terça-feira, 10 de setembro de 2019

Obras no Palácio da Ajuda vão custar o dobro e Descobrimentos ficam a zeros / Para que precisamos de um museu nacional para o tesouro real? / Acabar o Palácio da Ajuda e fazer dele uma caixa de jóias




Obras no Palácio da Ajuda vão custar o dobro e Descobrimentos ficam a zeros

Projectos relacionados com os Descobrimentos ficaram sem verbas da taxa turística de Lisboa, que vai dar um reforço orçamental de 10 milhões de euros às obras no Palácio da Ajuda.

João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 10 de Setembro de 2019, 7:31

Três anos depois da sua primeira apresentação pública, o projecto de obras no Palácio Nacional da Ajuda está agora orçamentado em 29,7 milhões de euros, quase o dobro do que se previu inicialmente (15 milhões).

O montante é revelado numa proposta que a câmara de Lisboa aprovou no fim de Julho e que esta terça-feira será debatida na assembleia municipal. Segundo o documento, as obras no palácio, que visam rematar a fachada ocidental e instalar ali o tesouro da casa real portuguesa, custarão 26,5 milhões de euros, a que se somam 3,2 milhões para arranjos na Calçada da Ajuda.

A principal fonte de financiamento destes trabalhos é o Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa, alimentado pela taxa turística sobre as dormidas na cidade. A proposta que a autarquia aprovou – e sobre a qual os deputados municipais se vão debruçar – diz respeito a reforços e reduções das verbas que saem deste fundo para vários projectos.

Para a obra da Ajuda estão destinados 18,2 milhões de euros da taxa turística, o que representa um reforço a rondar os 10 milhões face ao orçamento inicial. Este aumento justifica-se, em parte, com a inclusão da requalificação da Calçada da Ajuda (3,2 milhões) no projecto, que antes não a contemplava.

Por outro lado, lê-se na proposta, houve “um conjunto significativo de condicionantes” durante o processo. “Designadamente a revisão do preço base do concurso, uma vez que no primeiro concurso todos os concorrentes apresentaram propostas de valor superior ao preço base, a necessidade de dar cumprimento às recomendações do consultor para a segurança, o aumento exponencial dos valores inerentes aos materiais – como o preço do aço no mercado internacional, equipamentos e mão-de-obra, resultantes da actual conjuntura do mercado.”

Além deste reforço de verbas provenientes da taxa turística, também a Associação de Turismo de Lisboa (ATL) aumentou o seu investimento directo na obra, passando dos cinco para os 7,5 milhões. Apenas o montante que provém do Ministério da Cultura não se alterou: continuam a ser os quatro milhões de euros garantidos pelo seguro das jóias da coroa roubadas em Haia em Dezembro de 2002.

Esta não é a primeira vez que o valor da empreitada da Ajuda é revisto em alta. Em Março de 2018, durante uma visita à obra, o director-geral da ATL revelou que o custo tinha subido dos 15 para os 21 milhões de euros. Vítor Costa referiu então três motivos: as “recomendações de segurança da consultora internacional” contratada para acompanhar a idealização das caixas fortes onde ficarão as peças de ourivesaria da casa real portuguesa (uma colecção com mais de 7000 objectos); a “valorização do espaço público da Calçada da Ajuda” e a construção “de um restaurante de grande categoria” para tirar partido da vista para o Tejo.

Câmara ‘desiste’ dos Descobrimentos

As verbas da taxa turística destinam-se, segundo as novas regras aprovadas pela câmara municipal, ao “desenvolvimento do turismo na cidade de Lisboa, numa perspectiva de crescimento sustentável e a prazo”. Essas normas incluem agora uma alínea que prevê o apoio a projectos que contribuam para “reforçar as estruturas da cidade com maior impacto da actividade turística” (higiene urbana, por exemplo).

Entre reforços, reduções e novas iniciativas, o bolo de investimentos da taxa turística subiu dos 57,3 milhões de euros orçamentados em 2016 para os 71,9 milhões, dos quais 59,6 milhões serão executados até 2021.

Para lá do Palácio da Ajuda, também as obras na Estação Sul e Sueste conheceram um reforço de verbas, contando agora com 7,6 milhões da taxa turística e 1,3 milhões da ATL (num total de 8,9 milhões de euros). A isto somam-se quatro novas iniciativas, relacionadas com aquela estação e com a Doca da Marinha, que terão uma comparticipação de 12,4 milhões de euros.

