sábado, 28 de setembro de 2019

Até quando vai ficar o PS em silêncio? / Os inimigos da democracia



Manuel Carvalho
EDITORIAL
Até quando vai ficar o PS em silêncio?

São muitas as perguntas sobre Tancos que o PS e o Governo têm para responder e é errado acreditar que o silêncio acabará por as postergar ou fazer esquecer

29 de Setembro de 2019, 6:28

Já toda a gente percebeu que na campanha “não podemos deixar de falar de um caso que é grave”, como designa Catarina Martins a vilania de Tancos. Toda a gente, menos a gente do PS. A acusação do caso envolve um ex-ministro e representantes das mais altas esferas das Forças Armadas, da GNR e da Judiciária Militar – para lá dos inquéritos em curso a figuras gradas do Ministério Público, noticia o DN. O caso fez de uma Comissão Parlamentar de Inquérito uma farsa, contaminou as relações entre Belém e São Bento, gera fluxos de informação e contra-informação que intoxicam a política. Está-se a criar um vírus que afunda a credibilidade do Estado, dissemina suspeitas entre altas figuras da política e afunda o ânimo do país que se habituara a assistir a uma campanha decente e razoavelmente esclarecedora.

Ainda assim, a cúpula do PS, a começar pelo seu secretário-geral, decretou que toda esta teia que configura uma das mais graves políticas do país em muitos anos não passa de um assunto da Justiça. Acreditar que é possível gerir um caso desta dimensão e gravidade apagando-o da agenda da campanha não é só um erro: é também um acto de demissão pública do PS. Porque se as campanhas servem para alguma coisa é para projectar o futuro com base na memória do passado recente. E, juntamente com o drama dos incêndios, o caso de Tancos converteu-se no maior drama da política nacional desse período.

São muitas as perguntas sobre Tancos que o PS e o Governo têm para responder e é errado acreditar que o silêncio acabará por as postergar ou fazer esquecer. Nem os jornais, nem a oposição o permitirão – mesmo que alguns dos seus líderes, como Rui Rio, tenham de repensar os seus ideais sobre a Justiça. Manter esta atitude acabará por colar o PS a ideia de que cultiva um silêncio comprometido. Insistir na tese judicial soará a desculpa de mau pagador. Insinuar que a acusação resulta de uma “conspiração política”, como noticiava o Expresso, é devastador para um partido com uma penosa história judicial.

A bem da campanha e do próprio PS, resta uma alternativa: falar, explicar e justificar se for caso disso. A protecção concedida a Azeredo Lopes até ao momento em que ambos leram o memorando que relatava a encenação, o apoio inabalável que o ex-ministro recebeu de António Costa são episódios políticos sujeitos a um legítimo escrutínio. Até porque, no essencial, a Justiça está do lado de António Costa – que considera não haver razões para lhe atribuir o conhecimento da velhacaria que se congeminou em torno das armas.





António Barreto
OPINIÃO
Os inimigos da democracia
29 de Setembro de 2019, 6:33

Os clássicos inimigos da democracia são conhecidos: comunistas, fascistas e populistas de esquerda ou de direita, estes últimos com pretextos comuns, o nacionalismo e a virtude. Podem vir do capitalismo, do sindicato, do regimento e do púlpito, com ajudas várias, da cátedra à imprensa, das polícias às redes sociais. Há muito que se sabe isto.

Os inimigos da democracia percorrem as vias abertas pelos democratas. Aproveitam em seu benefício os erros dos democratas, as suas desatenções, as suas querelas inúteis, a sua volúpia e a sua cobiça. Procuram as falhas dos democratas, o seu egoísmo, o seu narcisismo e a sua ambição desmedida. Estão à espera da incompetência e da covardia dos democratas.

Os inimigos da democracia espreitam atentamente para os corredores da justiça, local onde a democracia se perde tantas vezes. Olham para as contas bancárias dos políticos e dos seus amigos, à procura de movimentos e de sinais. Observam a corrupção, a que faz circular dinheiro, a que branqueia receitas, a que organiza concursos, a que favorece promoções, a que emprega os amigos e a que cobra luvas e comissões pelos negócios de Estado.

Os inimigos da democracia sabem que a corrupção e o nepotismo abrem as portas para as suas aventuras. Estão cientes de que os seus caminhos estão numa justiça que falha, numa polícia que não cumpre e numa administração incompetente. Por isso, espreitam e esperam. Se for possível aproveitar os interstícios da democracia, aproveitam. Mas as suas reais intenções são as de varrer as instituições e tomar conta.

