O desastre
consumado em São Carlos
A nomeação de
Elisabete Matos para a direcção artística do teatro nacional de ópera é um
disparate consumado – que inclusive poderá não beneficiar uma cantora com a sua
projecção internacional. E confirma o desastre que foi a governação socialista
da Cultura.
AUGUSTO M. SEABRA
5 de Setembro de
2019, 20:57
Num teatro de
ópera, as funções de director artístico e de intérprete – cantor/a – são
totalmente distintas.
Aos primeiros
cabe programar, e desejavelmente com a maior diversidade, tendo em conta os
meios de produção do teatro mas também um conhecimento internacional dos
cantores, maestros e encenadores que melhor podem concretizar o desenho da
programação pretendida. É igualmente importante que possuam contactos próximos
com os seus congéneres de outros teatros – e, sejamos absolutamente claros, não
existe neste momento em Portugal ninguém que reúna essas qualificações.
Um teatro de
ópera precisa de um director artístico a tempo inteiro e não tem por isso
cabimento que, mesmo abrandando a sua carreira internacional, Elisabete Matos
não esteja totalmente dedicada às funções de directora artística
Aos segundos cabe
evidentemente interpretar, de acordo com o tipo de vocalidade que desenvolveram
e o reportório em que se especializaram – porque há cantores para os mais
diferentes tipos de reportório, do barroco ao contemporâneo.
A nomeação de uma
cantora, Elisabete Matos, para directora artística do São Carlos cria uma
situação no mínimo equívoca e que certamente é nos seus pressupostos um
disparate consumado.
Sabemos bem que
Elisabete Matos tem uma carreira internacional como nenhum outro cantor português,
inclusive já tendo actuado no Scala e no Met. E agora o que vai suceder? Diz
ela que terá de “abrandar” essa carreira. Lamento, mas não basta.
Um teatro de
ópera precisa de um director artístico a tempo inteiro e não tem por isso
cabimento que, mesmo abrandando a sua carreira internacional, Elisabete Matos
não esteja totalmente dedicada às funções de directora artística – para
equívocos parecidos já bem bastou o regresso de Paolo Pinamonti como
“consultor” enquanto mantinha as suas funções de director do Teatro da
Zarzuela, em Madrid.
E não deixa de
ser também de lamentar que, com uma carreira internacional já tão consolidada,
mas que continua em ascensão, Elisabete Matos tenha agora de a “abrandar”.
Patrick Dickie:
“O São Carlos não devia depender de ciclos políticos”
Mas há mais
dúvidas: é inteiramente legítimo perguntar o que conhece ela, em termos de
intérpretes e de reportório, para além daquele em que se especializou, como
soprano dramático, isto é o reportório verdiano, verista e wagneriano.
Sobretudo é
inaceitável para um cargo desde tipo o argumento da “preferência nacional” em
que se baseou o convite endereçado pela ministra Graça Fonseca e já colhe
aplausos.
Depois de ter
tornado o Théâtre de La Monnaie, em Bruxelas, num dos mais salientes da Europa,
o belga Gérard Mortier foi o grande renovador do Festival de Salzburgo, mais
tarde dirigiu a Ópera de Paris e em seguida o Teatro Real de Madrid. O francês
Stéphane Lissner foi director artístico do Scala de Milão. Que não se venha
pois com essa lamúria de que “nós, portugueses” é que não fazemos justiça aos
“nossos valores”.
Dar oportunidades
a cantores e intérpretes portugueses é importantíssimo, certamente uma das prioridades
do teatro nacional de ópera, outra coisa, bem distinta, é a identidade de um
director artístico. E isso da “preferência nacional” em São Carlos tem uma
história de péssimos antecedentes. Limito-me a um exemplo: em 1993, num governo
de Cavaco Silva, sendo Maria José Nogueira Pinto subsecretária de Estado da
Cultura, com o pelouro das artes e espectáculos, deu-se início à constituição
da actual Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), estando indigitado para seu
director, e sendo o maestro presente nas audições dos músicos, o britânico
Martin André; quando Nogueira Pinto, pessoa de rara integridade, saiu do
governo, depois de entrar em conflito com o secretário de Estado da tutela,
Pedro Santana Lopes, este achou que o maestro da OSP não devia ser um britânico
mas um português, no caso Álvaro Cassuto.
