sexta-feira, 6 de setembro de 2019

DOSSIER: Que futuro para o S. Carlos ? / O desastre consumado em São Carlos / Elisabete Matos quer devolver ao São Carlos o seu brilho “internacional” / Patrick Dickie: “O São Carlos não devia depender de ciclos políticos”



O desastre consumado em São Carlos

A nomeação de Elisabete Matos para a direcção artística do teatro nacional de ópera é um disparate consumado – que inclusive poderá não beneficiar uma cantora com a sua projecção internacional. E confirma o desastre que foi a governação socialista da Cultura.

AUGUSTO M. SEABRA
5 de Setembro de 2019, 20:57

Num teatro de ópera, as funções de director artístico e de intérprete – cantor/a – são totalmente distintas.

Aos primeiros cabe programar, e desejavelmente com a maior diversidade, tendo em conta os meios de produção do teatro mas também um conhecimento internacional dos cantores, maestros e encenadores que melhor podem concretizar o desenho da programação pretendida. É igualmente importante que possuam contactos próximos com os seus congéneres de outros teatros – e, sejamos absolutamente claros, não existe neste momento em Portugal ninguém que reúna essas qualificações.

Um teatro de ópera precisa de um director artístico a tempo inteiro e não tem por isso cabimento que, mesmo abrandando a sua carreira internacional, Elisabete Matos não esteja totalmente dedicada às funções de directora artística

Aos segundos cabe evidentemente interpretar, de acordo com o tipo de vocalidade que desenvolveram e o reportório em que se especializaram – porque há cantores para os mais diferentes tipos de reportório, do barroco ao contemporâneo.

A nomeação de uma cantora, Elisabete Matos, para directora artística do São Carlos cria uma situação no mínimo equívoca e que certamente é nos seus pressupostos um disparate consumado.

Sabemos bem que Elisabete Matos tem uma carreira internacional como nenhum outro cantor português, inclusive já tendo actuado no Scala e no Met. E agora o que vai suceder? Diz ela que terá de “abrandar” essa carreira. Lamento, mas não basta.

Um teatro de ópera precisa de um director artístico a tempo inteiro e não tem por isso cabimento que, mesmo abrandando a sua carreira internacional, Elisabete Matos não esteja totalmente dedicada às funções de directora artística – para equívocos parecidos já bem bastou o regresso de Paolo Pinamonti como “consultor” enquanto mantinha as suas funções de director do Teatro da Zarzuela, em Madrid.

E não deixa de ser também de lamentar que, com uma carreira internacional já tão consolidada, mas que continua em ascensão, Elisabete Matos tenha agora de a “abrandar”.

Patrick Dickie: “O São Carlos não devia depender de ciclos políticos”

Mas há mais dúvidas: é inteiramente legítimo perguntar o que conhece ela, em termos de intérpretes e de reportório, para além daquele em que se especializou, como soprano dramático, isto é o reportório verdiano, verista e wagneriano.

Sobretudo é inaceitável para um cargo desde tipo o argumento da “preferência nacional” em que se baseou o convite endereçado pela ministra Graça Fonseca e já colhe aplausos.

Depois de ter tornado o Théâtre de La Monnaie, em Bruxelas, num dos mais salientes da Europa, o belga Gérard Mortier foi o grande renovador do Festival de Salzburgo, mais tarde dirigiu a Ópera de Paris e em seguida o Teatro Real de Madrid. O francês Stéphane Lissner foi director artístico do Scala de Milão. Que não se venha pois com essa lamúria de que “nós, portugueses” é que não fazemos justiça aos “nossos valores”.

Dar oportunidades a cantores e intérpretes portugueses é importantíssimo, certamente uma das prioridades do teatro nacional de ópera, outra coisa, bem distinta, é a identidade de um director artístico. E isso da “preferência nacional” em São Carlos tem uma história de péssimos antecedentes. Limito-me a um exemplo: em 1993, num governo de Cavaco Silva, sendo Maria José Nogueira Pinto subsecretária de Estado da Cultura, com o pelouro das artes e espectáculos, deu-se início à constituição da actual Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), estando indigitado para seu director, e sendo o maestro presente nas audições dos músicos, o britânico Martin André; quando Nogueira Pinto, pessoa de rara integridade, saiu do governo, depois de entrar em conflito com o secretário de Estado da tutela, Pedro Santana Lopes, este achou que o maestro da OSP não devia ser um britânico mas um português, no caso Álvaro Cassuto.

