Manuel Carvalho
EDITORIAL
Até quando vai
ficar o PS em silêncio?
São muitas as
perguntas sobre Tancos que o PS e o Governo têm para responder e é errado
acreditar que o silêncio acabará por as postergar ou fazer esquecer
29 de Setembro de
2019, 6:28
Já toda a gente
percebeu que na campanha “não podemos deixar de falar de um caso que é grave”,
como designa Catarina Martins a vilania de Tancos. Toda a gente, menos a gente
do PS. A acusação do caso envolve um ex-ministro e representantes das mais
altas esferas das Forças Armadas, da GNR e da Judiciária Militar – para lá dos
inquéritos em curso a figuras gradas do Ministério Público, noticia o DN. O
caso fez de uma Comissão Parlamentar de Inquérito uma farsa, contaminou as
relações entre Belém e São Bento, gera fluxos de informação e contra-informação
que intoxicam a política. Está-se a criar um vírus que afunda a credibilidade
do Estado, dissemina suspeitas entre altas figuras da política e afunda o ânimo
do país que se habituara a assistir a uma campanha decente e razoavelmente
esclarecedora.
Ainda assim, a
cúpula do PS, a começar pelo seu secretário-geral, decretou que toda esta teia
que configura uma das mais graves políticas do país em muitos anos não passa de
um assunto da Justiça. Acreditar que é possível gerir um caso desta dimensão e
gravidade apagando-o da agenda da campanha não é só um erro: é também um acto
de demissão pública do PS. Porque se as campanhas servem para alguma coisa é
para projectar o futuro com base na memória do passado recente. E, juntamente
com o drama dos incêndios, o caso de Tancos converteu-se no maior drama da
política nacional desse período.
São muitas as
perguntas sobre Tancos que o PS e o Governo têm para responder e é errado
acreditar que o silêncio acabará por as postergar ou fazer esquecer. Nem os
jornais, nem a oposição o permitirão – mesmo que alguns dos seus líderes, como
Rui Rio, tenham de repensar os seus ideais sobre a Justiça. Manter esta atitude
acabará por colar o PS a ideia de que cultiva um silêncio comprometido.
Insistir na tese judicial soará a desculpa de mau pagador. Insinuar que a
acusação resulta de uma “conspiração política”, como noticiava o Expresso, é
devastador para um partido com uma penosa história judicial.
A bem da campanha
e do próprio PS, resta uma alternativa: falar, explicar e justificar se for
caso disso. A protecção concedida a Azeredo Lopes até ao momento em que ambos
leram o memorando que relatava a encenação, o apoio inabalável que o
ex-ministro recebeu de António Costa são episódios políticos sujeitos a um
legítimo escrutínio. Até porque, no essencial, a Justiça está do lado de
António Costa – que considera não haver razões para lhe atribuir o conhecimento
da velhacaria que se congeminou em torno das armas.
António Barreto
OPINIÃO
Os inimigos da
democracia
29 de Setembro de
2019, 6:33
Os clássicos
inimigos da democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de
esquerda ou de direita, estes últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a
virtude. Podem vir do capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com
ajudas várias, da cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito
que se sabe isto.
Os inimigos da
democracia percorrem as vias abertas pelos democratas. Aproveitam em seu
benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as suas querelas
inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas dos democratas, o seu
egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida. Estão à espera da
incompetência e da covardia dos democratas.
Os inimigos da
democracia espreitam atentamente para os corredores da justiça, local onde a
democracia se perde tantas vezes. Olham para as contas bancárias dos políticos
e dos seus amigos, à procura de movimentos e de sinais. Observam a corrupção, a
que faz circular dinheiro, a que branqueia receitas, a que organiza concursos,
a que favorece promoções, a que emprega os amigos e a que cobra luvas e
comissões pelos negócios de Estado.
Os inimigos da
democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas
aventuras. Estão cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha,
numa polícia que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso,
espreitam e esperam. Se for possível aproveitar os interstícios da democracia,
aproveitam. Mas as suas reais intenções são as de varrer as instituições e
tomar conta.
Uma longa
observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos, os que
não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do populismo,
é utilíssima! Na verdade, uma boa parte desses pequenos partidos são
evidentemente inimigos da democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos
fartos”, “é preciso acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí
para nos deixar governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos
iguais”… É com estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o
eleitorado. Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo
nome ou outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que
não vem mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão
mais calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das
instituições, esperam e espreitam.
Segundo Ignazio
Silone, o americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o
seu conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O
senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como.
Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique,
onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido
pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos
dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas
dá ao Senhor W é simples: ao contrário do que se pensa frequentemente, as
democracias não são derrubadas. Ninguém as conquista do exterior. Não morrem
por causas alheias. Não são tomadas de assalto. Caem por si próprias. São
derrotadas pelos seus próprios responsáveis. “A morte de uma democracia é, o
mais das vezes, um suicídio camuflado!”
Não é possível
observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O assunto
merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos. Quase
ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência
transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia
portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar
as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era impossível! São episódios como este
que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus dirigentes. Todos
passam culpas para os senhores do lado, para os adversários e para quem está
abaixo.
Será que as
instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a questão
de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os responsáveis? Punir
a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que Tancos conspurcou tudo e
todos. Por culpas ou responsabilidades. Por intervenção ou omissão. Por
ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos bandidos, até ao Governo e à
Presidência da República, passando pela Administração Pública, os Magistrados e
as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que ninguém fica de
fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm alguma
responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão, ignorância,
ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de responsabilidade varia
muito, conforme o gesto ou a falta dele.
Não quero dizer
que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado. Mas, se houver um
dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou ali, naquela
charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à EDP e aos
cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à Protecção
Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de arquivamento
inexplicáveis.
Diminuem os
tempos dos comícios, os berros nas arruadas e os insultos na praça pública.
Ainda há berraria inútil e histriónica no Parlamento e nas instituições
representativas, por causa da televisão. Mas, nestes domínios, as nossas
eleições estão a melhorar, a ficar mais bem-educadas. E os nossos políticos a
comportarem-se como pessoas civilizadas ou quase. É bom que assim seja. Só que
não chega. No comportamento político e financeiro e nas regras de conduta, há
muito que não satisfaz, talvez até cada vez mais.
Em tempos de
política de massas, de redes sociais e de lugares comuns, os regimes
autoritários, fascistas, comunistas ou populistas são, como no passado recente,
golpes em democracias falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e
onde a democracia foi capturada.
Não serão
brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que ameaçarão
a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as multinacionais
americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses e aos tribunais
portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da porta giratória. E
da falta de justiça.
Sociólogo
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