Está pois em “boa
companhia” Graça Fonseca – logo Pedro Santana Lopes! O argumento da
“preferência nacional” que determinou a opção da ministra é profundamente
provinciano, mais do que isso pacóvio, e revela um profundo desconhecimento das
características próprias de um teatro nacional de ópera que, justamente por o
ser, se inscreve numa rede internacional de teatros congéneres.
Esta nomeação é
um disparate consumado – e receio que inclusive não beneficie uma cantora com a
projecção internacional de Elisabete Matos, que terá de renunciar a algumas
oportunidades –, mais outro neste desastre de governação socialista da Cultura.
Elisabete Matos
quer devolver ao São Carlos o seu brilho “internacional”
A soprano
portuguesa sucede a Patrick Dickie na direcção artística do Teatro Nacional de
São Carlos, anunciou esta manhã o Ministério da Cultura. Em declarações ao
PÚBLICO, diz estar convencida de poder dar “um grande contributo” para ajudar
“a ultrapassar os problemas” que o único teatro de ópera português tem
enfrentado, ainda que para isso a sua carreira lírica tenha de “abrandar”.
Sérgio C. Andrade
Sérgio C. Andrade
2 de Setembro de 2019, 11:19 actualizado a 2 de Setembro de 2019, 15:42
Elisabete Matos
acredita que é possível devolver ao Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) “o
brilho internacional” que a instituição já teve na sua história. A soprano
portuguesa será, a partir de Outubro, a nova directora artística do São Carlos,
na sequência de um convite que lhe foi endereçado pela ministra da Cultura há
já alguns meses para suceder a Patrick Dickie, que em Junho anunciou não ter
condições para se manter no cargo.
A nomeação de
Elisabete Matos para suceder a Patrick Dickie surge quatro anos após a sua
candidatura à direcção do TNSC. No concurso aberto em 2015, a cantora
apresentou-se na corrida com o programa de “tirar o São Carlos da deriva” em
que se encontrava, como então referiu ao Diário de Notícias. A tutela optou, no
entanto, pelo maestro e programador britânico que já era consultor artístico da
instituição.
No comunicado em
que, esta segunda-feira, anunciou a escolha de Elisabete Matos para o TNSC, o
Ministério da Cultura (MC) enfatiza a dimensão internacional da carreira da
cantora, lembrando que a futura directora artística do único teatro de ópera do
país actuou nos “mais importantes palcos mundiais” da música lírica.
Ao PÚBLICO,
Elisabete Matos disse acreditar que essa experiência acumulada ao longo dos
seus mais de 30 anos de carreira será preciosa para enfrentar este novo
desafio: “Creio que poderei dar um grande contributo e ajudar a ultrapassar os
problemas com que o TNSC tem vivido nos últimos tempos. Vou trabalhar
desenvolvendo sinergias com o corpo artístico do São Carlos, com a Orquestra
[Sinfónica Portuguesa], com o Coro. Tem de haver uma grande união, isto é uma
luta de todos: temos de fazer regressar o São Carlos ao nível que ele merece,
ao tempo em que foi uma referência internacional.”
Falando num
intervalo de um ensaio, na Ópera de Oviedo, em Espanha, da nova produção O
Crepúsculo dos Deuses – uma encenação de Carlos Wagner com direcção musical de
Christoph Gedschold que tem estreia agendada já para o próximo dia 10 –, a
soprano portuguesa acrescentou que vai enfrentar o seu novo desafio à frente do
TNSC “com os pés bem assentes na terra”, consciente de que se trata de um
trabalho que tem de ser desenvolvido “com inteligência e com a participação de
todos, para enaltecer o São Carlos”.
A futura
responsável pela direcção do teatro nacional de ópera não quis pronunciar-se
sobre o mandato de Dickie, que anunciou a sua saída do São Carlos no auge de um
período de intensa turbulência desencadeado por um braço-de-ferro entre os
trabalhadores e o MC.
Sobre a temporada
2019/20 que o programador britânico já deixou desenhada, Elisabete Matos diz
não ter ainda a informação suficiente. “Conheço os nomes, há alguns títulos
apelativos, mas vou ter de analisar o programa e recolher mais informação sobre
as produções para eventualmente ajustar algumas coisas”, acrescenta, realçando
que a sua assinatura só surgirá verdadeiramente na temporada seguinte. Mas o
seu programa será trabalhar prioritariamente “com o corpo artístico do TNSC e
com os artistas portugueses, que não têm tido acesso aos papéis mais notórios”,
nota, não esquecendo naturalmente os artistas internacionais. “É preciso tirar
o melhor partido do que temos, e depois desenhar uma temporada que seja
aliciante para o público; nós vivemos para o público, mas sem esquecer a parte
educativa, que é também a missão de um teatro nacional; temos de fazê-lo com
consciência e equilíbrio”, acrescentou.
