Guterres sobre o
clima: “Governos têm de acelerar. Porque estamos a perder a corrida”
O
secretário-geral da ONU avisa que estamos a perder a corrida contra as
alterações climáticas, mas lembra que as metas para limitar o aumento das
temperaturas ainda podem ser alcançadas.
Mark Hertsgaard e
Mark Phillips 18 de Setembro de 2019, 19:09
Mostra-se
confiante na reversão da crise climática, apesar de lhe chamar uma
“emergência”. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, vê “a
sociedade a mexer-se” e consegue “sentir um novo vento de esperança a soprar”.
Em entrevista ao consórcio de jornalistas Covering Climate Now, de que o
PÚBLICO faz parte, diz que embora os Estados Unidos não alinhem nos esforços de
redução de emissões de CO2, há “cada vez mais países a tomarem medidas”.
A conversa
decorreu na sede da ONU e foi conduzida por Mark Hertsgaard, da revista The
Nation e fundador do consórcio Covering Climate Now, e Mark Phillips, da CBS
News. Na próxima segunda-feira, António Guterres reúne na Cimeira da Acção
Climática, em Nova Iorque, líderes de todo o mundo. E avisa: “A natureza está
zangada. Não podemos brincar com a natureza, porque ela devolve o golpe.”
Mark Hertsgaard
(MH): Tem estado a trabalhar arduamente no problema climático, chamando-lhe
“emergência”. As pessoas, em todo o mundo, estão assustadas. Querem acção.
Convocou a Cimeira das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas porque
os governos não estão a agir. O que é que as pessoas podem fazer para que os
governos se esforcem mais e ajam como se esta fosse, de facto, uma emergência
como diz que é?
O público em
geral pode mobilizar-se de diferentes formas. Temos visto os jovens com uma
liderança fantástica nesse aspecto. Vemos também a sociedade e as organizações
não-governamentais. Vemos a comunidade empresarial, as cidades e regiões a
fazer pressão sobre os governos para que actuem em prol do clima. Vimos isso
nas últimas eleições europeias. E também vemos as próprias cidades e empresas a
reduzir as emissões e gestores a desinvestir nos combustíveis fósseis. Vemos os
bancos a ter em conta o clima nas suas operações financeiras. Por isso, vejo a
sociedade cada vez mais empenhada na acção climática. O que eu desejo é que
toda a sociedade faça pressão sobre os governos, para que percebam que têm de
acelerar. Porque estamos a perder a corrida.
MH: É por
estarmos a perder a corrida que lhe chama uma emergência?
Sim. Vejamos a
sucessão de catástrofes naturais cada vez mais intensas e devastadoras. Eu
acabei de vir das Bahamas. É chocante ver o que observei, destruição total. A
seca em África. Não é apenas um problema para o bem-estar das populações locais
e que as leva a deslocar-se. É um problema que também alimenta o conflito e o
terrorismo.
Não, não estou
desesperado. Tenho esperança, porque vejo a sociedade a mexer-se bastante e
vejo cada vez mais pressão a ser exercida sobre os governos
Vemos os
glaciares a derreter. Vemos o branqueamento dos corais. Vemos as cadeias
alimentares em risco. Julho foi o mês mais quente de sempre. Os últimos cinco
anos são os mais quentes desde que há registos. Vemos o aumento do nível médio
das águas do mar e a maior concentração de CO2 na atmosfera. É preciso recuar 3
a 5 milhões de anos para encontrar os mesmos níveis de CO2. Nessa altura, o
nível da água estava dez a 20 metros acima do que está hoje. Estamos a lidar
com uma ameaça muito dramática não só para o futuro, mas também para o presente
do planeta.
MH: Uma ideia que
tem entusiasmado a sociedade civil nos EUA e fora é o Green New Deal. Uma
política que pode criar milhões de empregos ao investir na mitigação das
alterações climáticas. Nos EUA, um dos candidatos democratas às presidenciais,
Bernie Sanders, defende aquilo que a ONU tem vindo a dizer: que o Green New
Deal tem de ser um esforço global e que os países ricos têm de ajudar os países
em desenvolvimento a abandonar os combustíveis fósseis. Bernie Sanders propõe
disponibilizar 200 mil milhões de dólares para ajudar países em
desenvolvimento. Conhece a proposta? É uma medida que receberia o apoio dos
países em desenvolvimento na ONU?
O Acordo de Paris
foi claro. Ficou definido o compromisso de mobilizar 100 mil milhões de dólares
todos os anos, entre dinheiros públicos e privados, para apoiar a mitigação e
adaptação às alterações climáticas nos países em desenvolvimento. Como é óbvio,
é essencial que todos os países, incluindo os EUA, desempenhem o seu papel,
porque sem esse apoio o impacto das alterações climáticas pode ser
absolutamente devastador. Por isso, sou a favor da clarificação dos
compromissos assumidos em Paris, de modo a garantir que aquilo que foi acordado
seja cumprido.
Muitas pessoas
pensam que aplicar taxas sobre o carbono significa mais custos para elas. Por
outro lado, os subsídios sobre os combustíveis fósseis normalmente são
apresentados como um benefício para a população. Sejamos claros: os subsídios
são pagos com dinheiro dos contribuintes. Eu não gosto de ver o meu dinheiro,
enquanto contribuinte, a ir para o degelo dos glaciares. Considero, então, que
é cada vez mais necessário explicar às pessoas que o maior custo é o custo de
não fazer nada. O maior custo é subsidiar combustíveis fósseis, construir
centrais eléctricas a carvão e não percebermos que estamos perante uma
emergência climática.