Em sentido contrário, os projectos ligados aos Descobrimentos ficaram praticamente sem as verbas que lhes estavam destinadas. O chamado Pólo Descobrir, que tinha uma dotação inicial de 5,2 milhões, recebeu apenas 283 mil euros, já executados. Esta foi uma ideia apresentada por Fernando Medina em 2015 que consistia na instalação de um núcleo museológico em forma de nau na Ribeira das Naus para “contar bem” a história dos Descobrimentos.

A iniciativa viria mais tarde a ser chumbada pela Direcção-Geral do Património Cultural e, apesar de a autarquia ter garantido que estava “a trabalhar com os organismos do Ministério da Cultura com vista à definição de um programa que, cumprindo os diversos requisitos, [pudesse] disponibilizar à cidade um equipamento cultural da maior importância para a compreensão e difusão das Descobertas portuguesas”, nada mais se soube dela.

Também sem financiamento da taxa turística ficaram, segundo a proposta, “outros núcleos dedicados aos Descobrimentos”. Com uma dotação inicial de 173 mil euros, esta rubrica está agora a zeros.



Para que precisamos de um museu nacional para o tesouro real?

O protocolo diz “exposição permanente”, mas o que vai nascer na Ajuda, garante a ministra da Cultura, é um museu nacional. Dois historiadores de arte especialistas em ourivesaria questionam que relação terá o novo equipamento com a residência real, que é em si mesma um museu há já 50 anos.

Lucinda Canelas 26 de Abril de 2019, 7:30

Um museu, disso não há dúvidas. E um museu nacional. O tesouro real português vai ter um museu só para ele e não uma “exposição permanente”, como estava previsto no protocolo assinado em 2016 entre a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entidade que tutela o Palácio Nacional da Ajuda, onde será instalado, a Câmara Municipal de Lisboa, que nele vai investir verbas da taxa turística, e a Associação de Turismo de Lisboa (ATL), organização que custeará parte da obra e que ficará encarregue da sua gestão nos primeiros 20 anos (pelo menos).

O que levanta dúvidas, sobretudo depois da entrevista da ministra da Cultura ao PÚBLICO e das respostas que vieram do seu gabinete às perguntas que na sequência dela foram feitas, é o modelo de funcionamento deste novo equipamento que vai nascer na ala poente do palácio, hoje orçado em 21 milhões de euros.

Se, na entrevista, Graça Fonseca respondeu “sim” quando lhe perguntaram se o novo museu nacional teria “um director e uma equipa técnica próprios”, agora o seu gabinete vem dizer que, afinal, integrando uma unidade orgânica com o Palácio Nacional da Ajuda (PNA), de acordo com o previsto no novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos e palácios, o Museu Tesouro Real partilhará o director e os técnicos com a residência de D. Luís I e D. Maria Pia, que para ali foram viver depois de casados, em 1862. Será uma “equipa própria”, “só que parte dessa equipa é partilhada”, garantindo desde já o ministério que “será reforçada tendo em conta a criação do museu”.

Como o texto final deste novo regime jurídico, trabalhado e amplamente contestado no último ano, não se conhece ainda, é difícil saber se o decreto-lei que o estabelece deixa claro de que forma, no âmbito desta “unidade orgânica” e respeitando a Lei-Quadro dos Museus Portugueses (Lei n.º47/2004), se poderá proceder à criação de um novo museu se ele não dispõe de um director, de uma equipa e de uma colecção próprios.

Será que as peças que estarão em exposição no Museu Tesouro Real sairão do acervo a que pertencem, o do Palácio da Ajuda, para ser incorporadas no novo equipamento, depois de receberem novo número de inventário? Evocando a relação museu/palácio, a directora-geral do Património, Paula Silva, garantiu ao PÚBLICO que não há necessidade de reinventariar peças: “Sendo uma unidade orgânica, a colecção é a mesma, não havendo lugar a qualquer cedência [de obras do palácio ao novo equipamento].”

