EDITORIAL
ELEIÇÕES EUA 2020
Uma bela notícia para o mundo
O que estava em causa era antes uma oposição entre a
verdade e a mentira, entre a democracia e a autocracia.
7 de Novembro de
2020, 18:16
https://www.publico.pt/2020/11/07/mundo/editorial/bela-noticia-mundo-1938333
As ténues dúvidas
dos últimos dias dissiparam-se com o anúncio dos resultados na Pensilvânia, e
ao princípio da tarde deste sábado chegou finalmente a hora de celebrar: Joe
Biden ganhou as presidenciais nos Estados Unidos. Por muito que Donald Trump
conteste os resultados nas redes sociais, nas ruas ou nos tribunais, a vontade
soberana dos americanos acabará por se impor e os Estados Unidos e o mundo
ver-se-ão livres de um Presidente ególatra, mentiroso, sectário e sem qualquer
dignidade para liderar a maior potência mundial. A derrota de Donald Trump é
uma bela notícia para o mundo.
A imprensa
portuguesa, e em concreto o PÚBLICO, não tem por hábito endossar o seu apoio a
candidatos nem celebrar vitórias eleitorais. A congratulação com a vitória de
Joe Biden justifica-se porque em causa não estava uma disputa política na
estrita esfera das regras democráticas. O que se decidia não era uma clássica
oposição entre valores de esquerda e de direita, entre conservadores e
progressistas, entre proteccionistas e livre-cambistas, entre defensores de um
papel central do Estado e os que preferem um governo baseado na
responsabilidade individual.
O que estava em
causa era antes uma oposição entre a verdade e a mentira, entre a democracia e
a autocracia, entre a apologia dos direitos humanos e a sua corrupção, uma
disputa entre cooperação multilateral e a extinção da ordem global das últimas
décadas. Trump revelou do princípio até ao fim um desdém absoluto por esse
código de valores.
Tornou-se o rosto
de um modelo de governação sustentado na guerra racial, na recusa de encarar
ameaças como o aquecimento global, no desdém pela ciência e pela razão, na
instituição da falsidade e da manipulação dos factos como instrumento de
preservação do poder. A sua reeleição significaria a provável ruína da
democracia liberal na América e, por contágio, no Ocidente.
A sua derrota é,
por isso, um bálsamo para todos os que acreditam que a democracia é o menos mau
de todos os regimes. E um estímulo para os que a cultivam como um código de
valores e compromissos que não dispensa a decência, o exemplo, a razão, a
verdade ou o prazer com a diferença.
Com Trump fora de
cena, chega a hora de encarar o futuro. Que, reconheçamos, implica desafios. E
mudanças. Mais do que um criador, Trump é uma criatura de uma democracia
flagelada pela pandemia, pela desigualdade, pela vaga de ódio racial ou por um
modelo de globalização que exige afinações. A tarefa é enorme para Joe Biden.
Sem Trump no horizonte, sobra, ao menos, a esperança de que as feridas abertas
por este homem sinistro podem ser curadas.
A Direcção Editorial
Teresa de Sousa
OPINIÃO ELEIÇÕES
EUA 2020
Please, Mr. President, make America normal again!
Joe Biden recebe uma América com um somatório tremendo de
crises, que fazem parecer fáceis os desafios de outros Presidentes que também
enfrentaram tempos difíceis. A sua tarefa será hercúlea
7 de Novembro de
2020, 18:35
1. Compreende-se
a dificuldade em tirar conclusões dos resultados eleitorais das eleições mais
“anormais” da história da América de que nos conseguimos lembrar. Foi preciso
esperar demasiado tempo para avaliar com rigor a dimensão e o significado da
vitória de Joe Biden. Também nós (quase) nos esquecemos dos votos por
correspondências e por antecipação, mesmo sabendo que eles teriam uma
importância decisiva na contagem final. A ansiedade levou a melhor. Hoje,
finalmente, já é tempo para serenar.