Questionada sobre
o objectivo das dez óperas por temporada que Patrick Dickie fixou no início do
seu mandato, Elisabete Matos recusa avançar metas. “Isso seria óptimo, mas o
que é certo é que [Patrick Dickie] esteve no São Carlos quatro anos e não
conseguiu lá chegar. Eu não vou colocar números até ter toda a informação nas
mãos e até contactar o Opart e a tutela. Mas vamos fazer muito mais do que se
tem feito até agora”, assegura.
Aplauso e
expectativa
Três milhões de
euros para o São Carlos que não pacificam os trabalhadores (nem salvam a ópera
que ficou por estrear)
A escolha de
Elisabete Matos para a direcção do TNSC foi bem recebida pelo pianista e
professor Nuno Vieira de Almeida e pelo maestro e compositor Pedro Amaral. “Só
peca por tardia; já devia ter ocupado este cargo há muito”, exclama o primeiro,
realçando a carreira internacional da cantora, e o facto de se ter optado,
desta vez, por uma artista portuguesa – “Somos o único país da Europa onde isso
parece que não conta, ao contrário do que acontece noutros lados, onde dão
primazia aos seus artistas”, diz o pianista.
“Elisabete Matos
conhece muito bem o mundo da música, conhece o reportório, está farta de cantar
nas principais casas de ópera de todo o mundo”, acrescenta ainda Nuno Vieira de
Almeida, que desvaloriza a sua falta de experiência enquanto programadora – “O
Claudio Abbado também não tinha experiência quando foi escolhido para director
musical do La Scala de Milão!”…
Pedro Amaral
aplaude também esta escolha, que não o surpreende: “Artista notável no domínio
da ópera, com ampla projecção internacional, [Elisabete Matos] tem um
conhecimento profundo e privilegiado do meio operático. Saberá escolher equipas
artísticas, combinar elencos, decidir repertórios”, diz, em email enviado ao
PÚBLICO, o maestro da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que acredita, de
resto, que Elisabete Matos, “tendo desenvolvido parte da sua carreira em
Espanha”, está em boas condições de estabelecer “pontes ‘ibéricas’ entre Lisboa
e as grandes casas de ópera da península, o que pode revelar-se um importante
trunfo, tendo em conta a dimensão internacional inerente à programação
operática”.
O maestro destaca
ainda o “importante papel pedagógico” que a soprano tem vindo a desempenhar na
formação de jovens cantores em Portugal, ao longo dos últimos anos, antecipando
“que talvez venhamos a assistir a uma renovação geracional em São Carlos, dando
a conhecer ao público novos talentos, no domínio vocal”. E termina o seu
depoimento desejando que esta “artista inteligente e profissional muito
determinada consiga obter as condições necessárias ao desempenho de um cargo
certamente apaixonante mas de grande exigência”: “Pessoalmente, desejo-lhe a
melhor energia – porque o talento já o tem!”
Na expectativa
mostra-se a cantora Ana Quintans, cuja carreira não se cruzou ainda com
Elisabete Matos. “Naturalmente que conheço o seu percurso artístico muito
distinto, a sua qualidade artística como intérprete”, diz a soprano que em
Janeiro encarnou uma muito celebrada Alceste no São Carlos, ressalvando, no
entanto, que “a direcção artística de um teatro de ópera é outra coisa”.
Satisfeita pelo facto de a escolha ter recaído “numa mulher, numa portuguesa e
numa intérprete”, Quintans mostra-se sobretudo “expectante” relativamente
àquilo que Elisabete Matos vai conseguir fazer no São Carlos.
De Guimarães para
Espanha e para o mundo
Natural de Caldas
das Taipas, concelho de Guimarães, Elisabete Matos é provavelmente a mais
bem-sucedida cantora lírica portuguesa, tendo actuado em destacados palcos
mundiais como a Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, e a Washington Opera,
nos Estados Unidos, a Deutsche Oper de Berlim, na Alemanha, o Teatro alla Scala
de Milão e o Teatro La Fenice de Veneza, ambos em Itália, e o Teatro Real de
Madrid.
