Obras no Palácio
da Ajuda vão custar o dobro e Descobrimentos ficam a zeros
Projectos
relacionados com os Descobrimentos ficaram sem verbas da taxa turística de
Lisboa, que vai dar um reforço orçamental de 10 milhões de euros às obras no
Palácio da Ajuda.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha
10 de Setembro de 2019, 7:31
Três anos depois
da sua primeira apresentação pública, o projecto de obras no Palácio Nacional
da Ajuda está agora orçamentado em 29,7 milhões de euros, quase o dobro do que
se previu inicialmente (15 milhões).
O montante é
revelado numa proposta que a câmara de Lisboa aprovou no fim de Julho e que
esta terça-feira será debatida na assembleia municipal. Segundo o documento, as
obras no palácio, que visam rematar a fachada ocidental e instalar ali o
tesouro da casa real portuguesa, custarão 26,5 milhões de euros, a que se somam
3,2 milhões para arranjos na Calçada da Ajuda.
A principal fonte
de financiamento destes trabalhos é o Fundo de Desenvolvimento Turístico de
Lisboa, alimentado pela taxa turística sobre as dormidas na cidade. A proposta
que a autarquia aprovou – e sobre a qual os deputados municipais se vão debruçar
– diz respeito a reforços e reduções das verbas que saem deste fundo para
vários projectos.
Para a obra da
Ajuda estão destinados 18,2 milhões de euros da taxa turística, o que
representa um reforço a rondar os 10 milhões face ao orçamento inicial. Este
aumento justifica-se, em parte, com a inclusão da requalificação da Calçada da
Ajuda (3,2 milhões) no projecto, que antes não a contemplava.
Por outro lado,
lê-se na proposta, houve “um conjunto significativo de condicionantes” durante
o processo. “Designadamente a revisão do preço base do concurso, uma vez que no
primeiro concurso todos os concorrentes apresentaram propostas de valor
superior ao preço base, a necessidade de dar cumprimento às recomendações do
consultor para a segurança, o aumento exponencial dos valores inerentes aos
materiais – como o preço do aço no mercado internacional, equipamentos e
mão-de-obra, resultantes da actual conjuntura do mercado.”
Além deste
reforço de verbas provenientes da taxa turística, também a Associação de Turismo
de Lisboa (ATL) aumentou o seu investimento directo na obra, passando dos cinco
para os 7,5 milhões. Apenas o montante que provém do Ministério da Cultura não
se alterou: continuam a ser os quatro milhões de euros garantidos pelo seguro
das jóias da coroa roubadas em Haia em Dezembro de 2002.
Esta não é a
primeira vez que o valor da empreitada da Ajuda é revisto em alta. Em Março de
2018, durante uma visita à obra, o director-geral da ATL revelou que o custo
tinha subido dos 15 para os 21 milhões de euros. Vítor Costa referiu então três
motivos: as “recomendações de segurança da consultora internacional” contratada
para acompanhar a idealização das caixas fortes onde ficarão as peças de
ourivesaria da casa real portuguesa (uma colecção com mais de 7000 objectos); a
“valorização do espaço público da Calçada da Ajuda” e a construção “de um
restaurante de grande categoria” para tirar partido da vista para o Tejo.
Câmara ‘desiste’
dos Descobrimentos
As verbas da taxa
turística destinam-se, segundo as novas regras aprovadas pela câmara municipal,
ao “desenvolvimento do turismo na cidade de Lisboa, numa perspectiva de
crescimento sustentável e a prazo”. Essas normas incluem agora uma alínea que
prevê o apoio a projectos que contribuam para “reforçar as estruturas da cidade
com maior impacto da actividade turística” (higiene urbana, por exemplo).
Entre reforços,
reduções e novas iniciativas, o bolo de investimentos da taxa turística subiu
dos 57,3 milhões de euros orçamentados em 2016 para os 71,9 milhões, dos quais
59,6 milhões serão executados até 2021.
Para lá do
Palácio da Ajuda, também as obras na Estação Sul e Sueste conheceram um reforço
de verbas, contando agora com 7,6 milhões da taxa turística e 1,3 milhões da
ATL (num total de 8,9 milhões de euros). A isto somam-se quatro novas
iniciativas, relacionadas com aquela estação e com a Doca da Marinha, que terão
uma comparticipação de 12,4 milhões de euros.