Está pois em “boa companhia” Graça Fonseca – logo Pedro Santana Lopes! O argumento da “preferência nacional” que determinou a opção da ministra é profundamente provinciano, mais do que isso pacóvio, e revela um profundo desconhecimento das características próprias de um teatro nacional de ópera que, justamente por o ser, se inscreve numa rede internacional de teatros congéneres.

Esta nomeação é um disparate consumado – e receio que inclusive não beneficie uma cantora com a projecção internacional de Elisabete Matos, que terá de renunciar a algumas oportunidades –, mais outro neste desastre de governação socialista da Cultura.




Elisabete Matos quer devolver ao São Carlos o seu brilho “internacional”

A soprano portuguesa sucede a Patrick Dickie na direcção artística do Teatro Nacional de São Carlos, anunciou esta manhã o Ministério da Cultura. Em declarações ao PÚBLICO, diz estar convencida de poder dar “um grande contributo” para ajudar “a ultrapassar os problemas” que o único teatro de ópera português tem enfrentado, ainda que para isso a sua carreira lírica tenha de “abrandar”.

Sérgio C. Andrade
Sérgio C. Andrade 2 de Setembro de 2019, 11:19 actualizado a 2 de Setembro de 2019, 15:42

Elisabete Matos acredita que é possível devolver ao Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) “o brilho internacional” que a instituição já teve na sua história. A soprano portuguesa será, a partir de Outubro, a nova directora artística do São Carlos, na sequência de um convite que lhe foi endereçado pela ministra da Cultura há já alguns meses para suceder a Patrick Dickie, que em Junho anunciou não ter condições para se manter no cargo.


A nomeação de Elisabete Matos para suceder a Patrick Dickie surge quatro anos após a sua candidatura à direcção do TNSC. No concurso aberto em 2015, a cantora apresentou-se na corrida com o programa de “tirar o São Carlos da deriva” em que se encontrava, como então referiu ao Diário de Notícias. A tutela optou, no entanto, pelo maestro e programador britânico que já era consultor artístico da instituição.

No comunicado em que, esta segunda-feira, anunciou a escolha de Elisabete Matos para o TNSC, o Ministério da Cultura (MC) enfatiza a dimensão internacional da carreira da cantora, lembrando que a futura directora artística do único teatro de ópera do país actuou nos “mais importantes palcos mundiais” da música lírica.

Ao PÚBLICO, Elisabete Matos disse acreditar que essa experiência acumulada ao longo dos seus mais de 30 anos de carreira será preciosa para enfrentar este novo desafio: “Creio que poderei dar um grande contributo e ajudar a ultrapassar os problemas com que o TNSC tem vivido nos últimos tempos. Vou trabalhar desenvolvendo sinergias com o corpo artístico do São Carlos, com a Orquestra [Sinfónica Portuguesa], com o Coro. Tem de haver uma grande união, isto é uma luta de todos: temos de fazer regressar o São Carlos ao nível que ele merece, ao tempo em que foi uma referência internacional.”

Falando num intervalo de um ensaio, na Ópera de Oviedo, em Espanha, da nova produção O Crepúsculo dos Deuses – uma encenação de Carlos Wagner com direcção musical de Christoph Gedschold que tem estreia agendada já para o próximo dia 10 –, a soprano portuguesa acrescentou que vai enfrentar o seu novo desafio à frente do TNSC “com os pés bem assentes na terra”, consciente de que se trata de um trabalho que tem de ser desenvolvido “com inteligência e com a participação de todos, para enaltecer o São Carlos”.

A futura responsável pela direcção do teatro nacional de ópera não quis pronunciar-se sobre o mandato de Dickie, que anunciou a sua saída do São Carlos no auge de um período de intensa turbulência desencadeado por um braço-de-ferro entre os trabalhadores e o MC.