MH: Só para que
fique claro, conhecia a proposta de Bernie Sanders sobre o Green New Deal?
Claro. Qualquer
atitude vinda de um país como os EUA para aumentar o financiamento dos países
em desenvolvimento seria, como é óbvio, bem-vinda. Isso não significa que
queiramos interferir nas eleições americanas.
O que a ciência
nos diz neste momento é que estas metas ainda podem ser alcançadas. É preciso
mudar a forma como produzimos comida, impulsionamos as economias, organizamos
as cidades e geramos energia.
MH: Claro que
não.
Porque isso é
algo que a ONU não pode fazer.
Mark Phillips
(MP): Referiu um conjunto de consequências alarmantes que já estamos a sentir,
como os anos mais quentes desde que há registos, níveis recorde de degelo das
calotes polares ou tempestades extremas. Passaram três anos desde o Acordo de
Paris. Está desesperado agora? Convocou esta cimeira porque o Acordo de Paris
não está a produzir o resultado desejado?
Não, não estou
desesperado. Tenho esperança, porque vejo a sociedade a mexer-se bastante e
vejo cada vez mais pressão a ser exercida sobre os governos. Se vir a mais
recente sondagem nos EUA, verá que a grande maioria das cidades americanas
considera agora as alterações climáticas uma séria ameaça e que o governo tem
de agir. É por isso que estou esperançoso. Precisamos de continuar nesse
caminho. Precisamos de continuar a dizer a verdade às pessoas e confiar que o
sistema político, em especial os sistemas democráticos, acabe por decidir de
acordo com a vontade das populações.
MH: Quão mais
fácil seria o seu trabalho se a posição dos EUA fosse diferente da que é hoje?
Se todos
estivessem empenhados em reduzir 45% das emissões até 2030, eu estaria muito
melhor. É nossa função tentar convencer cada vez mais pessoas de que isto tem
de ser feito, porque a natureza está zangada. Não podemos brincar com a
natureza, porque ela devolve o golpe. É isso que estamos a ver e este é um
problema muito sério. As pessoas às vezes não falam de outras áreas também. Por
exemplo, a saúde pública. Vemos a poluição e as alterações climáticas a matarem
7 milhões de pessoas por ano no mundo inteiro. E vemos doenças tropicais a deslocarem-se
para Norte, tornando-se uma ameaça para países desenvolvidos.
MP: À medida que
o Norte aquece.
E por isso não é
só uma questão dos glaciares que derreteram ou dos corais que branquearam. Não.
São questões que estão relacionadas com as nossas vidas diárias. Tempestades,
secas (como no caso do meu país) e doenças que estavam completamente esquecidas
nos países desenvolvidos em risco de reaparecer. As pessoas têm de estar mais
conscientes disso. E isto será, acredito, um forte instrumento para levar os
governos a agir. É a vida das pessoas que está em perigo. A última onda de
calor na Europa matou várias pessoas, especialmente idosas.
MP: Ainda tem
esperança de convencer a administração Trump sobre os erros que comete em
relação às alterações climáticas e ao abandonar os acordos internacionais?
A esperança é
algo que nunca devemos perder. Seja como for, há trabalho a fazer com a
sociedade civil, a comunidade empresarial, os proprietários, os estados e as
cidades. E esse trabalho já está a mostrar resultados, que são muito
importantes.
MP: Quão
problemática é a posição de Washington? Tem ouvido outros países questionarem:
“Se eles não o farão, por que é que o faremos”?
Os países têm de
perceber que não podem esperar pelo vizinho. Têm de agir por sua conta, porque
o risco é um risco global. Ninguém conseguirá escapar. Por isso, o meu
sentimento é que independentemente do que um país decida, os outros países
estarão cada vez mais comprometidos com o Acordo de Paris.
MP: Apesar dos
acordos celebrados em Paris para diminuir a produção de gases com efeito de
estufa, não será possível limitar o aumento da temperatura aos desejados 1,5º
C. As emissões e as temperaturas continuam a aumentar. Todas as consequências,
como as tempestades, continuam a acontecer e são mais frequentes. O Acordo de
Paris falhou?
Não. Há agora
cada vez mais países a tomarem medidas que reverterão a tendência actual. Se
reparar na União Europeia, apenas três países se opuseram à estratégia para
conseguir a neutralidade carbónica em 2050. Acredito que até isso será
ultrapassado. Em países como a China e a Índia, a energia solar está a crescer,
o que é assinalável. Há países que até ao nível insular estão a tomar medidas
para reduzir as emissões, mesmo que o contributo dessas ilhas seja irrisório.
Consegue-se sentir um novo vento de esperança a soprar. Portanto, acho que
estamos a chegar ao topo das emissões e vamos começar a descer brevemente.
MP: Se é um vento
de esperança, é um vento quente que está a ficar ainda mais quente. Está na
altura de – não digo desistir – mas pelo menos encarar a realidade de que estas
metas não serão alcançadas?
O que a ciência
nos diz neste momento é que estas metas ainda podem ser alcançadas. É preciso
mudar a forma como produzimos comida, impulsionamos as economias, organizamos
as cidades e geramos energia. Este é o tipo de mudanças que são necessárias e
que cada vez mais pessoas, empresas, cidades e governos percebem que têm de
executar.
Esta entrevista
integra o projecto Covering Climate Now, uma colaboração global de mais de 250
organizações de media para fortalecer e dar profundidade à cobertura da crise
climática.
Sem comentários:
Enviar um comentário