segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Quando a excepção se torna regra



Teresa de Sousa
OPINIÃO
Quando a excepção se torna regra

Não há evidência de que a vaga populista esteja já em recuo, depois de ter atingido o seu pico, como muita gente gosta de acreditar. Nem há soluções fáceis ou cómodas para enfrentar o problema

8 de Setembro de 2019, 8:02

1. Há três anos, dois acontecimentos próximos no tempo abalaram subitamente as águas ainda relativamente tranquilas das velhas e ricas democracias ocidentais, precisamente nas duas que moldaram, em boa medida, o seu destino: no Reino Unido e nos Estados Unidos. Deste lado do Atlântico, o resultado de um referendo que o líder conservador britânico David Cameron teve a ideia de convocar para calar de uma vez a ala radical antieuropeia do seu partido, teve o resultado que ninguém considerava possível. Os britânicos votaram maioritariamente (52% para 48%) pelo abandono da União Europeia. O resultado apanhou de surpresa as elites políticas britânicas e europeias, derrubou Cameron, levou Theresa May a substitui-lo, prometendo cumprir a vontade dos eleitores – “Brexit is Brexit”. Foi justamente porque não conseguiu cumprir a sua promessa, depois de dois anos de intensas negociações em Bruxelas para chegar a um acordo de saída, que May acabou como o seu antecessor: derrubada pelo “Brexit”, quando o Parlamento britânico chumbou três vezes consecutivas o acordo de saída. Finalmente, em Junho passado, o homem que liderou o “Leave” no referendo, chegou onde queria: ao número 10 de Downing Street. A sua aposta contra Cameron em 2016 tinha finalmente sido compensada. Bastava-lhe cavalgar a onda pela libertação das grilhetas de Bruxelas, galvanizar o país e cumprir a sua até agora única promessa: tirar o Reino Unido da União Europeia no dia 31 de Outubro.

No mesmo ano, alguns meses depois, outro resultado impensável ocorria do outro lado do Atlântico: os eleitores americanos elegiam Donald Trump para a Casa Branca. Não é preciso recuar muito tempo para lembrar até que ponto a possibilidade da sua eleição era considerada uma piada. E não apenas porque as sondagens não apontavam para ela, mas porque a sua personalidade era absolutamente contrária ao que o bom senso exige para quem lidera o país mais poderoso do mundo.

2. Três anos depois dos dois acontecimentos, mudou acentuadamente a paisagem política europeia. Partidos populistas e nacionalistas (alguns não escondem o seu apreço pelo Presidente americano, outros dão-se particularmente bem com Putin) emergiram na maioria dos países da União Europeia, alguns novos outros saídos do limbo em que se mantinham há décadas – da Alemanha à Itália, da França à Suécia, à Áustria, à Hungria e à Polónia. Instalaram-se para ficar. Desafiam directamente os partidos do mainstream sobre os quais se construíram as democracias europeias e a própria União. São um novo factor de instabilidade, conseguem demasiadas vezes infectar os partidos de centro-direita (ou até do centro-esquerda) com as suas bandeiras anti-imigrantes e a sua reivindicação do regresso de uma alegada soberania nacional perdida nos meandros sinistros de Bruxelas.

A descrição desta realidade não merece grande contestação. Persiste, no entanto, uma forte tendência para minimizá-la. De duas formas possíveis: tentar explicar o fenómeno caso e caso; convencer-se com demasiada facilidade de que o pior já passou, de cada vez que as perspectivas mais negras das sondagens são desmentidas pêlos resultados.

Vimos essa reacção nas europeias de final de Maio, quando os resultados eleitorais dos partidos nacionalistas e extremistas ficaram um pouco abaixo das previsões. As sondagens chegavam a apontar valores próximos dos 30 por cento; o resultado das urnas apenas rondou os 25 por cento. Foi saudado quase como uma grande vitória. Voltámos a vê-la há duas semanas na Alemanha, com as eleições regionais na Saxónia e no Brandeburgo – dois Landers da antiga Europa de Leste. Algumas sondagens admitiam que a AfD – um partido de extrema-direita nacionalista – pudesse vencer nos dois Estados. O facto de ter ficado em ambos com um “honroso” segundo lugar, nos calcanhares dos dois grandes partidos do sistema, a CDU e o SPD, provocou a mesma sensação de quase euforia.