A primeira
tentação a que alguns cederam foi a de atribuir culpas a Joe Biden pela
incerteza inicial e pela ausência de uma “onda azul” que pintasse o mapa
americano com grandes e rápidas pincelas. Demasiado velho, demasiado moderado,
sem carisma, sem mensagem, sem brilho. Houve mesmo quem defendesse que um outro
candidato mais jovem, mais dinâmico e mais radical teria feito muito melhor.
Olhando para os resultados não é difícil de entender que esta análise é, no
mínimo, precipitada. Primeiro, Joe Biden cumpriu rigorosamente a sua missão
mobilizadora: nunca um candidato arrecadou tantos votos como ele. Ponto final.
Segundo, venceu algumas batalhas fundamentais em estados fundamentais. Já lá
vamos, à Florida.
Terceiro, no
computo final, teve um resultado indiscutível no Colégio Eleitoral. Quarto,
nunca perdeu a calma e a serenidade. Disse sempre e apenas o fundamental, na
resposta à fúria destemperada do seu adversário. Contribuiu de forma notável
para não exacerbar os ânimos nas ruas. Deixou que Donald Trump se fosse
queimando no seu próprio fogo. Não houve uma “onda azul” como a “onda vermelha”
que elegeu Reagan em 1979? Pois não. Só a antecipou quem não tenha querido
compreender o que significam os votos em Trump, para além das características
únicas da própria criatura.
2. Vai ser ainda
mais difícil a Biden pôr de pé uma agenda que faça o que é preciso em quase todas
as frentes da política interna norte-americana. Os desafios são imensos e as
condições políticas não são as melhores, com um Senado cuja futura maioria
ainda se desconhece (é preciso esperar por dois senadores na Geórgia) mas que
pode manter-se republicana. Nada disso deve empalidecer o significado da
vitória pessoal de Biden – num último combate para o qual as suas
características pessoais e políticas o prepararam, talvez como mais nenhum
outro dos potenciais candidatos. E uma delas mais do que todas as outras.
“Ironicamente,
entre o vasto campo de potenciais candidatos democratas, Biden era, de muito
longe, o mais bem preparado para trabalhar com os republicanos – precisamente
aquela qualidade que ninguém achava relevante”, escreve William Galston da
Brookings Institution. “Era ele o único a apontar o bipartidarismo como uma
virtude”. E isto leva-nos directamente a outra questão fundamental destas
eleições e do seu resultado. Não é com extremismo que se combate o extremismo.
Só pode ser com moderação. Alguém de boa fé acredita que um candidato democrata
mais radical no estilo e na mensagem teria roubado votos a Donald Trump? A
melhor resposta está nos próprios votos de Donald Trump.
Os eleitores de
Trump não são aqueles que vemos nas manifestações de apoio ao actual
Presidente. São gente tão normal como a maioria dos eleitores democratas, com a
qual nos podemos cruzar na rua e ter uma conversa civilizada, antes de darmos
conta de que votou em Trump em 2016 e que pode ter votado nele outra vez. Não há
certamente 70 milhões de gente “deplorável” ou estúpida na América. Mas há,
certamente, muitos milhões de eleitores que fazem as contas às suas vidas,
colocando nos pratos da balança a sua situação económica, o seu estatuto
social, as suas aspirações, o que consideram ser um sistema de saúde justo e
responsável, que não acham boa ideia “tirar fundos” à policia, que se ofendem
com a moda do “politicamente correcto” ou que não percebem por que razão a
história do seu país, da qual se orgulham, é agora vilipendiada ou as estátuas
da sua cidade são derrubadas. E que valorizam mais ou menos cada um destes
argumentos antes de decidir o seu voto.
