderes socialistas (em particular, os dois primeiros-ministros de Portugal e
Espanha) para uma distribuição de cargos que dava a Comissão ao socialista
Frans Timmermans e o Conselho ao PPE, com a directora-geral do FMI, a francesa
Christine Lagarde, a suceder a Mario Draghi no BCE. O PPE não quis abdicar do
direito a ter a Comissão, enquanto partido mais votado nas eleições europeias.
Acabou por entrar no jogo de Viktor Orbán e dos seus amigos polacos, para quem
Timmermans era a figura a abater. Por uma simples razão: foi ele o responsável
pelos processos abertos contra Budapeste e Varsóvia por violação das regras do
Estado de Direito. Macron tirou Von der Leyen do bolso e construiu uma maioria
em torno do seu nome, que contou com o beneplácito de Orbán e do Governo de
Varsóvia.
Nada disto foi
pacífico no Parlamento Europeu, cioso do seu poder de condicionar as escolhas
do Conselho Europeu através da figura dos “Spitzenkandidaten”. Von der Leyen
teve de “conquistar” a simpatia dos principais grupos políticos,
comprometendo-se com algumas das suas exigências. É preciso levar tudo isto em
conta para perceber a reacção muito dura de muita gente ao novo organigrama e à
nova nomenclatura da sua Comissão, e sobretudo à designação de uma
vice-presidência responsável por “proteger o modo de vida europeu”, vista
imediatamente como uma cedência aos populistas e à sua agenda anti-imigrantes.
4. É difícil de
acreditar que Von der Leyen não tenha medido as consequências desta escolha.
Tem experiência política que baste e vem de um país, a Alemanha, no qual o
debate sobre os imigrantes e os refugiados tem sido particularmente intenso.
Fez parte de um Governo que abriu generosamente as portas a centenas de
milhares de refugiados, para não ter consciência da importância e da delicadeza
que as questões da imigração hoje têm nas democracias europeias. Na sexta-feira,
a sua resposta à polémica foi a transcrição via Twitter do Artigo 2.º do
Tratado de Lisboa, segundo o qual o objectivo da União é promover a paz, os
seus valores e o bem-estar dos seus povos (…), devendo “oferecer aos seus
cidadãos uma área de liberdade, segurança e justiça, sem fronteiras internas,
na qual a liberdade de movimento das pessoas é garantida em conjugação com
medidas apropriadas no controlo das fronteiras exteriores, do asilo, da
imigração e da prevenção e combate ao crime”.
É uma boa tentativa,
que não conseguirá pôr cobro à polémica.
5. À primeira
vista, “proteger o modo de vida europeu” pode parecer uma ideia óbvia e
inocente. Somos europeus, queremos proteger o nosso modo de vida, que pode ser
definido por um Estado Social que nos garante longos períodos de férias,
licenças pagas de maternidade, subsídios de desemprego decentes, saúde e
educação para todos. Não é bem assim nem é essa a descrição da tarefa que Von
der Leyen atribui ao comissário responsável, o grego Margaritis Schinas. Camino
Mortera-Martinez, investigadora das questões de Justiça e Assuntos Internos da
UE do Centre for European Reform de Londres, começa por lembrar que o trabalho
do comissário grego será “coordenar as políticas de migração e asilo,
promovendo a integração e garantindo que os europeus estão protegidos do
terrorismo e dos ataques cibernéticos”. É esta ligação directa entre imigração
e segurança que não permite uma interpretação mais benévola da nova função
criada por Von der Leyen. “Ser tão directo ao ponto de ligar a necessidade de
gerir a imigração com a necessidade de proteger o ‘modo de vida europeu’ (seja
o que for que isto queira dizer) é roubar uma página ao livro de receitas dos
movimentos populistas.” A investigadora lembra que as migrações são um tema
fundamental da agenda política europeia e bem mereciam uma vice-presidência, só
que numa perspectiva distinta: a liberdade de movimentos, os controlos
fronteiriços e a necessidade de criar políticas comuns de asilo e de imigração.
Tão simples quanto isso. A versão da nova presidente da Comissão é “iludir” a
importância da questão, “acenando à agenda populista com uma mão, enquanto
tenta manter a outra limpa de qualquer acusação”. É uma crítica dura, mas
provavelmente certeira. “Talvez seja outra forma de dizer que vamos manter a
Europa branca e cristã”, escreve Paul Dallison no site Politico.eu. Orbán passa
a vida a defender a “cristandade”, acusando a democracia-cristã europeia de ter
abandonado os seus valores.
Nada disto
implica uma condenação generalizada das escolhas feitas por Von der Leyen, nem
a ambição política que imprimiu à sua agenda e à escolha dos seus comissários.
Mas é um preocupante sinal dos tempos.
tp.ocilbup@asuos.ed.aseret
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