Nada, todavia, nestas eleições deveria provocar alívio. Na Saxónia, a CDU apenas ficou à frente da AfD na faixa etária dos mais de 60 anos. Também foi nesta faixa que o velho SPD conseguiu ficar à frente dos Verde. De resto, a AfD ficou à frente da CDU incluindo entre os eleitores mais jovens: entre os 18 e os 24, venceram a extrema-direita e os Verdes, ambos com 20 por cento dos votos. Do lado do SPD as coisas ainda correm pior. O partido que teve o seu pior resultado de sempre nas eleições de Setembro de 2017 (20%) não consegue conter a sangria de votos para os Verdes, no que toca às camadas urbanas, e para a própria AfD nos velhos bastiões operários que lhe pertenciam desde sempre. Na França, nas presidenciais de 2017, o susto chegou a ser a possibilidade de uma vitória de Marine Le Pen, travada na segunda volta pelo novo partido de Emmanuel Macron, com pouco menos de um ano de vida. De então para cá, os dois grandes partidos tradicionais – os socialistas e os republicanos - não conseguiram ganhar terreno. Nem sequer quando Macron enfrentou a crise dos gilets jaunes e a sua popularidade desceu aos infernos. O benefício foi quase todo para Le Pen, deixando a França sem verdadeira alternativa a Macron.

De Roma, entretanto, chegaram óptimas noticias. Quando o líder da extrema-direita Matteo Salvini achou que tinha chegado o momento de se apoderar do poder, o seu cálculo falhou, abrindo as portas a um governo de coligação entre o Cinco Estrelas e o Partido Democrata, que o deixou fora de jogo pelo menos durante algum tempo. Será preciso que o novo Governo tenha algum sucesso para conseguir conter a Liga de Salvini – convém recordar que as sondagens lhe dão sistematicamente a vitória em caso de eleições.

3. Boris Johnson não é Salvini. São muito distintas as culturas políticas dos dois países. Habituámos a admirar a democracia representativa britânica, sólida, estável, capaz de encontrar respostas moderadas para as encruzilhadas da História, orgulhosamente construída sobre “a mãe de todos os Parlamentos”. O que aconteceu na última semana no Reino Unido é de molde a fazer abalar algumas dessas certezas. Boris chegou, viu e não venceu. Pelo contrário, viu-se sucessivamente derrotado em Westminster, depois de ter tentado impedir que o Parlamento destruísse o único objectivo com que chegou a Downing Street e a única estratégia para tentar manter-se lá: concluir o “Brexit” na data marcada, “contra tudo e contra todos”. Ora, em democracia, não há por definição nenhuma decisão política que possa ser contra tudo e contra todos. O primeiro-ministro britânico viu o Parlamento impor-lhe uma lei que obriga ao adiamento da data de saída para que esta não aconteça sem acordo com a União Europeia. A resposta foi a dramatização ainda maior do discurso do “povo contra o Parlamento”, ao declarar que preferia “morrer numa vala da estrada” a não cumprir a data de saída. O que vai acontecer agora, ninguém sabe. Apenas numa coisa a maioria dos analistas converge: está a mudar aceleradamente a natureza do Partido Conservador, ao qual Fareed Zakaria chamava no Washington Post o mais velho e mais bem-sucedido partido do mundo. Um estudo recente da Queen Mary University mostrava que 97 por cento dos membros do partido eram brancos, 71 por cento homens e 44 por cento com mais de 65 anos. Uma amostra em profundo desfasamento com a sociedade britânica. Outro estudo dos resultados da eleição do novo líder, realizado pela YouGov, indicava que 63 por cento dos militantes estariam dispostos a alienar a Escócia a troco da saída da União Europeia, e que 59 por cento aceitavam a alienação da Irlanda do Norte. Não restam dúvidas de que o Partido Conservador é hoje o representante do nacionalismo inglês.

4. Se unirmos todos os sinais de crise que marcam hoje o mapa politico europeu, o desenho não é animador nem, muito menos, há evidência de que a vaga populista esteja já em recuo, depois de ter atingido o seu pico, como muita gente gosta de acreditar. Nem há soluções fáceis ou cómodas para enfrentar o problema. Na origem desta tempestade política que atravessa a Europa está a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão que se lhe seguiu nos EUA e na Europa. Apesar da retoma das economias, as sementes do descontentamento mantêm-se. As causes podem ser múltiplas: as desigualdades crescentes que a crise acentuou; a vaga de imigração; os excessos da globalização e a mudança radical dos equilíbrios de poder no mundo, com a emergência de grandes potências não democráticas que desafiam abertamente a hegemonia ocidental. A única certeza que temos é que minimizar ou desvalorizar as ameaças que hoje ensombram as nossas democracias será o maior erro de todos. Porque a excepção está rapidamente a tornar-se a regra.

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