Após estudos de
canto e violino no Conservatório de Música de Braga, completou a sua formação
em Espanha com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. A nota biográfica
disponibilizada pelo MC recorda que a soprano foi dirigida por grandes
maestros, entre os quais Lorin Maazel, James Conlon, Riccardo Muti, Zubin Metha,
Valery Gergiev, Daniel Oren, Daniel Baremboim e Bruno Bartoletti, e que
acompanhou solistas como Plácido Domingo, José Carreras, Mariella Devia, Leo
Nucci, Renato Bruson, Eva Marton, entre outros.
Em 2000, foi
galardoada com um Grammy pela gravação do papel titular de La Dolores, de
Bretón, com Plácido Domingo, para a Decca. No São Carlos, foi recentemente uma
aplaudida Isolda no Tristão e Isolda de Wagner, com encenação de Charles
Edwards, papel que se encaixa numa fase da sua carreira particularmente
centrada na “apropriação das personagens wagnerianas”, como então notava a
crítica do PÚBLICO Cristina Fernandes. É de resto uma nova personagem de Wagner
que está agora a preparar na Ópera de Oviedo: a Brunilde de O Crepúsculo dos
Deuses.
Embora o seu
contrato com o São Carlos contemple a acumulação das funções que ali
desempenhará com outras solicitações, Elisabete Matos admite que,
“naturalmente”, a sua carreira como soprano terá de “abrandar": “Iremos
analisar cada convite e cada situação em concreto. Continuarei a trabalhar, mas
quero sobretudo estar no TNSC, quero ser uma directora presente.”
Actualmente,
Elisabete Matos é professora-adjunta convidada na Escola Superior de Artes
Aplicadas, em Castelo Branco, desde 2014 e, desde 2017, directora artística do
Festival Internacional de Música Religiosa de Guimarães.
Questões laborais
em suspenso
Com a nomeação de
Elisabete Matos, parece concluído o processo de restruturação do Organismo de
Produção Artística (Opart), responsável pela gestão do TNSC e da Companhia
Nacional de Bailado. A 2 de Julho, o ex-chefe de gabinete de Mário Centeno,
André Moz Caldas, foi nomeado presidente do conselho de administração do Opart,
em substituição de Carlos Vargas, então já demissionário. Semanas depois, a
ministra da Cultura e André Moz Caldas anunciavam, na apresentação pública da
próxima temporada do São Carlos, a renovação do mandato de Joana Carneiro como
maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa e um reforço orçamental de
606 mil euros para que o Opart pudesse “refundar” a sua programação artística.
Graça Fonseca adiantou na altura que a figura que viria suceder a Patrick
Dickie já estava escolhida e que seria um nome português “de prestígio”.
O nome em causa,
soube-se agora, é Elisabete Matos, que, no entanto, vai chegar ao São Carlos
numa altura em que as questões laborais e a instabilidade que marcaram o início
do Verão não estão de todo resolvidas. Em Julho, e após a entrada em funções da
nova administração do Opart, os trabalhadores decidiram suspender a greve
iniciada no mês anterior que levou ao cancelamento de várias produções,
incluindo a ópera La Bohème (entretanto reprogramada para 2020). Mas sobre a
mesa mantêm-se as reivindicações que estiveram na base de um conflito laboral
que se arrastou durante vários meses.
Já no São Carlos,
a situação de instabilidade é bastante anterior ao início deste “Verão quente” no
Opart. Entre 2013 e 2016, o teatro nacional de ópera viveu sem director
artístico, tendo a programação ficado a cargo de consultores como o italiano
Paolo Pinamonti (2013-2014) e o próprio Patrick Dickie (2014-2016). O último
director artístico do São Carlos antes deste britânico que cessou as suas
funções a 31 de Agosto fora Martin André, cujo mandato terminou em 31 de Julho
de 2013. com Inês Nadais
Patrick Dickie:
“O São Carlos não devia depender de ciclos políticos”
A pouco mais de
um mês de cessar funções, o director artístico do Teatro Nacional de São Carlos
comenta a próxima temporada, dominada pela ópera oitocentista italiana. E
lamenta que a instituição não venha tendo a estabilidade de que precisa para
atingir um trabalho “de alto nível mundial”.