Ponto da situação: um museu nacional que forma uma unidade orgânica com um palácio nacional e que com ele partilha edifício, colecção, reservas e equipa técnica, incluindo o director. Se assim é, há que perguntar: por que razão insiste a tutela em criar um novo museu se em tudo o que diz respeito aos seus conteúdos, ao seu programa, parece tratá-lo como um pólo do Palácio Nacional da Ajuda?

“A colecção é extraordinária”, disse Graça Fonseca na mesma entrevista, “merece um museu próprio”. Não será também “extraordinário” o acervo da biblioteca, com livros e documentos únicos em Portugal, nalguns casos muito singulares mesmo no plano internacional, que continua a funcionar como um núcleo do palácio? Seguindo a mesma lógica, não deveria ser autonomizada, sobretudo quando há quem defenda que também ela tem potencial para ser musealizada sem que com isso se comprometa a sua função primordial?

Símbolos de poder
Reflexo do esplendor da corte e símbolos de soberania, poder e legado dinástico, as peças que compõem o tesouro real português são elementos fundamentais quando se trata de contar a história do país, diz José Alberto Ribeiro, há seis anos director do Palácio da Ajuda.

Dele fazem parte objectos de carácter civil em ouro e prata, jóias e insígnias cravejadas de pedras preciosas de grande qualidade e, nalguns casos, dimensão, pratas douradas que abrilhantavam as cerimónias da corte, a célebre baixela de François Thomas Germain, o francês que foi um dos mais notáveis ourives do século XVIII, e ainda artefactos religiosos.

Entre as peças mais excepcionais destas colecções variadas que hoje estão guardadas num cofre de Estado fora do palácio está uma caixa de rapé em ouro coberta de diamantes e esmeraldas que foi encomendada por D. José I a outro dos ourives de Luís XV, rei de França, o afamado Jean Ducrollay, nascido numa família já dedicada à arte de transformar o ouro e as pedras preciosas em verdadeiras obras de arte, hoje presentes no acervo de alguns dos museus mais importantes do mundo, como o Metropolitan de Nova Iorque.

A selecção das peças a expor no futuro museu que, segundo Graça Fonseca, será inaugurado ainda no próximo ano — data considerada demasiado optimista pelos técnicos ouvidos pelo PÚBLICO, atendendo ao facto de a construção estar já muito atrasada assim como os necessários trabalhos de limpeza e restauro das colecções — ficou a cargo da equipa do palácio, nomeadamente do seu director e das conservadoras Teresa Maranhas (ourivesaria/joalharia) e Manuela Santana (têxteis).

“É um conjunto de peças notável, pelo seu valor intrínseco e pelo seu valor histórico”, diz o director, destacando nele o núcleo da aclamação — conjunto composto pela coroa de D. João VI, ceptros e insígnias várias, como a da Ordem do Tosão de Ouro, mandada fazer pela rainha D. Maria I, uma “jóia absolutamente cenográfica”, repleta de diamantes, rubis e com uma enorme safira — e o das 23 salvas de prata dos séculos XVI (sobretudo) e XVII, que D. Luís I herdou do seu pai, D. Fernando II, “um coleccionador cultíssimo”.

José Alberto Ribeiro não se opõe a que se crie um novo museu para mostrar esta colecção que tem estado arredada dos olhares públicos — as últimas vezes que um núcleo significativo do tesouro real esteve exposto foi na Europália, em Bruxelas, em 1991, e na Ajuda no ano seguinte —, desde que isso não signifique que o acervo venha a sair da esfera do palácio da Ajuda ou que se secundarize a sua ligação à residência real, a única que foi transformada em museu (a partir de 1968) na cidade de Lisboa.

“A Ajuda é o grande palácio de representação. Desde cedo o andar nobre começou a ser usado para jantares e recepções oficiais. A sua monumentalidade é reconhecida durante a monarquia e já com a República”, garante o director deste monumento/museu que em 2018 recebeu 125 mil visitantes. “Para mim faria mais sentido que o tesouro fosse mais um dos núcleos do palácio, porque ele ajuda a ler a colecção, a contextualizá-la, mas se criar um museu e envolver o Turismo de Lisboa no processo é a maneira de mostrar estas peças extraordinárias, faça-se. O Estado central, sozinho, não teria como fazer. Aliás, há projectos para o remate da ala poente [onde ficará o novo museu, em fase de construção] desde a década de 1970 e nunca houve capacidade para os pôr de pé.”