Sobre a temporada 2019/20 que o programador britânico já deixou desenhada, Elisabete Matos diz não ter ainda a informação suficiente. “Conheço os nomes, há alguns títulos apelativos, mas vou ter de analisar o programa e recolher mais informação sobre as produções para eventualmente ajustar algumas coisas”, acrescenta, realçando que a sua assinatura só surgirá verdadeiramente na temporada seguinte. Mas o seu programa será trabalhar prioritariamente “com o corpo artístico do TNSC e com os artistas portugueses, que não têm tido acesso aos papéis mais notórios”, nota, não esquecendo naturalmente os artistas internacionais. “É preciso tirar o melhor partido do que temos, e depois desenhar uma temporada que seja aliciante para o público; nós vivemos para o público, mas sem esquecer a parte educativa, que é também a missão de um teatro nacional; temos de fazê-lo com consciência e equilíbrio”, acrescentou.

Questionada sobre o objectivo das dez óperas por temporada que Patrick Dickie fixou no início do seu mandato, Elisabete Matos recusa avançar metas. “Isso seria óptimo, mas o que é certo é que [Patrick Dickie] esteve no São Carlos quatro anos e não conseguiu lá chegar. Eu não vou colocar números até ter toda a informação nas mãos e até contactar o Opart e a tutela. Mas vamos fazer muito mais do que se tem feito até agora”, assegura.

Aplauso e expectativa
Três milhões de euros para o São Carlos que não pacificam os trabalhadores (nem salvam a ópera que ficou por estrear)
A escolha de Elisabete Matos para a direcção do TNSC foi bem recebida pelo pianista e professor Nuno Vieira de Almeida e pelo maestro e compositor Pedro Amaral. “Só peca por tardia; já devia ter ocupado este cargo há muito”, exclama o primeiro, realçando a carreira internacional da cantora, e o facto de se ter optado, desta vez, por uma artista portuguesa – “Somos o único país da Europa onde isso parece que não conta, ao contrário do que acontece noutros lados, onde dão primazia aos seus artistas”, diz o pianista.

“Elisabete Matos conhece muito bem o mundo da música, conhece o reportório, está farta de cantar nas principais casas de ópera de todo o mundo”, acrescenta ainda Nuno Vieira de Almeida, que desvaloriza a sua falta de experiência enquanto programadora – “O Claudio Abbado também não tinha experiência quando foi escolhido para director musical do La Scala de Milão!”…

Pedro Amaral aplaude também esta escolha, que não o surpreende: “Artista notável no domínio da ópera, com ampla projecção internacional, [Elisabete Matos] tem um conhecimento profundo e privilegiado do meio operático. Saberá escolher equipas artísticas, combinar elencos, decidir repertórios”, diz, em email ​enviado ao PÚBLICO, o maestro da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que acredita, de resto, que Elisabete Matos, “tendo desenvolvido parte da sua carreira em Espanha”, está em boas condições de estabelecer “pontes ‘ibéricas’ entre Lisboa e as grandes casas de ópera da península, o que pode revelar-se um importante trunfo, tendo em conta a dimensão internacional inerente à programação operática”.

O maestro destaca ainda o “importante papel pedagógico” que a soprano tem vindo a desempenhar na formação de jovens cantores em Portugal, ao longo dos últimos anos, antecipando “que talvez venhamos a assistir a uma renovação geracional em São Carlos, dando a conhecer ao público novos talentos, no domínio vocal”. E termina o seu depoimento desejando que esta “artista inteligente e profissional muito determinada consiga obter as condições necessárias ao desempenho de um cargo certamente apaixonante mas de grande exigência”: “Pessoalmente, desejo-lhe a melhor energia – porque o talento já o tem!”

Na expectativa mostra-se a cantora Ana Quintans, cuja carreira não se cruzou ainda com Elisabete Matos. “Naturalmente que conheço o seu percurso artístico muito distinto, a sua qualidade artística como intérprete”, diz a soprano que em Janeiro encarnou uma muito celebrada Alceste no São Carlos, ressalvando, no entanto, que “a direcção artística de um teatro de ópera é outra coisa”. Satisfeita pelo facto de a escolha ter recaído “numa mulher, numa portuguesa e numa intérprete”, Quintans mostra-se sobretudo “expectante” relativamente àquilo que Elisabete Matos vai conseguir fazer no São Carlos.

