Teresa de Sousa
OPINIÃO
Quando a excepção
se torna regra
Não há evidência
de que a vaga populista esteja já em recuo, depois de ter atingido o seu pico,
como muita gente gosta de acreditar. Nem há soluções fáceis ou cómodas para
enfrentar o problema
8 de Setembro de
2019, 8:02
1. Há três anos,
dois acontecimentos próximos no tempo abalaram subitamente as águas ainda
relativamente tranquilas das velhas e ricas democracias ocidentais,
precisamente nas duas que moldaram, em boa medida, o seu destino: no Reino
Unido e nos Estados Unidos. Deste lado do Atlântico, o resultado de um
referendo que o líder conservador britânico David Cameron teve a ideia de
convocar para calar de uma vez a ala radical antieuropeia do seu partido, teve
o resultado que ninguém considerava possível. Os britânicos votaram
maioritariamente (52% para 48%) pelo abandono da União Europeia. O resultado
apanhou de surpresa as elites políticas britânicas e europeias, derrubou
Cameron, levou Theresa May a substitui-lo, prometendo cumprir a vontade dos
eleitores – “Brexit is Brexit”. Foi justamente porque não conseguiu cumprir a
sua promessa, depois de dois anos de intensas negociações em Bruxelas para
chegar a um acordo de saída, que May acabou como o seu antecessor: derrubada
pelo “Brexit”, quando o Parlamento britânico chumbou três vezes consecutivas o
acordo de saída. Finalmente, em Junho passado, o homem que liderou o “Leave” no
referendo, chegou onde queria: ao número 10 de Downing Street. A sua aposta
contra Cameron em 2016 tinha finalmente sido compensada. Bastava-lhe cavalgar a
onda pela libertação das grilhetas de Bruxelas, galvanizar o país e cumprir a
sua até agora única promessa: tirar o Reino Unido da União Europeia no dia 31
de Outubro.
No mesmo ano,
alguns meses depois, outro resultado impensável ocorria do outro lado do
Atlântico: os eleitores americanos elegiam Donald Trump para a Casa Branca. Não
é preciso recuar muito tempo para lembrar até que ponto a possibilidade da sua
eleição era considerada uma piada. E não apenas porque as sondagens não
apontavam para ela, mas porque a sua personalidade era absolutamente contrária
ao que o bom senso exige para quem lidera o país mais poderoso do mundo.
2. Três anos
depois dos dois acontecimentos, mudou acentuadamente a paisagem política
europeia. Partidos populistas e nacionalistas (alguns não escondem o seu apreço
pelo Presidente americano, outros dão-se particularmente bem com Putin)
emergiram na maioria dos países da União Europeia, alguns novos outros saídos
do limbo em que se mantinham há décadas – da Alemanha à Itália, da França à Suécia,
à Áustria, à Hungria e à Polónia. Instalaram-se para ficar. Desafiam
directamente os partidos do mainstream sobre os quais se construíram as
democracias europeias e a própria União. São um novo factor de instabilidade,
conseguem demasiadas vezes infectar os partidos de centro-direita (ou até do
centro-esquerda) com as suas bandeiras anti-imigrantes e a sua reivindicação do
regresso de uma alegada soberania nacional perdida nos meandros sinistros de
Bruxelas.
A descrição desta
realidade não merece grande contestação. Persiste, no entanto, uma forte
tendência para minimizá-la. De duas formas possíveis: tentar explicar o
fenómeno caso e caso; convencer-se com demasiada facilidade de que o pior já
passou, de cada vez que as perspectivas mais negras das sondagens são
desmentidas pêlos resultados.
Vimos essa
reacção nas europeias de final de Maio, quando os resultados eleitorais dos
partidos nacionalistas e extremistas ficaram um pouco abaixo das previsões. As
sondagens chegavam a apontar valores próximos dos 30 por cento; o resultado das
urnas apenas rondou os 25 por cento. Foi saudado quase como uma grande vitória.
Voltámos a vê-la há duas semanas na Alemanha, com as eleições regionais na
Saxónia e no Brandeburgo – dois Landers da antiga Europa de Leste. Algumas
sondagens admitiam que a AfD – um partido de extrema-direita nacionalista –
pudesse vencer nos dois Estados. O facto de ter ficado em ambos com um
“honroso” segundo lugar, nos calcanhares dos dois grandes partidos do sistema,
a CDU e o SPD, provocou a mesma sensação de quase euforia.