“Faça-se”, salvaguarda, sem cedência de colecções e assegurando que todas as decisões importantes em relação aos conteúdos são tomadas, como até aqui, por quem melhor conhece o acervo — a equipa do palácio e os historiadores de arte que chamou a colaborar no guião do novo museu. “É certo que o financiamento vem sobretudo da ATL, mas a colecção é do palácio, o projecto museológico é nosso, o estudo das peças tem sido feito de forma continuada ao longo de anos pelos nossos técnicos. A ATL dá a banheira, nós damos o bebé e a água do banho.”

Dos 21 milhões de euros de custos previstos, o Ministério da Cultura assegura quatro milhões, garantidos pelo seguro das jóias da coroa roubadas em Haia em Dezembro de 2002; a ATL investe directamente cinco milhões, saindo os restantes 12 milhões do fundo de desenvolvimento a que a associação tem acesso e que é alimentado pela taxa turística de Lisboa.

José Alberto Ribeiro também não conhece os anexos ao protocolo de 2016 que cria a “exposição permanente” do tesouro real e, por isso, não esconde que gostaria de saber mais sobre o modelo de gestão do novo museu. “Neste momento não sabemos que tipo de dinâmica podemos vir a criar entre o museu e o palácio.” Não foi informado sequer de que o director do palácio seria também o director do museu: “Fiquei surpreendido quando li a entrevista e a senhora ministra disse que o museu ia ter uma equipa e um director próprios. Se agora já se diz que são os técnicos do palácio que continuam a acompanhar o acervo, fico descansado.”

Receitas partilhadas
Nuno Vassallo e Silva e Hugo Xavier, dois historiadores de arte especializados em ourivesaria, também gostariam que estivesse clarificado o modelo de gestão do novo museu, a sua ligação ao palácio e o papel que nele terá o Turismo de Lisboa.

A ministra da Cultura disse já por várias vezes que não haverá qualquer “privatização” da colecção e, na entrevista, reiterou: “Não há uma concessão [do tesouro real] à ATL, há uma coisa que talvez seja difícil as pessoas perceberem, que é uma parceria pública-pública.”

A ATL é uma pessoa colectiva de utilidade pública que tem centenas de associados privados, cujos interesses também representa. Não faz sentido, por isso, questionar esta parceria? O PÚBLICO tentou agora que Graça Fonseca voltasse a este tema, sem sucesso.

De acordo com o protocolo, as receitas do novo museu serão partilhadas entre o Turismo de Lisboa e a Direcção-Geral do Património Cultural (50% para cada). O “resultado líquido” será apurado depois de deduzido ao total das receitas geradas pelo novo museu o total dos custos com a sua gestão, conservação e manutenção, “bem como depreciações e juros relativos aos investimentos realizados na [sua] criação (instalação), na parte que não tenha sido directamente financiada pela DGPC/Ministério da Cultura e pelo Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa”.

Pedras do império
Para Vassallo e Silva, historiador de arte especializado em ourivesaria que ocupou o cargo de director-geral do Património entre Fevereiro de 2014 e Dezembro de 2015, no Governo do social-democrata Pedro Passos Coelho, o tesouro real português está entre os mais coerentes que ainda subsistem nas colecções europeias. “É um conjunto extraordinariamente rico e merece todos os adjectivos relacionados com esplendor que queiramos associar-lhe. Começa a ser reunido no final do século XVIII com D. Maria I, que é uma das rainhas mais ricas, se não mesmo a mais rica, da Europa do seu tempo, e depois continua século XIX fora.”

Nele se incluem as jóias e pratas da coroa, assim como as insígnias e outras peças de aparato, e ainda as colecções particulares de D. Fernando II e do seu filho D. Luís I. Dele não fazem parte, na opinião de Vassallo e Silva, as jóias de uso quotidiano da rainha Maria Pia, a princesa piemontesa que casou com D. Luís, nem as suas peças Fabergé ou as que o ourives italiano Fortunato Pio Castellani fez à imagem das encontradas em escavações arqueológicas e que lhe foram oferecidas pela cidade de Roma quando trocou Itália por Portugal.