De Guimarães para Espanha e para o mundo
Natural de Caldas das Taipas, concelho de Guimarães, Elisabete Matos é provavelmente a mais bem-sucedida cantora lírica portuguesa, tendo actuado em destacados palcos mundiais como a Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, e a Washington Opera, nos Estados Unidos, a Deutsche Oper de Berlim, na Alemanha, o Teatro alla Scala de Milão e o Teatro La Fenice de Veneza, ambos em Itália, e o Teatro Real de Madrid.

Após estudos de canto e violino no Conservatório de Música de Braga, completou a sua formação em Espanha com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. A nota biográfica disponibilizada pelo MC recorda que a soprano foi dirigida por grandes maestros, entre os quais Lorin Maazel, James Conlon, Riccardo Muti, Zubin Metha, Valery Gergiev, Daniel Oren, Daniel Baremboim e Bruno Bartoletti, e que acompanhou solistas como Plácido Domingo, José Carreras, Mariella Devia, Leo Nucci, Renato Bruson, Eva Marton, entre outros.

Em 2000, foi galardoada com um Grammy pela gravação do papel titular de La Dolores, de Bretón, com Plácido Domingo, para a Decca. No São Carlos, foi recentemente uma aplaudida Isolda no Tristão e Isolda de Wagner, com encenação de Charles Edwards, papel que se encaixa numa fase da sua carreira particularmente centrada na “apropriação das personagens wagnerianas”, como então notava a crítica do PÚBLICO Cristina Fernandes. É de resto uma nova personagem de Wagner que está agora a preparar na Ópera de Oviedo: a Brunilde de O Crepúsculo dos Deuses.

Embora o seu contrato com o São Carlos contemple a acumulação das funções que ali desempenhará com outras solicitações, Elisabete Matos admite que, “naturalmente”, a sua carreira como soprano terá de “abrandar": “Iremos analisar cada convite e cada situação em concreto. Continuarei a trabalhar, mas quero sobretudo estar no TNSC, quero ser uma directora presente.”

Actualmente, Elisabete Matos é professora-adjunta convidada na Escola Superior de Artes Aplicadas, em Castelo Branco, desde 2014 e, desde 2017, directora artística do Festival Internacional de Música Religiosa de Guimarães.

Questões laborais em suspenso
Com a nomeação de Elisabete Matos, parece concluído o processo de restruturação do Organismo de Produção Artística (Opart), responsável pela gestão do TNSC e da Companhia Nacional de Bailado. A 2 de Julho, o ex-chefe de gabinete de Mário Centeno, André Moz Caldas, foi nomeado presidente do conselho de administração do Opart, em substituição de Carlos Vargas, então já demissionário. Semanas depois, a ministra da Cultura e André Moz Caldas anunciavam, na apresentação pública da próxima temporada do São Carlos, a renovação do mandato de Joana Carneiro como maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa e um reforço orçamental de 606 mil euros para que o Opart pudesse “refundar” a sua programação artística. Graça Fonseca adiantou na altura que a figura que viria suceder a Patrick Dickie já estava escolhida e que seria um nome português “de prestígio”.

O nome em causa, soube-se agora, é Elisabete Matos, que, no entanto, vai chegar ao São Carlos numa altura em que as questões laborais e a instabilidade que marcaram o início do Verão não estão de todo resolvidas. Em Julho, e após a entrada em funções da nova administração do Opart, os trabalhadores decidiram suspender a greve iniciada no mês anterior que levou ao cancelamento de várias produções, incluindo a ópera La Bohème (entretanto reprogramada para 2020). Mas sobre a mesa mantêm-se as reivindicações que estiveram na base de um conflito laboral que se arrastou durante vários meses.

Já no São Carlos, a situação de instabilidade é bastante anterior ao início deste “Verão quente” no Opart. Entre 2013 e 2016, o teatro nacional de ópera viveu sem director artístico, tendo a programação ficado a cargo de consultores como o italiano Paolo Pinamonti (2013-2014) e o próprio Patrick Dickie (2014-2016). O último director artístico do São Carlos antes deste britânico que cessou as suas funções a 31 de Agosto fora Martin André, cujo mandato terminou em 31 de Julho de 2013. com Inês Nadais




Patrick Dickie: “O São Carlos não devia depender de ciclos políticos”
A pouco mais de um mês de cessar funções, o director artístico do Teatro Nacional de São Carlos comenta a próxima temporada, dominada pela ópera oitocentista italiana. E lamenta que a instituição não venha tendo a estabilidade de que precisa para atingir um trabalho “de alto nível mundial”.