Cristina
FernandesCristina Fernandes 26 de Julho de 2019, 6:50
Patrick Dickie
mostrou-se indisponível para continuar como director artístico do São Carlos
Após um
conturbado final de temporada, marcado pela complexa crise laboral que levou ao
cancelamento da última produção operática programada — La Bohème, de Puccini —
e por demissões e substituições no conselho de administração do Opart, bem como
pela decisão do director artístico, Patrick Dickie, de não renovar o seu contrato,
o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) tenta pouco a pouco regressar à
normalidade. Quem lhe sucederá no cargo é ainda uma incógnita — a ministra da
Cultura, Graça Fonseca, adiantou esta quinta-feira no São Carlos que será um
nome português “de prestígio” —, mas a temporada de 2019/2020, a última
concebida por Dickie, está pronta.
A programação
lírica com que este inglês se despede do São Carlos inclui cinco óperas
encenadas (sendo uma delas a que ficou por apresentar este ano), outra em
versão de concerto (Orfeu e Eurídice, de Glück) e um “concerto encenado” no
Centro Cultural de Belém (CCB) com A Valquíria, de Wagner. Na abertura, a 10 de
Outubro, subirá ao palco La Forza del Destino, de Verdi, seguindo-se-lhe em
Janeiro Maria Stuarda, de Donizetti, em Abril A Trilogia das Barcas, de Joly
Braga Santos, assinalando os 50 anos da estreia desta criação inspirada em Gil
Vicente no Festival Gulbenkian de 1970, e, encerrando a temporada, Le Comte
Ory, ópera cómica de Rossini que nos últimos tempos tem despertado crescente
interesse na cena lírica internacional. Quanto à temporada sinfónica, serão 12
concertos, repartidos entre o TNSC e o CCB, destacando-se a estreia mundial de
uma encomenda à compositora Ana Seara, Sinfonia (Des)concertante, e a
interpretação de Ruf, para orquestra e electrónica, de Emmanuel Nunes, num
programa que inclui outros compositores portugueses (Pedro Moreira, Eurico
Carrapatoso) ao lado de nomes canónicos como J. S. Bach, Haendel, Beethoven,
Mahler, Bruckner, Richard Strauss, Britten e Debussy.
Nesta sua última
entrevista ao PÚBLICO como director artístico do São Carlos, Patrick Dickie
admite ter pena de não poder dar continuidade a alguns dos projectos que
lançou, e lamenta não ter tido interlocutores com quem dialogar sobre a sua
vontade de repensar a relação de trabalho com a instituição. E sublinha que a
prioridade só pode ser uma, se a tutela quiser fazer do teatro nacional de
ópera uma referência: estabilidade.
Que balanço faz
da sua experiência como director artístico do São Carlos?
Foi gratificante
verificar como o público e a maioria dos críticos rapidamente entenderam e
apoiaram o mix entre óperas menos conhecidas e repertório lírico mais habitual
(Glück, Zemlinsky e Britten ao lado dos projectos Verdi, Wagner e Puccini).
Senti que tinha encontrado um público ávido e curioso que permitia e
incentivava o risco. Estou grato por isso e pelo apoio do público, que
regressou ao São Carlos depois de um período de ausência. As co-produções com o
Coliseu do Porto [Turandot, de Puccini] e com o Teatro Nacional São João [The
Rape of Lucretia, de Britten] foram pontos altos, assim como a série de obras
corais sinfónicas no CCB e na Gulbenkian na Primavera de 2018. Tive grande
apoio de colegas do meio cultural português. O mais difícil: trabalhar dentro
de procedimentos financeiros muito restritivos que não são compatíveis com a
produção operática. Também está claro agora que em determinado momento houve
uma quebra de confiança entre o Opart e a tutela e que esse relacionamento se
tornou ineficaz. Mas foi também um período de inovação e de ambição, que pode
fornecer pistas sobre como oferecer um São Carlos mais flexível.
Está claro agora
que em determinado momento houve uma quebra de confiança entre o Opart e a
tutela e que esse relacionamento se tornou ineficaz
Para além dos
constrangimentos financeiros, teve sempre autonomia nas suas escolhas de
repertórios e elencos?