Em sentido
contrário, os projectos ligados aos Descobrimentos ficaram praticamente sem as
verbas que lhes estavam destinadas. O chamado Pólo Descobrir, que tinha uma
dotação inicial de 5,2 milhões, recebeu apenas 283 mil euros, já executados.
Esta foi uma ideia apresentada por Fernando Medina em 2015 que consistia na
instalação de um núcleo museológico em forma de nau na Ribeira das Naus para
“contar bem” a história dos Descobrimentos.
A iniciativa
viria mais tarde a ser chumbada pela Direcção-Geral do Património Cultural e,
apesar de a autarquia ter garantido que estava “a trabalhar com os organismos
do Ministério da Cultura com vista à definição de um programa que, cumprindo os
diversos requisitos, [pudesse] disponibilizar à cidade um equipamento cultural
da maior importância para a compreensão e difusão das Descobertas portuguesas”,
nada mais se soube dela.
Também sem
financiamento da taxa turística ficaram, segundo a proposta, “outros núcleos dedicados
aos Descobrimentos”. Com uma dotação inicial de 173 mil euros, esta rubrica
está agora a zeros.
Para que
precisamos de um museu nacional para o tesouro real?
O protocolo diz
“exposição permanente”, mas o que vai nascer na Ajuda, garante a ministra da
Cultura, é um museu nacional. Dois historiadores de arte especialistas em ourivesaria
questionam que relação terá o novo equipamento com a residência real, que é em
si mesma um museu há já 50 anos.
Lucinda Canelas
26 de Abril de 2019, 7:30
Um museu, disso
não há dúvidas. E um museu nacional. O tesouro real português vai ter um museu
só para ele e não uma “exposição permanente”, como estava previsto no protocolo
assinado em 2016 entre a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entidade
que tutela o Palácio Nacional da Ajuda, onde será instalado, a Câmara Municipal
de Lisboa, que nele vai investir verbas da taxa turística, e a Associação de
Turismo de Lisboa (ATL), organização que custeará parte da obra e que ficará
encarregue da sua gestão nos primeiros 20 anos (pelo menos).
O que levanta
dúvidas, sobretudo depois da entrevista da ministra da Cultura ao PÚBLICO e das
respostas que vieram do seu gabinete às perguntas que na sequência dela foram
feitas, é o modelo de funcionamento deste novo equipamento que vai nascer na
ala poente do palácio, hoje orçado em 21 milhões de euros.
Se, na
entrevista, Graça Fonseca respondeu “sim” quando lhe perguntaram se o novo
museu nacional teria “um director e uma equipa técnica próprios”, agora o seu
gabinete vem dizer que, afinal, integrando uma unidade orgânica com o Palácio
Nacional da Ajuda (PNA), de acordo com o previsto no novo regime jurídico de
autonomia de gestão dos museus, monumentos e palácios, o Museu Tesouro Real
partilhará o director e os técnicos com a residência de D. Luís I e D. Maria
Pia, que para ali foram viver depois de casados, em 1862. Será uma “equipa
própria”, “só que parte dessa equipa é partilhada”, garantindo desde já o
ministério que “será reforçada tendo em conta a criação do museu”.
Como o texto
final deste novo regime jurídico, trabalhado e amplamente contestado no último
ano, não se conhece ainda, é difícil saber se o decreto-lei que o estabelece
deixa claro de que forma, no âmbito desta “unidade orgânica” e respeitando a Lei-Quadro
dos Museus Portugueses (Lei n.º47/2004), se poderá proceder à criação de um
novo museu se ele não dispõe de um director, de uma equipa e de uma colecção
próprios.
Será que as peças
que estarão em exposição no Museu Tesouro Real sairão do acervo a que
pertencem, o do Palácio da Ajuda, para ser incorporadas no novo equipamento,
depois de receberem novo número de inventário? Evocando a relação
museu/palácio, a directora-geral do Património, Paula Silva, garantiu ao
PÚBLICO que não há necessidade de reinventariar peças: “Sendo uma unidade
orgânica, a colecção é a mesma, não havendo lugar a qualquer cedência [de obras
do palácio ao novo equipamento].”
Ponto da
situação: um museu nacional que forma uma unidade orgânica com um palácio
nacional e que com ele partilha edifício, colecção, reservas e equipa técnica,
incluindo o director. Se assim é, há que perguntar: por que razão insiste a
tutela em criar um novo museu se em tudo o que diz respeito aos seus conteúdos,
ao seu programa, parece tratá-lo como um pólo do Palácio Nacional da Ajuda?