Nada, todavia,
nestas eleições deveria provocar alívio. Na Saxónia, a CDU apenas ficou à
frente da AfD na faixa etária dos mais de 60 anos. Também foi nesta faixa que o
velho SPD conseguiu ficar à frente dos Verde. De resto, a AfD ficou à frente da
CDU incluindo entre os eleitores mais jovens: entre os 18 e os 24, venceram a
extrema-direita e os Verdes, ambos com 20 por cento dos votos. Do lado do SPD
as coisas ainda correm pior. O partido que teve o seu pior resultado de sempre
nas eleições de Setembro de 2017 (20%) não consegue conter a sangria de votos
para os Verdes, no que toca às camadas urbanas, e para a própria AfD nos velhos
bastiões operários que lhe pertenciam desde sempre. Na França, nas
presidenciais de 2017, o susto chegou a ser a possibilidade de uma vitória de
Marine Le Pen, travada na segunda volta pelo novo partido de Emmanuel Macron,
com pouco menos de um ano de vida. De então para cá, os dois grandes partidos
tradicionais – os socialistas e os republicanos - não conseguiram ganhar
terreno. Nem sequer quando Macron enfrentou a crise dos gilets jaunes e a sua
popularidade desceu aos infernos. O benefício foi quase todo para Le Pen,
deixando a França sem verdadeira alternativa a Macron.
De Roma,
entretanto, chegaram óptimas noticias. Quando o líder da extrema-direita Matteo
Salvini achou que tinha chegado o momento de se apoderar do poder, o seu
cálculo falhou, abrindo as portas a um governo de coligação entre o Cinco
Estrelas e o Partido Democrata, que o deixou fora de jogo pelo menos durante
algum tempo. Será preciso que o novo Governo tenha algum sucesso para conseguir
conter a Liga de Salvini – convém recordar que as sondagens lhe dão
sistematicamente a vitória em caso de eleições.
3. Boris Johnson
não é Salvini. São muito distintas as culturas políticas dos dois países.
Habituámos a admirar a democracia representativa britânica, sólida, estável,
capaz de encontrar respostas moderadas para as encruzilhadas da História,
orgulhosamente construída sobre “a mãe de todos os Parlamentos”. O que
aconteceu na última semana no Reino Unido é de molde a fazer abalar algumas
dessas certezas. Boris chegou, viu e não venceu. Pelo contrário, viu-se
sucessivamente derrotado em Westminster, depois de ter tentado impedir que o
Parlamento destruísse o único objectivo com que chegou a Downing Street e a
única estratégia para tentar manter-se lá: concluir o “Brexit” na data marcada,
“contra tudo e contra todos”. Ora, em democracia, não há por definição nenhuma
decisão política que possa ser contra tudo e contra todos. O primeiro-ministro
britânico viu o Parlamento impor-lhe uma lei que obriga ao adiamento da data de
saída para que esta não aconteça sem acordo com a União Europeia. A resposta
foi a dramatização ainda maior do discurso do “povo contra o Parlamento”, ao
declarar que preferia “morrer numa vala da estrada” a não cumprir a data de
saída. O que vai acontecer agora, ninguém sabe. Apenas numa coisa a maioria dos
analistas converge: está a mudar aceleradamente a natureza do Partido
Conservador, ao qual Fareed Zakaria chamava no Washington Post o mais velho e
mais bem-sucedido partido do mundo. Um estudo recente da Queen Mary University
mostrava que 97 por cento dos membros do partido eram brancos, 71 por cento
homens e 44 por cento com mais de 65 anos. Uma amostra em profundo desfasamento
com a sociedade britânica. Outro estudo dos resultados da eleição do novo
líder, realizado pela YouGov, indicava que 63 por cento dos militantes estariam
dispostos a alienar a Escócia a troco da saída da União Europeia, e que 59 por
cento aceitavam a alienação da Irlanda do Norte. Não restam dúvidas de que o
Partido Conservador é hoje o representante do nacionalismo inglês.
4. Se unirmos
todos os sinais de crise que marcam hoje o mapa politico europeu, o desenho não
é animador nem, muito menos, há evidência de que a vaga populista esteja já em
recuo, depois de ter atingido o seu pico, como muita gente gosta de acreditar.
Nem há soluções fáceis ou cómodas para enfrentar o problema. Na origem desta
tempestade política que atravessa a Europa está a crise financeira de 2008 e a
Grande Recessão que se lhe seguiu nos EUA e na Europa. Apesar da retoma das
economias, as sementes do descontentamento mantêm-se. As causes podem ser múltiplas:
as desigualdades crescentes que a crise acentuou; a vaga de imigração; os
excessos da globalização e a mudança radical dos equilíbrios de poder no mundo,
com a emergência de grandes potências não democráticas que desafiam abertamente
a hegemonia ocidental. A única certeza que temos é que minimizar ou
desvalorizar as ameaças que hoje ensombram as nossas democracias será o maior
erro de todos. Porque a excepção está rapidamente a tornar-se a regra.
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