“Estas colecções quotidianas não deviam fazer parte do museu. O tesouro já tem muitas peças maiores da ourivesaria do séc. XVI [a colecção de salvas historiadas de D. Fernando II] e da joalharia europeia dos séculos XVIII e XIX”, diz este historiador de arte que preside ao Grupo dos Amigos do PNA. “São jóias assombrosas, de grande espectáculo, que têm uma característica que as torna singulares quando comparadas com as de outras colecções europeias — as gemas são do território do império português. Portugal era senhor dos diamantes e, por isso, estas peças documentam também o poder colonial.”

Palácios com colecções reais, embora seja difícil estabelecer comparações directas entre elas, há em Copenhaga (Rosenborg Castle) e Estocolmo (Palácio Real): “Ambos os tesouros são visitáveis com bilhetes próprios, aliás como os de Munique [Residenz] e Viena [Palácio Hofburg]. Bilhete próprio pode ser meio caminho para gestão própria, embora tal não suceda nestes casos que mencionei.”

Vassallo e Silva vê com bons olhos que este Governo tenha dado continuidade a um projecto que já passou por vários executivos — “desde que Gabriela Canavilhas era ministra da Cultura que o arquitecto João Carlos Santos [subdirector-geral do Património e autor do projecto do novo museu] faz projectos para o remate do palácio” —, mas tem dúvidas de que seja preciso criar mais um museu nacional. “Quando há tantas dificuldades financeiras e humanas nos que já existem, parece-me uma má ideia. Depois, há que saber como se fará a gestão. A partilha de receitas com a ATL não se coaduna com o modelo dos outros museus nacionais. Vai ser sempre um corpo estranho entre os museus públicos. Tecnicamente, tudo é possível, mas é preciso saber se aceitamos tudo.”

O Turismo de Lisboa é importante como “viabilizador do projecto”, reconhece o historiador de arte, mas dizer que o Palácio da Ajuda fica com a “gestão científica é por de mais vago”, acrescenta, já depois de lido o protocolo. É claro que “é legítimo que o Governo queira um museu autónomo para o tesouro real”, mas é preciso que clarifique muito bem o papel de cada um: “O que me causa mais dúvidas é a articulação do palácio com o museu. A dinâmica que se quer impor não é clara. Até pode ser uma óptima solução, mas para já é preciso ouvir com cautela.”

Hugo Xavier, historiador de arte e funcionário da Parques de Sintra, a empresa que gere a paisagem da vila classificada como património mundial, não hesita em dizer que “criar um museu nacional num palácio nacional que já é em si mesmo um museu é simplesmente redundante”.

Este conservador que tem estudado as colecções de D. Fernando II, o príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha que casou com D. Maria II, e que conhece muito bem as salvas manuelinas que eram usadas nos baptizados da corte e nas cerimónias do lava-pés, na Páscoa, “um conjunto único no mundo”, argumenta que o PNA tem “vocação de museu” há já 150 anos: “A Ajuda não é apenas o único palácio real de Lisboa que é um museu. A Ajuda já tinha um núcleo museológico na década de 1860, criado precisamente por D. Luís I, que era também o dono da casa.”

Com D. Fernando II e D. Maria II, lembra este historiador de arte, as colecções de joalharia e ourivesaria da coroa estavam no Palácio das Necessidades, tendo sido D. Luís e Maria Pia a transferi-las para a Ajuda. Embora tenha “peças extraordinárias em qualquer parte do mundo” na joalharia, é na ourivesaria, com as suas salvas, gomis e a baixela Germain, que o tesouro é “absolutamente expressivo”. Poder vê-lo finalmente exposto será “um privilégio”.

“Se vão chamar à exposição ‘museu’, não passará de uma denominação. Acredito que as pessoas verão aquele espaço sempre como um pólo do palácio, como mais um conjunto de salas. E é assim que está certo”, defende Hugo Xavier, que foi um dos consultores externos que o director da Ajuda e a sua equipa escolheram para colaborar no programa do novo museu. “Quando eu estava na DGPC e tínhamos o projecto em mãos sempre pensámos nele como um pólo do palácio. E não tínhamos previsto a parceria com a ATL, que pode ser uma boa ideia, mas que limitará o acesso dos outros monumentos e museus públicos a esta fonte de receita que será bastante considerável”, acrescenta Vassallo e Silva.