“A colecção é
extraordinária”, disse Graça Fonseca na mesma entrevista, “merece um museu
próprio”. Não será também “extraordinário” o acervo da biblioteca, com livros e
documentos únicos em Portugal, nalguns casos muito singulares mesmo no plano
internacional, que continua a funcionar como um núcleo do palácio? Seguindo a
mesma lógica, não deveria ser autonomizada, sobretudo quando há quem defenda
que também ela tem potencial para ser musealizada sem que com isso se comprometa
a sua função primordial?
Símbolos de poder
Reflexo do
esplendor da corte e símbolos de soberania, poder e legado dinástico, as peças
que compõem o tesouro real português são elementos fundamentais quando se trata
de contar a história do país, diz José Alberto Ribeiro, há seis anos director
do Palácio da Ajuda.
Dele fazem parte
objectos de carácter civil em ouro e prata, jóias e insígnias cravejadas de
pedras preciosas de grande qualidade e, nalguns casos, dimensão, pratas
douradas que abrilhantavam as cerimónias da corte, a célebre baixela de François
Thomas Germain, o francês que foi um dos mais notáveis ourives do século XVIII,
e ainda artefactos religiosos.
Entre as peças
mais excepcionais destas colecções variadas que hoje estão guardadas num cofre
de Estado fora do palácio está uma caixa de rapé em ouro coberta de diamantes e
esmeraldas que foi encomendada por D. José I a outro dos ourives de Luís XV,
rei de França, o afamado Jean Ducrollay, nascido numa família já dedicada à
arte de transformar o ouro e as pedras preciosas em verdadeiras obras de arte,
hoje presentes no acervo de alguns dos museus mais importantes do mundo, como o
Metropolitan de Nova Iorque.
A selecção das
peças a expor no futuro museu que, segundo Graça Fonseca, será inaugurado ainda
no próximo ano — data considerada demasiado optimista pelos técnicos ouvidos
pelo PÚBLICO, atendendo ao facto de a construção estar já muito atrasada assim
como os necessários trabalhos de limpeza e restauro das colecções — ficou a
cargo da equipa do palácio, nomeadamente do seu director e das conservadoras
Teresa Maranhas (ourivesaria/joalharia) e Manuela Santana (têxteis).
“É um conjunto de
peças notável, pelo seu valor intrínseco e pelo seu valor histórico”, diz o
director, destacando nele o núcleo da aclamação — conjunto composto pela coroa
de D. João VI, ceptros e insígnias várias, como a da Ordem do Tosão de Ouro,
mandada fazer pela rainha D. Maria I, uma “jóia absolutamente cenográfica”,
repleta de diamantes, rubis e com uma enorme safira — e o das 23 salvas de
prata dos séculos XVI (sobretudo) e XVII, que D. Luís I herdou do seu pai, D.
Fernando II, “um coleccionador cultíssimo”.
José Alberto
Ribeiro não se opõe a que se crie um novo museu para mostrar esta colecção que
tem estado arredada dos olhares públicos — as últimas vezes que um núcleo significativo
do tesouro real esteve exposto foi na Europália, em Bruxelas, em 1991, e na
Ajuda no ano seguinte —, desde que isso não signifique que o acervo venha a
sair da esfera do palácio da Ajuda ou que se secundarize a sua ligação à
residência real, a única que foi transformada em museu (a partir de 1968) na
cidade de Lisboa.
“A Ajuda é o
grande palácio de representação. Desde cedo o andar nobre começou a ser usado
para jantares e recepções oficiais. A sua monumentalidade é reconhecida durante
a monarquia e já com a República”, garante o director deste monumento/museu que
em 2018 recebeu 125 mil visitantes. “Para mim faria mais sentido que o tesouro
fosse mais um dos núcleos do palácio, porque ele ajuda a ler a colecção, a
contextualizá-la, mas se criar um museu e envolver o Turismo de Lisboa no
processo é a maneira de mostrar estas peças extraordinárias, faça-se. O Estado
central, sozinho, não teria como fazer. Aliás, há projectos para o remate da
ala poente [onde ficará o novo museu, em fase de construção] desde a década de
1970 e nunca houve capacidade para os pôr de pé.”