A primeira vitória
de Trump foi contra as elites de Washington, contra a globalização que destruía
os seus empregos, contra a perda de estatuto social dos trabalhadores brancos
de vidas confortáveis, que passaram a temer o futuro. “A persistência do apoio
a Trump sugere que a rejeição dos imigrantes, das elites urbanas e da
globalização, que ganharam importância crescente depois da crise financeira de
2008-09, ainda têm muita influência”, escreve a Economist. Na Europa,
assistimos exactamente à mesma tendência numa maioria de países. Com a vantagem
de um sistema partidário que não se reduz a dois partidos e que tem, por isso,
mais algumas válvulas de escape para exprimir o descontentamento. Salvini já
ganhou eleições em Itália. Le Pen esteve quase a ganhá-las. A AfD é o primeiro
partido da oposição no Bundestag. “Não houve uma vaga gigante, mas a vitória de
Biden, se se confirmar, é histórica, porque resistiu às tendências globais
contra os políticos do sistema com ideias moderadas” escreveu a Economist.
“Infligirá um revés ao populismo moderno.”
3. Não se vencem
eleições sem falar também para estas pessoas. Biden falou para muitas delas,
libertando-se do espartilho das políticas identitárias e da obsessão pelas
minorias, que dominam a ala esquerda do seu partido. E que falharam
redondamente nestas eleições.
Por que razão
Trump aumentou o voto latino de 2016 e teve mais votos entre os homens
afro-americanos do que seria previsível? Uma das razões, comum às duas
“minorias”, é a melhoria das respectivas condições económicas. Uma segunda
também é fácil de entender. Para os imigrantes de origem cubana ou venezuelana
ou nicaraguense, “socialismo” simboliza quase tudo aquilo de que fugiram. Como
escreveu Fareed Zakaria, “deve ter sido uma grande desilusão, num ano em que os
democratas abraçaram completamente o multiculturalismo e o movimento Black
Lives Matter, que Trump tenha ganho uma fatia mais larga do voto minoritário
que qualquer outro republicano desde os anos 1960”.
Além das razões
económicas, Zakaria acrescenta a sua interpretação inspirada nos seus próprios
sentimentos face à ideologia democrata do multiculturalismo: “Reduz uma enorme
variedade de grupos étnicos, raciais e religiosos a uma ‘minoria’ monolítica e
trata-a como se fosse toda igual”. “Os democratas deviam lembrar-se que, para
muitas minorias, a nossa maior aspiração é apenas sermos americanos normais –
tratados nem pior nem melhor do que os outros.”
4. Joe Biden
recebe uma América com um somatório tremendo de crises, que fazem parecer
fáceis os desafios de outros Presidentes que também enfrentaram tempos
difíceis. A sua tarefa será hercúlea. Mas a verdade primeira destas eleições é
que na Casa Branca estará um politico normal que tornará imediatamente o ar
mais respirável em Washington, na América no mundo. Com vontade genuína de
contribuir para reduzir as divisões entre duas Américas que hoje parecem
incompatíveis. Disposto a ouvir as pessoas e a preocupar-se com elas. Que
compreende que é preciso separar Trump de uma esmagadora maioria dos que
votaram nele. Com uma experiência enorme em negociar legislação aparentemente
inegociável. “Joe Biden, só por ser ele e não Donald Trump, pode fazer uma
diferença monumental”, escreve ainda Roger Cohen. É o único democrata que pode
ir buscar republicanos para integrar a sua administração. “A magia de Joe Biden
está em que tudo aquilo que ele faz se transforma numa coisa razoável”,
escreveu alguém no Washington Post. “Como Presidente, seja o que for que fizer,
conseguirá arrastar o centro atrás de si.”
4. Não precisamos
de recuar muitos anos para reencontrar o lado solar da América e a sua força
intrínseca. Basta ouvir o discurso de derrota de John McCain, em Novembro de
2008, ou rever as imagens da cerimónia em que George W. recebe Obama na Casa
Branca para lhe passar o testemunho. Essa América não desapareceu. Biden
cresceu e viveu nessa América. A democracia funcionou em pleno durante as
eleições. Daqui a dois anos, haverá novas eleições para o Congresso.


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