José Alberto Ribeiro lembra que, durante anos e anos, o projecto de remate da ala poente do palácio e a abertura de uma exposição com o tesouro real sempre foi visto como a galinha dos ovos de ouro da DGPC. “Agora vamos ter de partilhá-la, o que não é necessariamente mau, já que significa que ela existe.” O director do palácio espera agora que, neste processo de criação de um novo museu nacional, a Cultura não esqueça que a casa de D. Luís I e de Maria Pia também precisa de obras de beneficiação para que possa receber melhor os turistas que hão-de visitá-la, espera, cada vez em maior número.


Acabar o Palácio da Ajuda e fazer dele uma caixa de jóias

Passados mais de 200 anos, será que é desta que o Palácio da Ajuda vai ser concluído? O Governo e a autarquia garantem que sim. Até ao fim de 2018. A obra deverá custar 15 milhões de euros e prevê duas caixas-fortes para expor a colecção de ourivesaria da casa real portuguesa.

Lucinda Canelas 19 de Setembro de 2016, 20:48

O momento é histórico e o palácio real, com a sua colecção de jóias da coroa, verdadeiro livro da História de Portugal, merece o aparato de uma assinatura de protocolo a que assistiram largas dezenas de pessoas, entre elas antigos e actuais responsáveis pela pasta da Cultura, o presidente da câmara de Lisboa, representantes das organizações do turismo ligadas à cidade e muitos funcionários do património e dos museus. Nem o primeiro-ministro faltou ao encontro em que se apresentou publicamente o projecto de conclusão do Palácio Nacional da Ajuda, que vai acrescentar toda uma nova ala ao actual edifício e criar espaços expositivos onde serão mostradas cerca de duas mil peças da colecção de ourivesaria da casa real portuguesa, dando o devido destaque às jóias da coroa.

É que, lembraram António Costa e o presidente da autarquia, Fernando Medina, não é todos os dias que se tem oportunidade de concluir uma obra que está adiada há mais de 200 anos e cujo projecto, divulgado esta segunda-feira ao início da tarde, tem o mérito de “fazer algo exemplar”, nas palavras do chefe de Governo – garantir um “trabalho de parceria” entre a Administração Central, o Turismo e o município.

A obra e a exposição a ela associada vão contribuir para que Lisboa tenha uma oferta turística de qualidade, que depende em boa medida, frisou o primeiro-ministro no breve discurso com que fechou esta sessão pública, de uma “capacidade de renovação” para continuar a fortalecer-se. O sector do turismo, que segundo António Costa vale hoje 15% das exportações nacionais, registou este ano um crescimento de 16%. “Na Ajuda teremos um novo pólo de atractividade”, disse Costa, um novo pólo que só é possível graças ao “mecanismo da taxa turística que permite devolver ao sector cultural verbas que serão investidas na valorização do património”.

O remate do palácio da Ajuda, que nos últimos dois séculos já conheceu tantos projectos que ninguém parece saber quantos foram ao certo, está agora orçado em 15 milhões de euros. Os custos do projecto entregue ao arquitecto e subdirector-geral do Património João Carlos Santos prevê a conclusão da fachada poente do edifício (a que dá para a Calçada da Ajuda, que continuará a ter carros e eléctricos), a construção de duas caixas-fortes onde será instalada a colecção de jóias, dividida em dois núcleos distintos, e a beneficiação na Calçada entre a Alameda dos Pinheiros e a Rua das Açucenas.

Do montante global da obra, que deverá estar adjudicada em Julho de 2017 e concluída em Dezembro de 2018, quatro milhões são assegurados pelo Ministério da Cultura, através da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), e os restantes pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pela Associação de Turismo de Lisboa (ATL), a entidade que gere a taxa turística da autarquia, que assegura seis dos 11 milhões de euros remanescentes (dos outros cinco milhões, dois saem de capitais próprios e três de um empréstimo bancário).

A taxa turística de Lisboa, fez questão de sublinhar Medina, fará no palácio a sua primeira aplicação de verbas. O socialista que substituiu Costa na chefia da câmara e que se prepara para concorrer pela primeira vez à presidência da autarquia no Outono de 2017 aproveitou a ocasião para interpelar todos os que, há pouco mais de um ano, a contestaram: “A verdade é que taxas e taxinhas vieram, e foram elas que [agora] garantiram a obrazinha.”