“Faça-se”,
salvaguarda, sem cedência de colecções e assegurando que todas as decisões
importantes em relação aos conteúdos são tomadas, como até aqui, por quem
melhor conhece o acervo — a equipa do palácio e os historiadores de arte que
chamou a colaborar no guião do novo museu. “É certo que o financiamento vem
sobretudo da ATL, mas a colecção é do palácio, o projecto museológico é nosso,
o estudo das peças tem sido feito de forma continuada ao longo de anos pelos
nossos técnicos. A ATL dá a banheira, nós damos o bebé e a água do banho.”
Dos 21 milhões de
euros de custos previstos, o Ministério da Cultura assegura quatro milhões,
garantidos pelo seguro das jóias da coroa roubadas em Haia em Dezembro de 2002;
a ATL investe directamente cinco milhões, saindo os restantes 12 milhões do
fundo de desenvolvimento a que a associação tem acesso e que é alimentado pela
taxa turística de Lisboa.
José Alberto
Ribeiro também não conhece os anexos ao protocolo de 2016 que cria a “exposição
permanente” do tesouro real e, por isso, não esconde que gostaria de saber mais
sobre o modelo de gestão do novo museu. “Neste momento não sabemos que tipo de
dinâmica podemos vir a criar entre o museu e o palácio.” Não foi informado
sequer de que o director do palácio seria também o director do museu: “Fiquei
surpreendido quando li a entrevista e a senhora ministra disse que o museu ia
ter uma equipa e um director próprios. Se agora já se diz que são os técnicos
do palácio que continuam a acompanhar o acervo, fico descansado.”
Receitas
partilhadas
Nuno Vassallo e
Silva e Hugo Xavier, dois historiadores de arte especializados em ourivesaria,
também gostariam que estivesse clarificado o modelo de gestão do novo museu, a
sua ligação ao palácio e o papel que nele terá o Turismo de Lisboa.
A ministra da
Cultura disse já por várias vezes que não haverá qualquer “privatização” da
colecção e, na entrevista, reiterou: “Não há uma concessão [do tesouro real] à
ATL, há uma coisa que talvez seja difícil as pessoas perceberem, que é uma
parceria pública-pública.”
A ATL é uma
pessoa colectiva de utilidade pública que tem centenas de associados privados,
cujos interesses também representa. Não faz sentido, por isso, questionar esta
parceria? O PÚBLICO tentou agora que Graça Fonseca voltasse a este tema, sem
sucesso.
De acordo com o
protocolo, as receitas do novo museu serão partilhadas entre o Turismo de
Lisboa e a Direcção-Geral do Património Cultural (50% para cada). O “resultado
líquido” será apurado depois de deduzido ao total das receitas geradas pelo
novo museu o total dos custos com a sua gestão, conservação e manutenção, “bem
como depreciações e juros relativos aos investimentos realizados na [sua]
criação (instalação), na parte que não tenha sido directamente financiada pela
DGPC/Ministério da Cultura e pelo Fundo de Desenvolvimento Turístico de
Lisboa”.
Pedras do império
Para Vassallo e
Silva, historiador de arte especializado em ourivesaria que ocupou o cargo de
director-geral do Património entre Fevereiro de 2014 e Dezembro de 2015, no
Governo do social-democrata Pedro Passos Coelho, o tesouro real português está
entre os mais coerentes que ainda subsistem nas colecções europeias. “É um
conjunto extraordinariamente rico e merece todos os adjectivos relacionados com
esplendor que queiramos associar-lhe. Começa a ser reunido no final do século
XVIII com D. Maria I, que é uma das rainhas mais ricas, se não mesmo a mais
rica, da Europa do seu tempo, e depois continua século XIX fora.”
Nele se incluem
as jóias e pratas da coroa, assim como as insígnias e outras peças de aparato,
e ainda as colecções particulares de D. Fernando II e do seu filho D. Luís I.
Dele não fazem parte, na opinião de Vassallo e Silva, as jóias de uso
quotidiano da rainha Maria Pia, a princesa piemontesa que casou com D. Luís,
nem as suas peças Fabergé ou as que o ourives italiano Fortunato Pio Castellani
fez à imagem das encontradas em escavações arqueológicas e que lhe foram
oferecidas pela cidade de Roma quando trocou Itália por Portugal.
“Estas colecções
quotidianas não deviam fazer parte do museu. O tesouro já tem muitas peças
maiores da ourivesaria do séc. XVI [a colecção de salvas historiadas de D.