Cristina FernandesCristina Fernandes 26 de Julho de 2019, 6:50

Patrick Dickie mostrou-se indisponível para continuar como director artístico do São Carlos

Após um conturbado final de temporada, marcado pela complexa crise laboral que levou ao cancelamento da última produção operática programada — La Bohème, de Puccini — e por demissões e substituições no conselho de administração do Opart, bem como pela decisão do director artístico, Patrick Dickie, de não renovar o seu contrato, o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) tenta pouco a pouco regressar à normalidade. Quem lhe sucederá no cargo é ainda uma incógnita — a ministra da Cultura, Graça Fonseca, adiantou esta quinta-feira no São Carlos que será um nome português “de prestígio” —​, mas a temporada de 2019/2020, a última concebida por Dickie, está pronta.

A programação lírica com que este inglês se despede do São Carlos inclui cinco óperas encenadas (sendo uma delas a que ficou por apresentar este ano), outra em versão de concerto (Orfeu e Eurídice, de Glück) e um “concerto encenado” no Centro Cultural de Belém (CCB) com A Valquíria, de Wagner. Na abertura, a 10 de Outubro, subirá ao palco La Forza del Destino, de Verdi, seguindo-se-lhe em Janeiro Maria Stuarda, de Donizetti, em Abril A Trilogia das Barcas, de Joly Braga Santos, assinalando os 50 anos da estreia desta criação inspirada em Gil Vicente no Festival Gulbenkian de 1970, e, encerrando a temporada, Le Comte Ory, ópera cómica de Rossini que nos últimos tempos tem despertado crescente interesse na cena lírica internacional. Quanto à temporada sinfónica, serão 12 concertos, repartidos entre o TNSC e o CCB, destacando-se a estreia mundial de uma encomenda à compositora Ana Seara, Sinfonia (Des)concertante, e a interpretação de Ruf, para orquestra e electrónica, de Emmanuel Nunes, num programa que inclui outros compositores portugueses (Pedro Moreira, Eurico Carrapatoso) ao lado de nomes canónicos como J. S. Bach, Haendel, Beethoven, Mahler, Bruckner, Richard Strauss, Britten e Debussy.

Nesta sua última entrevista ao PÚBLICO como director artístico do São Carlos, Patrick Dickie admite ter pena de não poder dar continuidade a alguns dos projectos que lançou, e lamenta não ter tido interlocutores com quem dialogar sobre a sua vontade de repensar a relação de trabalho com a instituição. E sublinha que a prioridade só pode ser uma, se a tutela quiser fazer do teatro nacional de ópera uma referência: estabilidade.

Que balanço faz da sua experiência como director artístico do São Carlos?
Foi gratificante verificar como o público e a maioria dos críticos rapidamente entenderam e apoiaram o mix entre óperas menos conhecidas e repertório lírico mais habitual (Glück, Zemlinsky e Britten ao lado dos projectos Verdi, Wagner e Puccini). Senti que tinha encontrado um público ávido e curioso que permitia e incentivava o risco. Estou grato por isso e pelo apoio do público, que regressou ao São Carlos depois de um período de ausência. As co-produções com o Coliseu do Porto [Turandot, de Puccini] e com o Teatro Nacional São João [The Rape of Lucretia, de Britten] foram pontos altos, assim como a série de obras corais sinfónicas no CCB e na Gulbenkian na Primavera de 2018. Tive grande apoio de colegas do meio cultural português. O mais difícil: trabalhar dentro de procedimentos financeiros muito restritivos que não são compatíveis com a produção operática. Também está claro agora que em determinado momento houve uma quebra de confiança entre o Opart e a tutela e que esse relacionamento se tornou ineficaz. Mas foi também um período de inovação e de ambição, que pode fornecer pistas sobre como oferecer um São Carlos mais flexível.