Referindo-se ao palácio da Ajuda como um “dos mais importantes e emblemáticos equipamentos culturais do país”, Medina frisou ainda que “a valorização do património cultural é um eixo decisivo no desenvolvimento de Lisboa” e que a proposta hoje apresentada vem pôr fim a uma longa linhagem de projectos que ficaram na gaveta, sobretudo por falta de vontade política.

História trágica
Dessa longa linhagem, que inclui remates com o traço de arquitectos como Raul Lino e Gonçalo Byrne, fazem parte quatro propostas de João Carlos Santos, o arquitecto que agora assina esta quinta versão que, espera, venha a ser a definitiva. Desde 2006 que trabalha na conclusão do palácio, embora só dois dos cinco projectos que para ela fez tenham sido orientados pelo actual programa, intimamente ligado à exposição das jóias da coroa e dos tesouros de ourivesaria da casa real, os dois futuros módulos do museu que nascerá na ala da fachada poente, cada um instalado na sua caixa-forte (por razões de segurança, a exposição das jóias e as dependências reais hoje visitáveis não vão estar ligadas no interior do edifício, embora esteja previsto um bilhete que dê acesso a ambas).

João Carlos Santos começou por um estudo completo da história deste palácio, fazendo pesquisa na Torre do Tombo, nos documentos afectos à extinta Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e noutros arquivos, já que a documentação referente a este imóvel classificado como monumento nacional está dispersa, explicou ao PÚBLICO. “Hoje sinto que há entre mim e este palácio uma relação de grande afectividade, de confiança”, diz o arquitecto responsável pela valorização do Mosteiro de Tibães e da Igreja dos Clérigos, no Porto. “Conheço bem a sua história trágica, que me entusiasmou, e imagino com facilidade D. Luís e D. Maria Pia a criarem os filhos nesta casa, com bailes e banquetes para muitos convidados.”

Construído nos séculos XVIII e XIX, o paço da Ajuda começou por ser em madeira para melhor resistir aos sismos. Esta “real barraca”, assim lhe chamavam, para onde a corte se mudou quando o terramoto de 1755 destruiu o paço da Ribeira acabou por desaparecer num incêndio em 1794, dando depois lugar ao edifício de alvenaria que conheceu vários estilos e arquitectos até chegar ao que hoje temos – um palácio que representa apenas um terço do que estava previsto originalmente (devia incluir uma sé patriarcal e a Academia de Ciências, multiplicando-se por vários pátios) e que é um museu desde 1968, mostrando como vivia uma família real de oitocentos e servindo ao mesmo tempo de palco a jantares e outras cerimónias de Estado.

“A Ajuda andou de tragédia em tragédia – nasceu com o terramoto, foi destruída num incêndio e ficou incompleta por causa das invasões napoleónicas. Pelo meio viveram aqui pessoas, famílias, aqui casaram reis e nasceram príncipes. Poder contribuir para que seja terminada depois de tudo isto é um privilégio”, continua o arquitecto, que tem na ala sul do palácio, onde “se ganha o Tejo numa vista espantosa”, a sua área preferida em todo o monumento.

O projecto
O seu projecto prevê a conclusão da fachada poente com uma nova ala que respeita os limites da massa edificada do actual palácio, na qual se destacam dois corpos laterais mais elevados, com perfil e altura idênticos aos dos torreões Norte e Sul do alçado Este, “funcionando como espelhos”. “A ideia é garantir a unidade de leitura do edifício, garantir o equilíbrio”, diz, explicando que a utilização de “uma estrutura de lâminas de sombreamento vai permitir mostrar que não há qualquer intenção de copiar nada do actual edifício neoclássico”. “Sem mimetismos”, frisa, como mandam as cartas internacionais de restauro e valorização do património. “Quem chegar aqui pela primeira vez não terá dificuldade nenhuma em distinguir o que é contemporâneo do que é dos séculos XVIII e XIX.”