Fernando II] e da joalharia europeia dos séculos XVIII e XIX”, diz este
historiador de arte que preside ao Grupo dos Amigos do PNA. “São jóias
assombrosas, de grande espectáculo, que têm uma característica que as torna
singulares quando comparadas com as de outras colecções europeias — as gemas
são do território do império português. Portugal era senhor dos diamantes e,
por isso, estas peças documentam também o poder colonial.”
Palácios com
colecções reais, embora seja difícil estabelecer comparações directas entre
elas, há em Copenhaga (Rosenborg Castle) e Estocolmo (Palácio Real): “Ambos os
tesouros são visitáveis com bilhetes próprios, aliás como os de Munique
[Residenz] e Viena [Palácio Hofburg]. Bilhete próprio pode ser meio caminho
para gestão própria, embora tal não suceda nestes casos que mencionei.”
Vassallo e Silva
vê com bons olhos que este Governo tenha dado continuidade a um projecto que já
passou por vários executivos — “desde que Gabriela Canavilhas era ministra da
Cultura que o arquitecto João Carlos Santos [subdirector-geral do Património e
autor do projecto do novo museu] faz projectos para o remate do palácio” —, mas
tem dúvidas de que seja preciso criar mais um museu nacional. “Quando há tantas
dificuldades financeiras e humanas nos que já existem, parece-me uma má ideia.
Depois, há que saber como se fará a gestão. A partilha de receitas com a ATL
não se coaduna com o modelo dos outros museus nacionais. Vai ser sempre um
corpo estranho entre os museus públicos. Tecnicamente, tudo é possível, mas é
preciso saber se aceitamos tudo.”
O Turismo de
Lisboa é importante como “viabilizador do projecto”, reconhece o historiador de
arte, mas dizer que o Palácio da Ajuda fica com a “gestão científica é por de
mais vago”, acrescenta, já depois de lido o protocolo. É claro que “é legítimo
que o Governo queira um museu autónomo para o tesouro real”, mas é preciso que
clarifique muito bem o papel de cada um: “O que me causa mais dúvidas é a
articulação do palácio com o museu. A dinâmica que se quer impor não é clara.
Até pode ser uma óptima solução, mas para já é preciso ouvir com cautela.”
Hugo Xavier,
historiador de arte e funcionário da Parques de Sintra, a empresa que gere a
paisagem da vila classificada como património mundial, não hesita em dizer que
“criar um museu nacional num palácio nacional que já é em si mesmo um museu é
simplesmente redundante”.
Este conservador
que tem estudado as colecções de D. Fernando II, o príncipe de
Saxe-Coburgo-Gotha que casou com D. Maria II, e que conhece muito bem as salvas
manuelinas que eram usadas nos baptizados da corte e nas cerimónias do
lava-pés, na Páscoa, “um conjunto único no mundo”, argumenta que o PNA tem
“vocação de museu” há já 150 anos: “A Ajuda não é apenas o único palácio real
de Lisboa que é um museu. A Ajuda já tinha um núcleo museológico na década de
1860, criado precisamente por D. Luís I, que era também o dono da casa.”
Com D. Fernando
II e D. Maria II, lembra este historiador de arte, as colecções de joalharia e
ourivesaria da coroa estavam no Palácio das Necessidades, tendo sido D. Luís e
Maria Pia a transferi-las para a Ajuda. Embora tenha “peças extraordinárias em
qualquer parte do mundo” na joalharia, é na ourivesaria, com as suas salvas,
gomis e a baixela Germain, que o tesouro é “absolutamente expressivo”. Poder
vê-lo finalmente exposto será “um privilégio”.
“Se vão chamar à
exposição ‘museu’, não passará de uma denominação. Acredito que as pessoas
verão aquele espaço sempre como um pólo do palácio, como mais um conjunto de
salas. E é assim que está certo”, defende Hugo Xavier, que foi um dos
consultores externos que o director da Ajuda e a sua equipa escolheram para
colaborar no programa do novo museu. “Quando eu estava na DGPC e tínhamos o
projecto em mãos sempre pensámos nele como um pólo do palácio. E não tínhamos
previsto a parceria com a ATL, que pode ser uma boa ideia, mas que limitará o
acesso dos outros monumentos e museus públicos a esta fonte de receita que será
bastante considerável”, acrescenta Vassallo e Silva.