O relacionamento
entre o Opart (que define o orçamento) e a direcção artística (que o gasta) é
de importância crucial. A minha programação foi uma resposta aos cortes
regulares nos últimos dois anos. Estes contribuíram, por outro lado, para
potenciar parcerias e promover uma forma de trabalho mais colaborativa. Foi-me
dada pelo Opart completa autonomia na escolha de repertórios e elencos (embora
colaborássemos em questões estratégicas como as digressões das produções
líricas). Obviamente, programar no São Carlos é criar oportunidades para os
corpos artísticos residentes. A OSP tem uma nova comissão de trabalhadores que
irá promover essa dimensão e o planeamento com o coro pode ser melhorado. No
entanto, o papel do director artístico continua a ser o de fazer o seu próprio
programa, levando em conta a comunidade (e os parceiros) que o teatro serve e o
benefício de todos os tipos de público.
Colocou como meta
as dez óperas por temporada, mas esse objectivo não se concretizou. Que outros
projectos não conseguiu levar por diante?
Não sinto que o
facto de não ter atingido esse número mágico seja um fracasso, pois fizemos um
trabalho importante na criação de condições para que isso aconteça no futuro.
As relações estabelecidas no Porto, em Almada e noutros lugares podem permitir
um programa paralelo e há produções que podem ser repostas, o que aumentará o
orçamento. Com o João Paulo Santos estava a planear uma série de digressões e
tenho pena que não possamos prosseguir.
Comunicou à
ministra a sua indisponibilidade para renovar o contrato. Era algo que já
pretendia fazer ou foi uma decisão desencadeada pela recente crise?
Por razões
pessoais e familiares eu já pretendia rever a minha relação de trabalho com São
Carlos. No entanto, por causa dessa crise e do período anterior, não havia
ninguém com quem dialogar, e então tive de tomar a decisão por conta própria.
Por razões
pessoais e familiares eu já pretendia rever a minha relação de trabalho com o
São Carlos. Mas, com a crise, não havia ninguém com quem dialogar e tive de
tomar a decisão por conta própria
Já tem planos
para o próximo ano?
Não. Vou de férias
primeiro e depois decidirei.
A próxima
temporada tem cinco óperas encenadas; um “concerto encenado” e uma ópera em
versão de concerto, mais 12 concertos sinfónicos. Face a estes números, a
orquestra e o coro não estão subaproveitados?
O coro tem capacidade
para mais participações em óperas, só que o orçamento não o permite, ou para
desenvolver um projeto “paralelo” se parte do coro não estiver envolvida no
espectáculo principal. A orquestra está ocupada todas as semanas, mas há
períodos em que poderia ser usada de maneira mais eficiente e completa. Quanto
mais cedo cada temporada for planeada, mais fácil será desenvolver projectos
que usem a capacidade total dos corpos artísticos residentes. Os regulamentos
da orquestra e do coro também precisam de ser harmonizados.
Opart terá
reforço de 606 mil euros para “refundar” a programação artística
La Bohème
transita da última temporada. Se tivesse subido à cena este ano, como estava
previsto, a programação de 2019/2020 teria menos uma ópera? Ou havia algum
outro título previsto?
Havia um projecto
duplo Tchaikovsky/Janacék planeado em vez de La Bohème. Quando a encenadora
[Nicola Raab] se retirou inesperadamente por questões pessoais, decidi
reprogramar a Bohème em vez de encomendar uma nova produção a curto prazo.
No caso de A
Valquíria, o que se entende por “concerto encenado”? Que sentido faz este tipo
de opção num teatro lírico?
A Valquíria
representa um grande investimento financeiro, com o seu elenco e orquestra
especializados e de grandes dimensões. Um “concerto encenado” é uma maneira
mais económica de contar a história de uma forma envolvente e psicologicamente
detalhada. Continua a ser uma experiência dramática rica e permite fazer
digressões!
Com quatro
óperas, o repertório italiano oitocentista ocupa mais de metade da
programação...
La Bohème chegou
tarde e em circunstâncias especiais, o que torna a temporada mais italiana do
que o planeado. Mas se por um lado é uma temporada popular — Verdi, Rossini,
Wagner —, por outro inclui obras
“especiais” como La Forza del Destino e Le Comte Ory. Os títulos de Verdi,
Donizetti e Rossini são todos parte de séries em curso. La Forza del Destino é
uma co-produção com o Teatro de Bona e a Welsh National; o Rossini é o terceiro
título de uma série de fantasias e comédias em francês apresentadas nas
temporadas recentes; e Donizetti o segundo da Trilogia Tudor. No caso de
Wagner, dá-se continuidade à colaboração com o CCB. E o Rossini é um belo final
de festa da temporada. O critério é sempre fornecer um repertório variado com
algo para todos, que funcione para o público, para o nosso coro e orquestra,
assim como para os nossos parceiro.