Lá dentro brilharão as jóias que pertenceram à família real portuguesa, peças de aparato e de uso quotidiano. No Piso 3 estarão as directamente ligadas à coroa, na sua esmagadora maioria do século XVIII e reflexo do fácil acesso que Portugal tinha ao ouro e às pedras preciosas do Brasil, assim como aos mais talentosos artífices nacionais e estrangeiros. Nele se poderão ver a coroa usada por D. João VI, espadas, mantos reais e outros trajes de gala, assim como as insígnias honoríficas usadas pelos monarcas. No Piso 4 estará o tesouro de ourivesaria, em que merecem destaque as chamadas pratas da coroa – “o maior conjunto do mundo de prata civil do século XVI”, segundo o director do palácio, José Alberto Ribeiro – e a Baixela Germain, encomendada pelo rei D. José I ao ourives do rei de França.

Ao todos são cerca de 2000 peças distribuídas pelos dois núcleos, menos de um terço do acervo total da Ajuda, que ultrapassa as 6300, precisa o director. Se pedimos a José Alberto Ribeiro que destaque algumas, a resposta é imediata – além da coroa e das pratas, o director chama a atenção para a laça de esmeraldas colombianas que pertenceu a D. Maria Francisca Benedita, para a tiara de estrelas que pertenceu a Maria Pia e depois à sua nora, D. Amélia, rainha que este historiador de arte conhece bem (é autor de uma biografia sobre a mulher do rei D. Carlos), e para a caixa de tabaco que D. José I encomendou ao ourives de Luís XV, Pierre-André Jacqmin. “Diz-se que a amante do rei de Franca, a célebre Pompadour, quis vê-la e que ficou maravilhada. Não queria sequer que viesse para Portugal”, diz o director. “São peças que contam a história de Portugal em períodos conturbados e não só”, diz ao PÚBLICO. “São ainda símbolos nacionais, de soberania, que mostram a corte de aparato, mas também a corte na intimidade.”

Nestes dois pisos, cujo guião está a ser trabalhado pela equipa do palácio e ainda sem projecto expositivo atribuído, não haverá espaço para qualquer réplica das seis peças das colecções reais que foram roubadas do Museu Municipal de Haia, em Dezembro de 2002. Nem sequer a do castão de bengala do rei D. José I em ouro e com 387 brilhantes, talvez a mais espectacular deste pequeno conjunto. “O objectivo é mostrar o que temos hoje, não o que perdemos”, diz o director. “E isto com a magia de ver todos estes tesouros numa caixa-forte.”

Os quatro milhões que a DGPC vai agora investir no projecto de conclusão do palácio e na exposição das jóias vêm precisamente dos seis milhões de euros que o Ministério da Cultura recebeu do seguro das jóias roubadas, depois de as autoridades holandesas darem por concluída a investigação em Dezembro de 2004 sem que nenhuma delas fosse recuperada (desse seis milhões, 1,8 tinham já sido gastos na compra de uma pintura de Giovanni Tiepolo para o Museu Nacional de Arte Antiga).

O preço do bilhete para a exposição das jóias reais ainda não foi definido, mas as contas dos estudos de viabilidade usaram como valor de referência 10 euros por adulto, esclarece o gabinete do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, precisando ainda, em resposta ao PÚBLICO, que a lei orgânica da DGPC permite que uma obra desta natureza e deste valor não seja sujeita a um concurso internacional de arquitectura caso o autor do projecto não seja exterior a este organismo que tutela o património.

Foi precisamente Castro Mendes que, na sua breve intervenção na cerimónia que antecedeu a assinatura do protocolo a 20 anos entre a DGPC, a ATL e a CML, citou um poema de Gonçalo M. Tavares para lembrar que também ali, na Ajuda, “o futuro sai da fenda e da ferida”: “O remate do Palácio Nacional da Ajuda é também o remate do eixo Belém-Ajuda que o Governo quer gerir em conjunto com a autarquia.”

Se a exposição na ala poente vier a ter 200 mil visitantes/ano – “estimativa conservadora”, diz o ministro da Cultura –, o plano de negócio prevê que o retorno do investimento comece 12 anos após a sua abertura. A partir daí a tutela conta com as receitas de bilheteira e do aluguer de espaços (terá uma cafeteria com ampla vista sobre o Tejo e uma sala polivalente com capacidade para 120 pessoas) para garantir a saúde financeira desta grande caixa de jóias. “Agora é mãos à obra”, disse o primeiro-ministro no fim da sessão. “Reunidas as condições financeiras, só falta executar o projecto e começar a vender bilhetes.”

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