José Alberto
Ribeiro lembra que, durante anos e anos, o projecto de remate da ala poente do
palácio e a abertura de uma exposição com o tesouro real sempre foi visto como
a galinha dos ovos de ouro da DGPC. “Agora vamos ter de partilhá-la, o que não
é necessariamente mau, já que significa que ela existe.” O director do palácio
espera agora que, neste processo de criação de um novo museu nacional, a
Cultura não esqueça que a casa de D. Luís I e de Maria Pia também precisa de
obras de beneficiação para que possa receber melhor os turistas que hão-de
visitá-la, espera, cada vez em maior número.
Acabar o Palácio
da Ajuda e fazer dele uma caixa de jóias
Passados mais de
200 anos, será que é desta que o Palácio da Ajuda vai ser concluído? O Governo
e a autarquia garantem que sim. Até ao fim de 2018. A obra deverá custar 15
milhões de euros e prevê duas caixas-fortes para expor a colecção de
ourivesaria da casa real portuguesa.
Lucinda Canelas
19 de Setembro de 2016, 20:48
O momento é
histórico e o palácio real, com a sua colecção de jóias da coroa, verdadeiro
livro da História de Portugal, merece o aparato de uma assinatura de protocolo
a que assistiram largas dezenas de pessoas, entre elas antigos e actuais
responsáveis pela pasta da Cultura, o presidente da câmara de Lisboa,
representantes das organizações do turismo ligadas à cidade e muitos
funcionários do património e dos museus. Nem o primeiro-ministro faltou ao
encontro em que se apresentou publicamente o projecto de conclusão do Palácio
Nacional da Ajuda, que vai acrescentar toda uma nova ala ao actual edifício e
criar espaços expositivos onde serão mostradas cerca de duas mil peças da
colecção de ourivesaria da casa real portuguesa, dando o devido destaque às
jóias da coroa.
É que, lembraram
António Costa e o presidente da autarquia, Fernando Medina, não é todos os dias
que se tem oportunidade de concluir uma obra que está adiada há mais de 200
anos e cujo projecto, divulgado esta segunda-feira ao início da tarde, tem o mérito
de “fazer algo exemplar”, nas palavras do chefe de Governo – garantir um
“trabalho de parceria” entre a Administração Central, o Turismo e o município.
A obra e a
exposição a ela associada vão contribuir para que Lisboa tenha uma oferta
turística de qualidade, que depende em boa medida, frisou o primeiro-ministro
no breve discurso com que fechou esta sessão pública, de uma “capacidade de
renovação” para continuar a fortalecer-se. O sector do turismo, que segundo
António Costa vale hoje 15% das exportações nacionais, registou este ano um
crescimento de 16%. “Na Ajuda teremos um novo pólo de atractividade”, disse
Costa, um novo pólo que só é possível graças ao “mecanismo da taxa turística
que permite devolver ao sector cultural verbas que serão investidas na
valorização do património”.
O remate do
palácio da Ajuda, que nos últimos dois séculos já conheceu tantos projectos que
ninguém parece saber quantos foram ao certo, está agora orçado em 15 milhões de
euros. Os custos do projecto entregue ao arquitecto e subdirector-geral do
Património João Carlos Santos prevê a conclusão da fachada poente do edifício
(a que dá para a Calçada da Ajuda, que continuará a ter carros e eléctricos), a
construção de duas caixas-fortes onde será instalada a colecção de jóias,
dividida em dois núcleos distintos, e a beneficiação na Calçada entre a Alameda
dos Pinheiros e a Rua das Açucenas.
Do montante
global da obra, que deverá estar adjudicada em Julho de 2017 e concluída em
Dezembro de 2018, quatro milhões são assegurados pelo Ministério da Cultura,
através da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), e os restantes pela
Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pela Associação de Turismo de Lisboa (ATL),
a entidade que gere a taxa turística da autarquia, que assegura seis dos 11
milhões de euros remanescentes (dos outros cinco milhões, dois saem de capitais
próprios e três de um empréstimo bancário).
A taxa turística
de Lisboa, fez questão de sublinhar Medina, fará no palácio a sua primeira
aplicação de verbas. O socialista que substituiu Costa na chefia da câmara e
que se prepara para concorrer pela primeira vez à presidência da autarquia no
Outono de 2017 aproveitou a ocasião para interpelar todos os que, há pouco mais
de um ano, a contestaram: “A verdade é que taxas e taxinhas vieram, e foram
elas que [agora] garantiram a obrazinha.”