Como tomou
contacto com a Trilogia das Barcas, de Joly Braga Santos?
Joana Carneiro
falou-me desta peça quando entrei em funções e depois, Manuel Pedro Ferreira,
do CESEM, propôs uma gravação comemorativa dos 50 anos da estreia da obra, o
que proporcionou a oportunidade.
A considerável
percentagem de cantores portugueses deve-se sobretudo a opções artísticas ou
também à consciência da missão do São Carlos como teatro nacional?
A escolhas
artísticas. Nunca conto a nacionalidade dos cantores para calcular uma
percentagem! Estamos felizes por ter elencos portugueses completos ou quase
completos para algumas apresentações de La Forza del Destino e La Bohème, assim
como para quase todas as Valquírias. Estou ciente da responsabilidade do São
Carlos como teatro nacional, mas desconfio de quotas. A Alceste [de Glück, na
temporada passada] foi um bom modelo — um elenco misto, mas em grande parte
português, realizando um projecto possibilitado pela relação entre Ana Quintans
e Graham Vick, uma excepcional cantora portuguesa e um grande encenador
internacional.
Que critérios
orientaram a selecção dos encenadores?
Escolho equipas
criativas e produções que acredito que funcionem bem no TNSC e que compartilhem
nossos valores, o que muitas vezes significa desenvolver trabalho com os
encenadores ao longo do tempo. James Bonas regressa esta temporada, assim como
Arnaud Bernard [responsáveis pelas encenações de La Bohème e Le Conte Ory,
respectivamente]. David Pountney [La Forza del Destino] tem um estilo visual,
físico e de bravura que me atrai muito, e Andrea de Rosa [Maria Suarda] é um
notável jovem encenador que trabalha com destacadas equipas criativas
italianas. Gosto de encenações inteligentes, às vezes irreverentes,
teatralmente vivas e que explorem todos os sentidos!
Qual o peso das
opções do director artístico e da maestrina titular, Joana Carneiro, na escolha
dos programas sinfónicos e dos maestros convidados? Os instrumentistas e
coralistas também são consultados?
A Joana Carneiro
define a linha geral da temporada sinfónica em termos de equilíbrio de
repertório e actividades. O meu contributo é geralmente na escolha de maestros
e solistas (embora de comum acordo e tendo em conta que a OSP dá feedback
regular sobre os maestros). Procuro também que os planos funcionem bem no
contexto de marketing, planeamento e orçamento. Como seria de esperar,
programamos ao lado de outros colaboradores do São Carlos e do CCB. A OSP acaba
de nomear uma nova comissão de trabalhadores (depois de dois anos em que esse
órgão não existiu), que poderá ter um papel também na consultoria artística e
de programação.
Quais deviam ser
as principais apostas (da tutela, da administração e da direcção artística) no
sentido de converter o TNSC numa referência nacional e internacional?
Estabilidade,
obviamente. Uma visão e uma comunicação partilhadas entre a tutela, a administração
e a direcção artística. Apoio político e institucional para um projecto
artístico de cinco a sete anos. Actualmente, os directores artísticos
permanecem três anos ou mais, se renovarem o contrato. Um projecto artístico
realmente forte deveria ter garantidos cinco a sete anos e não depender dos
ciclos políticos. Só assim é possível construir relações duradouras com a
comunidade internacional. Com a liderança certa, o TNSC tem condições para
fazer um trabalho ambicioso e de alto nível mundial. No cenário nacional, deve
desenvolver modelos e coproduções flexíveis para produzir trabalhos de
diferentes escalas em Almada, Porto, Braga, etc.
Um projecto
artístico realmente forte deveria ter garantidos cinco a sete anos e não
depender dos ciclos políticos. Só assim é possível construir relações
duradouras com a comunidade internacional
O presente modelo
de gestão deveria ser repensado ou substituído por outro mais eficaz?
É difícil julgar
como seria um Opart eficaz porque não tenho a certeza de que este organismo
alguma vez tenha sido plenamente autorizado a fazer o seu trabalho. A sua
história tem sido feita de paragens e recomeços.
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