Uma longa observação dos tempos de antena da maior parte dos “pequenos” partidos, os que não têm representação parlamentar, os partidos da fragmentação e do populismo, é utilíssima! Na verdade, uma boa parte desses pequenos partidos são evidentemente inimigos da democracia, usam todos os tiques e clichés, “estamos fartos”, “é preciso acabar com isto”, “é necessária uma vassourada”, “saiam daí para nos deixar governar”, “são todos uma cambada de corruptos”, “são todos iguais”… É com estes desabafos analfabetos que esses senhores julgam comover o eleitorado. Dentro de uma semana, vão desaparecer. Talvez voltem, com o mesmo nome ou outro, não se sabe. Mas deles nada virá. É donde menos se espera que não vem mesmo nada. Os outros, os verdadeiros inimigos da democracia, estão mais calados, por enquanto. Nas arcadas do poder e nos corredores das instituições, esperam e espreitam.

Segundo Ignazio Silone, o americano senhor W ou Duplo-Vê veio à Europa, há umas décadas, com o seu conselheiro político e para os assuntos ideológicos, o Professor Pickup. O senhor W queria tomar o poder nos Estados Unidos, mas não sabia muito bem como. Fez uma tournée na Europa, instalou-se confortavelmente num hotel de Zurique, onde recebia o senhor Thomas, especialista europeu em política e mais conhecido pela alcunha de “O Cínico”. As suas conversas duraram longas horas e muitos dias. São verdadeiras lições que convém recordar. A mensagem essencial que Thomas dá ao Senhor W é simples: ao contrário do que se pensa frequentemente, as democracias não são derrubadas. Ninguém as conquista do exterior. Não morrem por causas alheias. Não são tomadas de assalto. Caem por si próprias. São derrotadas pelos seus próprios responsáveis. “A morte de uma democracia é, o mais das vezes, um suicídio camuflado!”

Não é possível observar ou pensar no episódio de Tancos sem ter em mente este aviso. O assunto merece especial atenção. O caso incomoda a democracia há dois anos. Quase ninguém se portou convenientemente. Um episódio de mera delinquência transformou-se numa das mais graves e sérias provações da democracia portuguesa, pondo em xeque as instituições e a honra de muita gente. Sem poupar as Forças Armadas e os Tribunais. Pior era impossível! São episódios como este que revelam a fragilidade do regime e a fraqueza dos seus dirigentes. Todos passam culpas para os senhores do lado, para os adversários e para quem está abaixo.

Será que as instituições políticas e judiciárias não têm capacidade para resolver a questão de Tancos? Para elucidar a população? Sanear e castigar os responsáveis? Punir a mentira e a irresponsabilidade? Já se percebeu que Tancos conspurcou tudo e todos. Por culpas ou responsabilidades. Por intervenção ou omissão. Por ocultação ou mentira. Dos trafulhas aos bandidos, até ao Governo e à Presidência da República, passando pela Administração Pública, os Magistrados e as Forças Armadas, desconfia-se de toda a gente, parece que ninguém fica de fora. Seria bom que, de facto, todos percebessem que têm alguma responsabilidade, por actos, cumplicidade, encobrimento, omissão, ignorância, ocultação ou indiferença. Como é evidente, o grau de responsabilidade varia muito, conforme o gesto ou a falta dele.

Não quero dizer que Tancos seja o cenotáfio da democracia. Seria exagerado. Mas, se houver um dia uma tragédia, poder-se-á dizer que alguma coisa começou ali, naquela charneca. Tancos acrescenta-se ao BNP, ao BES e ao BCP. À PT, à EDP e aos cimentos. À Face Oculta e à Operação Marquês. Aos incêndios e à Protecção Civil. Aos políticos arguidos e nunca julgados. Aos despachos de arquivamento inexplicáveis.

Diminuem os tempos dos comícios, os berros nas arruadas e os insultos na praça pública. Ainda há berraria inútil e histriónica no Parlamento e nas instituições representativas, por causa da televisão. Mas, nestes domínios, as nossas eleições estão a melhorar, a ficar mais bem-educadas. E os nossos políticos a comportarem-se como pessoas civilizadas ou quase. É bom que assim seja. Só que não chega. No comportamento político e financeiro e nas regras de conduta, há muito que não satisfaz, talvez até cada vez mais.

Em tempos de política de massas, de redes sociais e de lugares comuns, os regimes autoritários, fascistas, comunistas ou populistas são, como no passado recente, golpes em democracias falhadas, em países onde as revoluções não vingaram e onde a democracia foi capturada.

Não serão brigadas fascistas, regimentos europeus ou destacamentos comunistas que ameaçarão a democracia portuguesa. Nem sequer o capitalismo chinês ou as multinacionais americanas. Quem o fizer, será graças aos políticos portugueses e aos tribunais portugueses. E será por causa da corrupção, do nepotismo e da porta giratória. E da falta de justiça.

Sociólogo

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