Referindo-se ao
palácio da Ajuda como um “dos mais importantes e emblemáticos equipamentos
culturais do país”, Medina frisou ainda que “a valorização do património
cultural é um eixo decisivo no desenvolvimento de Lisboa” e que a proposta hoje
apresentada vem pôr fim a uma longa linhagem de projectos que ficaram na
gaveta, sobretudo por falta de vontade política.
História trágica
Dessa longa
linhagem, que inclui remates com o traço de arquitectos como Raul Lino e
Gonçalo Byrne, fazem parte quatro propostas de João Carlos Santos, o arquitecto
que agora assina esta quinta versão que, espera, venha a ser a definitiva.
Desde 2006 que trabalha na conclusão do palácio, embora só dois dos cinco
projectos que para ela fez tenham sido orientados pelo actual programa,
intimamente ligado à exposição das jóias da coroa e dos tesouros de ourivesaria
da casa real, os dois futuros módulos do museu que nascerá na ala da fachada
poente, cada um instalado na sua caixa-forte (por razões de segurança, a
exposição das jóias e as dependências reais hoje visitáveis não vão estar
ligadas no interior do edifício, embora esteja previsto um bilhete que dê acesso
a ambas).
João Carlos
Santos começou por um estudo completo da história deste palácio, fazendo
pesquisa na Torre do Tombo, nos documentos afectos à extinta Direcção-Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais e noutros arquivos, já que a documentação referente
a este imóvel classificado como monumento nacional está dispersa, explicou ao
PÚBLICO. “Hoje sinto que há entre mim e este palácio uma relação de grande
afectividade, de confiança”, diz o arquitecto responsável pela valorização do
Mosteiro de Tibães e da Igreja dos Clérigos, no Porto. “Conheço bem a sua
história trágica, que me entusiasmou, e imagino com facilidade D. Luís e D.
Maria Pia a criarem os filhos nesta casa, com bailes e banquetes para muitos
convidados.”
Construído nos
séculos XVIII e XIX, o paço da Ajuda começou por ser em madeira para melhor
resistir aos sismos. Esta “real barraca”, assim lhe chamavam, para onde a corte
se mudou quando o terramoto de 1755 destruiu o paço da Ribeira acabou por
desaparecer num incêndio em 1794, dando depois lugar ao edifício de alvenaria
que conheceu vários estilos e arquitectos até chegar ao que hoje temos – um
palácio que representa apenas um terço do que estava previsto originalmente
(devia incluir uma sé patriarcal e a Academia de Ciências, multiplicando-se por
vários pátios) e que é um museu desde 1968, mostrando como vivia uma família
real de oitocentos e servindo ao mesmo tempo de palco a jantares e outras
cerimónias de Estado.
“A Ajuda andou de
tragédia em tragédia – nasceu com o terramoto, foi destruída num incêndio e
ficou incompleta por causa das invasões napoleónicas. Pelo meio viveram aqui
pessoas, famílias, aqui casaram reis e nasceram príncipes. Poder contribuir
para que seja terminada depois de tudo isto é um privilégio”, continua o arquitecto,
que tem na ala sul do palácio, onde “se ganha o Tejo numa vista espantosa”, a
sua área preferida em todo o monumento.
O projecto
O seu projecto
prevê a conclusão da fachada poente com uma nova ala que respeita os limites da
massa edificada do actual palácio, na qual se destacam dois corpos laterais
mais elevados, com perfil e altura idênticos aos dos torreões Norte e Sul do
alçado Este, “funcionando como espelhos”. “A ideia é garantir a unidade de
leitura do edifício, garantir o equilíbrio”, diz, explicando que a utilização
de “uma estrutura de lâminas de sombreamento vai permitir mostrar que não há
qualquer intenção de copiar nada do actual edifício neoclássico”. “Sem
mimetismos”, frisa, como mandam as cartas internacionais de restauro e
valorização do património. “Quem chegar aqui pela primeira vez não terá
dificuldade nenhuma em distinguir o que é contemporâneo do que é dos séculos
XVIII e XIX.”
Lá dentro
brilharão as jóias que pertenceram à família real portuguesa, peças de aparato
e de uso quotidiano. No Piso 3 estarão as directamente ligadas à coroa, na sua
esmagadora maioria do século XVIII e reflexo do fácil acesso que Portugal tinha
ao ouro e às pedras preciosas do Brasil, assim como aos mais talentosos
artífices nacionais e estrangeiros. Nele se poderão ver a coroa usada por D.