Está claro agora que em determinado momento houve uma quebra de confiança entre o Opart e a tutela e que esse relacionamento se tornou ineficaz

Para além dos constrangimentos financeiros, teve sempre autonomia nas suas escolhas de repertórios e elencos?
O relacionamento entre o Opart (que define o orçamento) e a direcção artística (que o gasta) é de importância crucial. A minha programação foi uma resposta aos cortes regulares nos últimos dois anos. Estes contribuíram, por outro lado, para potenciar parcerias e promover uma forma de trabalho mais colaborativa. Foi-me dada pelo Opart completa autonomia na escolha de repertórios e elencos (embora colaborássemos em questões estratégicas como as digressões das produções líricas). Obviamente, programar no São Carlos é criar oportunidades para os corpos artísticos residentes. A OSP tem uma nova comissão de trabalhadores que irá promover essa dimensão e o planeamento com o coro pode ser melhorado. No entanto, o papel do director artístico continua a ser o de fazer o seu próprio programa, levando em conta a comunidade (e os parceiros) que o teatro serve e o benefício de todos os tipos de público.

Colocou como meta as dez óperas por temporada, mas esse objectivo não se concretizou. Que outros projectos não conseguiu levar por diante?
Não sinto que o facto de não ter atingido esse número mágico seja um fracasso, pois fizemos um trabalho importante na criação de condições para que isso aconteça no futuro. As relações estabelecidas no Porto, em Almada e noutros lugares podem permitir um programa paralelo e há produções que podem ser repostas, o que aumentará o orçamento. Com o João Paulo Santos estava a planear uma série de digressões e tenho pena que não possamos prosseguir.

Comunicou à ministra a sua indisponibilidade para renovar o contrato. Era algo que já pretendia fazer ou foi uma decisão desencadeada pela recente crise?
Por razões pessoais e familiares eu já pretendia rever a minha relação de trabalho com São Carlos. No entanto, por causa dessa crise e do período anterior, não havia ninguém com quem dialogar, e então tive de tomar a decisão por conta própria.

Por razões pessoais e familiares eu já pretendia rever a minha relação de trabalho com o São Carlos. Mas, com a crise, não havia ninguém com quem dialogar e tive de tomar a decisão por conta própria
Já tem planos para o próximo ano?
Não. Vou de férias primeiro e depois decidirei.

A próxima temporada tem cinco óperas encenadas; um “concerto encenado” e uma ópera em versão de concerto, mais 12 concertos sinfónicos. Face a estes números, a orquestra e o coro não estão subaproveitados?
O coro tem capacidade para mais participações em óperas, só que o orçamento não o permite, ou para desenvolver um projeto “paralelo” se parte do coro não estiver envolvida no espectáculo principal. A orquestra está ocupada todas as semanas, mas há períodos em que poderia ser usada de maneira mais eficiente e completa. Quanto mais cedo cada temporada for planeada, mais fácil será desenvolver projectos que usem a capacidade total dos corpos artísticos residentes. Os regulamentos da orquestra e do coro também precisam de ser harmonizados.

Opart terá reforço de 606 mil euros para “refundar” a programação artística
La Bohème transita da última temporada. Se tivesse subido à cena este ano, como estava previsto, a programação de 2019/2020 teria menos uma ópera? Ou havia algum outro título previsto?
Havia um projecto duplo Tchaikovsky/Janacék planeado em vez de La Bohème. Quando a encenadora [Nicola Raab] se retirou inesperadamente por questões pessoais, decidi reprogramar a Bohème em vez de encomendar uma nova produção a curto prazo.

No caso de A Valquíria, o que se entende por “concerto encenado”? Que sentido faz este tipo de opção num teatro lírico?
A Valquíria representa um grande investimento financeiro, com o seu elenco e orquestra especializados e de grandes dimensões. Um “concerto encenado” é uma maneira mais económica de contar a história de uma forma envolvente e psicologicamente detalhada. Continua a ser uma experiência dramática rica e permite fazer digressões!

Com quatro óperas, o repertório italiano oitocentista ocupa mais de metade da programação...
La Bohème chegou tarde e em circunstâncias especiais, o que torna a temporada mais italiana do que o planeado. Mas se por um lado é uma temporada popular — Verdi, Rossini, Wagner  —, por outro inclui obras “especiais” como La Forza del Destino e Le Comte Ory. Os títulos de Verdi, Donizetti e Rossini são todos parte de séries em curso. La Forza del Destino é uma co-produção com o Teatro de Bona e a Welsh National; o Rossini é o terceiro título de uma série de fantasias e comédias em francês apresentadas nas temporadas recentes; e Donizetti o segundo da Trilogia Tudor. No caso de Wagner, dá-se continuidade à colaboração com o CCB. E o Rossini é um belo final de festa da temporada. O critério é sempre fornecer um repertório variado com algo para todos, que funcione para o público, para o nosso coro e orquestra, assim como para os nossos parceiro.

