domingo, 29 de novembro de 2020

Biden é uma oportunidade para a Europa – incluindo para a sua própria coesão

 



OPINIÃO

Biden é uma oportunidade para a Europa – incluindo para a sua própria coesão

 

Não é só a América que tem de pôr a casa em ordem. A Europa tem de fazer o mesmo, talvez em condições ainda mais difíceis.

 

TERESA DE SOUSA

29 de Novembro de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/11/29/opiniao/opiniao/biden-oportunidade-europa-incluindo-propria-coesao-1941056

 

1. Só por si, a eleição de Joe Biden veio desanuviar o ambiente pesado que reinava sobre a velha relação transatlântica, sob a qual foi construída a ordem liberal do pós-guerra. Durante os últimos quatro anos, de respiração suspensa, temendo o pior, a Europa foi convivendo com Donald Trump, tentando manter as aparências de uma relação que sabe que está na base da sua integração, prosperidade e segurança. O “pesadelo estratégico” passou. Ou, pelo menos, a sua versão mais assustadora. Há agora que reparar os danos e criar as condições para renovar a aliança, não com o regresso a um passado que não volta mais, mas procurando adaptá-la a uma realidade internacional que, entretanto, sofreu transformações tectónicas que pouco têm que ver com o actual ocupante da Casa Branca. O mundo vive hoje sob o efeito da afirmação crescente e agressiva da China, do poder crescente das tecnologias e de uma nova e poderosa vaga de autoritarismo que desafia as democracias liberais. Tudo agravado ao extremo por uma pandemia global que destrói as economias e põe a humanidade à prova.

 

2. E a primeira coisa a fazer é, como Charles Kupchan resumiu numa pequena frase, “começar por pôr a casa em ordem”. Dos dois lados do Atlântico. O investigador do Council on Foreign Relations de Washington falava num oportuno seminário organizado pelo Instituto de Defesa Nacional, em conjunto com o IPRI e a FLAD, sobre o futuro das relações transatlânticas, em tempo de pandemia e em tempo de recessão democrática. Kupchan lembrou que o populismo autoritário do Presidente cessante não desapareceu com a sua derrota. Trump deixa como legado um Partido Republicano que abandonou, em boa parte, o conservadorismo liberal que o definiu ao longo de décadas, para abraçar uma versão mais ou menos radical de populismo. Joe Biden tem dois desafios internos gigantescos pela frente: vencer a pandemia e recuperar a economia dos seus efeitos mais devastadores. Até agora, a sua moderação e bom senso têm feito milagres. Formou uma equipa de governo em que predomina o centrismo e a competência. No Departamento de Estado estará um veterano da política externa, Antony Blinken, que cresceu em França, conhece a Europa e representa a tradição atlantista de Washington. Jake Sullivan, o novo conselheiro nacional de Segurança, é uma das mentes mais brilhantes da comunidade das relações internacionais dos Estados Unidos. Tal não significa que Biden tencione regressar a um passado que já não existe ou limitar-se a replicar a Administração que serviu como vice-presidente. Mas não sobra qualquer dúvida de que a nova Administração voltará a valorizar a NATO e a União Europeia como dois elementos fundamentais da liderança americana no mundo. A única diferença é que o mundo não é o mesmo e a Europa também não.

 

3. Não é só a América que tem de pôr a casa em ordem. A Europa tem de fazer o mesmo, talvez em condições ainda mais difíceis. Enfrenta a mesma pandemia e a mesma brutal crise económica e social. As suas democracias liberais vêem-se desafiadas pelas mesmas forças populistas e autoritárias que Trump representou. Está rodeada de instabilidade e de conflitos por quase todos os lados — o que não acontece com o país-continente do outro lado do Atlântico. Debate-se internamente para encontrar uma base comum para os gigantescos e inadiáveis desafios que o mundo lhe coloca. Estava a recompor-se penosamente do triplo choque que sofreu durante a última década — a crise financeira de 2008, a eleição de Trump e o referendo britânico —, quando foi confrontada com a crise pandémica. A eleição de Joe Biden pode ser um catalisador da resposta a alguns dos seus dilemas mais urgentes e mais essenciais, ou, pelo contrário, pode vir a expor ainda mais as suas divisões, hesitações e, sobretudo, as suas ilusões.