João VI, espadas, mantos reais e outros trajes de gala, assim como as insígnias
honoríficas usadas pelos monarcas. No Piso 4 estará o tesouro de ourivesaria,
em que merecem destaque as chamadas pratas da coroa – “o maior conjunto do
mundo de prata civil do século XVI”, segundo o director do palácio, José
Alberto Ribeiro – e a Baixela Germain, encomendada pelo rei D. José I ao
ourives do rei de França.
Ao todos são
cerca de 2000 peças distribuídas pelos dois núcleos, menos de um terço do
acervo total da Ajuda, que ultrapassa as 6300, precisa o director. Se pedimos a
José Alberto Ribeiro que destaque algumas, a resposta é imediata – além da
coroa e das pratas, o director chama a atenção para a laça de esmeraldas
colombianas que pertenceu a D. Maria Francisca Benedita, para a tiara de
estrelas que pertenceu a Maria Pia e depois à sua nora, D. Amélia, rainha que
este historiador de arte conhece bem (é autor de uma biografia sobre a mulher
do rei D. Carlos), e para a caixa de tabaco que D. José I encomendou ao ourives
de Luís XV, Pierre-André Jacqmin. “Diz-se que a amante do rei de Franca, a
célebre Pompadour, quis vê-la e que ficou maravilhada. Não queria sequer que
viesse para Portugal”, diz o director. “São peças que contam a história de
Portugal em períodos conturbados e não só”, diz ao PÚBLICO. “São ainda símbolos
nacionais, de soberania, que mostram a corte de aparato, mas também a corte na
intimidade.”
Nestes dois
pisos, cujo guião está a ser trabalhado pela equipa do palácio e ainda sem
projecto expositivo atribuído, não haverá espaço para qualquer réplica das seis
peças das colecções reais que foram roubadas do Museu Municipal de Haia, em
Dezembro de 2002. Nem sequer a do castão de bengala do rei D. José I em ouro e
com 387 brilhantes, talvez a mais espectacular deste pequeno conjunto. “O
objectivo é mostrar o que temos hoje, não o que perdemos”, diz o director. “E
isto com a magia de ver todos estes tesouros numa caixa-forte.”
Os quatro milhões
que a DGPC vai agora investir no projecto de conclusão do palácio e na
exposição das jóias vêm precisamente dos seis milhões de euros que o Ministério
da Cultura recebeu do seguro das jóias roubadas, depois de as autoridades
holandesas darem por concluída a investigação em Dezembro de 2004 sem que
nenhuma delas fosse recuperada (desse seis milhões, 1,8 tinham já sido gastos
na compra de uma pintura de Giovanni Tiepolo para o Museu Nacional de Arte
Antiga).
O preço do
bilhete para a exposição das jóias reais ainda não foi definido, mas as contas
dos estudos de viabilidade usaram como valor de referência 10 euros por adulto,
esclarece o gabinete do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes,
precisando ainda, em resposta ao PÚBLICO, que a lei orgânica da DGPC permite
que uma obra desta natureza e deste valor não seja sujeita a um concurso
internacional de arquitectura caso o autor do projecto não seja exterior a este
organismo que tutela o património.
Foi precisamente
Castro Mendes que, na sua breve intervenção na cerimónia que antecedeu a
assinatura do protocolo a 20 anos entre a DGPC, a ATL e a CML, citou um poema
de Gonçalo M. Tavares para lembrar que também ali, na Ajuda, “o futuro sai da
fenda e da ferida”: “O remate do Palácio Nacional da Ajuda é também o remate do
eixo Belém-Ajuda que o Governo quer gerir em conjunto com a autarquia.”
Se a exposição na
ala poente vier a ter 200 mil visitantes/ano – “estimativa conservadora”, diz o
ministro da Cultura –, o plano de negócio prevê que o retorno do investimento
comece 12 anos após a sua abertura. A partir daí a tutela conta com as receitas
de bilheteira e do aluguer de espaços (terá uma cafeteria com ampla vista sobre
o Tejo e uma sala polivalente com capacidade para 120 pessoas) para garantir a
saúde financeira desta grande caixa de jóias. “Agora é mãos à obra”, disse o
primeiro-ministro no fim da sessão. “Reunidas as condições financeiras, só
falta executar o projecto e começar a vender bilhetes.”
Sem comentários:
Enviar um comentário