Como tomou contacto com a Trilogia das Barcas, de Joly Braga Santos?
Joana Carneiro falou-me desta peça quando entrei em funções e depois, Manuel Pedro Ferreira, do CESEM, propôs uma gravação comemorativa dos 50 anos da estreia da obra, o que proporcionou a oportunidade.

A considerável percentagem de cantores portugueses deve-se sobretudo a opções artísticas ou também à consciência da missão do São Carlos como teatro nacional?
A escolhas artísticas. Nunca conto a nacionalidade dos cantores para calcular uma percentagem! Estamos felizes por ter elencos portugueses completos ou quase completos para algumas apresentações de La Forza del Destino e La Bohème, assim como para quase todas as Valquírias. Estou ciente da responsabilidade do São Carlos como teatro nacional, mas desconfio de quotas. A Alceste [de Glück, na temporada passada] foi um bom modelo — um elenco misto, mas em grande parte português, realizando um projecto possibilitado pela relação entre Ana Quintans e Graham Vick, uma excepcional cantora portuguesa e um grande encenador internacional.

Que critérios orientaram a selecção dos encenadores?
Escolho equipas criativas e produções que acredito que funcionem bem no TNSC e que compartilhem nossos valores, o que muitas vezes significa desenvolver trabalho com os encenadores ao longo do tempo. James Bonas regressa esta temporada, assim como Arnaud Bernard [responsáveis pelas encenações de La Bohème e Le Conte Ory, respectivamente]. David Pountney [La Forza del Destino] tem um estilo visual, físico e de bravura que me atrai muito, e Andrea de Rosa [Maria Suarda] é um notável jovem encenador que trabalha com destacadas equipas criativas italianas. Gosto de encenações inteligentes, às vezes irreverentes, teatralmente vivas e que explorem todos os sentidos!

Qual o peso das opções do director artístico e da maestrina titular, Joana Carneiro, na escolha dos programas sinfónicos e dos maestros convidados? Os instrumentistas e coralistas também são consultados?
A Joana Carneiro define a linha geral da temporada sinfónica em termos de equilíbrio de repertório e actividades. O meu contributo é geralmente na escolha de maestros e solistas (embora de comum acordo e tendo em conta que a OSP dá feedback regular sobre os maestros). Procuro também que os planos funcionem bem no contexto de marketing, planeamento e orçamento. Como seria de esperar, programamos ao lado de outros colaboradores do São Carlos e do CCB. A OSP acaba de nomear uma nova comissão de trabalhadores (depois de dois anos em que esse órgão não existiu), que poderá ter um papel também na consultoria artística e de programação.

Quais deviam ser as principais apostas (da tutela, da administração e da direcção artística) no sentido de converter o TNSC numa referência nacional e internacional?
Estabilidade, obviamente. Uma visão e uma comunicação partilhadas entre a tutela, a administração e a direcção artística. Apoio político e institucional para um projecto artístico de cinco a sete anos. Actualmente, os directores artísticos permanecem três anos ou mais, se renovarem o contrato. Um projecto artístico realmente forte deveria ter garantidos cinco a sete anos e não depender dos ciclos políticos. Só assim é possível construir relações duradouras com a comunidade internacional. Com a liderança certa, o TNSC tem condições para fazer um trabalho ambicioso e de alto nível mundial. No cenário nacional, deve desenvolver modelos e coproduções flexíveis para produzir trabalhos de diferentes escalas em Almada, Porto, Braga, etc.

Um projecto artístico realmente forte deveria ter garantidos cinco a sete anos e não depender dos ciclos políticos. Só assim é possível construir relações duradouras com a comunidade internacional
O presente modelo de gestão deveria ser repensado ou substituído por outro mais eficaz?
É difícil julgar como seria um Opart eficaz porque não tenho a certeza de que este organismo alguma vez tenha sido plenamente autorizado a fazer o seu trabalho. A sua história tem sido feita de paragens e recomeços.

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