 

Charles Kupchan também disse no mesmo seminário que “a Europa tinha de colocar alguma coisa em cima da mesa”, para provar aos Estados Unidos que a renovação da aliança transatlântica continua a ser indispensável e, portanto, vantajosa para ambos os lados. E esclarecer entre si algumas ambiguidades que, sendo uma forma pragmática de disfarçar as suas divisões, acabam por paralisá-la. Para uma maioria de países europeus, incluindo Portugal, a NATO continua a ser o principal garante da segurança europeia, passados 30 anos sobre o fim da Guerra Fria. A ideia de uma capacidade militar europeia autónoma não é concebível fora do âmbito da Aliança, mesmo que seja necessária, se os europeus, seguindo o conselho de Kupchan, quiserem pôr alguma loiça de boa qualidade em cima da mesa. Não foi Trump quem inventou a meta de 2% para os orçamentos de defesa dos aliados. Essa meta foi fixada em 2014, numa cimeira da NATO presidida por Obama. Trump limitou-se a transformá-la numa ameaça, que até os países mais relutantes, como a Alemanha, compreenderam. Desde Bill Clinton que os EUA pedem à Europa um esforço, se não para partilhar o “fardo” da segurança global, pelo menos o da sua própria segurança. Desde Obama, com o pivot da política externa americana do Atlântico para o Pacífico, que essa necessidade de reequilíbrio se tornou ainda mais relevante. Desde a anexação da Crimeia, em 2014, que a NATO voltou a ter de lidar com uma ameaça real na sua fronteira leste. A saída dos britânicos não ajuda a esta partilha mais equitativa, mesmo que o Reino Unido continua a ser um membro da NATO — aliás, a sua segunda força militar depois dos EUA, incluindo a sua frota de submarinos nucleares que está ao serviço da aliança, ao contrário da force de frappe nuclear francesa. Nos últimos anos, os europeus deram alguns passos institucionais e políticos para dar alguma consistência à dimensão de cooperação militar. Há já uma verba pequena (10 mil milhões de euros) no novo orçamento plurianual para financiar projectos de investigação no domínio da defesa que envolvem vários países. Mas estão ainda a léguas de distância de poder garantir a sua própria segurança sem os EUA ou de conseguir agir de forma efectiva na resolução de conflitos na sua própria região. A Rússia ou a Turquia ganham cada vez mais influência militar nas suas fronteiras, da Síria à Líbia, passando pelo Nagorno-Karabakh, sem que a Europa consiga sequer reagir. É esta a realidade. Não vale a pena querer pintá-la com belas palavras e manifestações de intenção.

 

4. Obviamente, a China ocupará o centro do novo relacionamento entre as duas margens do Atlântico em todos os domínios, incluindo o da segurança. E aqui a Europa não tem muito tempo a perder para tentar vencer as suas manifestas divergências de interesses e de visões. O comércio, sobretudo na Alemanha, e o investimento chinês, sobretudo nas economias mais frágeis das periferias, continuam a sobrepor-se a uma visão estratégica do que representa a nova ambição da China à hegemonia mundial. A tentação da “terceira via” para evitar um mundo de novo reduzido à bipolaridade é manifesta. Pode ter algum mérito, desde que assente numa opção absolutamente clara sobre o lugar da Europa neste confronto.

 

Augusto Santos Silva lembrou, nesse mesmo seminário, que a declaração conjunta da última cimeira da NATO, em 2019, continha pela primeira vez uma referência à China, considerando o seu “comportamento geopolítico” como um “novo facto” da ordem internacional. A cimeira lançou um “processo reflexão”, sob a direcção do secretário-geral, que deverá estar concluído no próximo ano. Por outras palavras, a NATO ainda está a reflectir sobre como se deverá adaptar a um dos mais exigentes desafios estratégicos que o Ocidente tem pela frente — a ascensão nada pacífica da China à escala global, para além do regresso de uma Rússia igualmente revisionista e igualmente agressiva.

 

Os Estados Unidos de Biden vão, certamente, querer mais do que isso. Mas, se o novo Presidente americano conseguir funcionar como um “facilitador” da unidade europeia — como os EUA foram nos primeiros anos do pós-guerra e da própria integração —, talvez a Europa consiga ultrapassar as suas fraquezas, as suas rivalidades internas, as suas ilusões. Talvez seja esta a grande oportunidade — para a relação transatlântica, mas, sobretudo, para a própria União Europeia.

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