sábado, 7 de novembro de 2020

Consequências das eleições americanas

 



ANÁLISE ELEIÇÕES EUA 2016

Consequências das eleições americanas

 

Falhou a grande “vaga azul” com que os democratas contavam para consolidar o seu poder. Trump perde as eleições, mas o trumpismo resiste.

 

JORGE ALMEIDA FERNANDES

7 de Novembro de 2020, 6:00

https://www.publico.pt/2020/11/07/mundo/analise/consequencias-eleicoes-americanas-1938285

 

Se Joe Biden confirmar a sua (inexorável) vitória, herdará um país fracturado. Sem maioria no Senado, baixam as expectativas: não poderá pôr em marcha o essencial do seu programa e terá dificuldade em responder ao complexo das crises americanas: a pandemia, a recessão económica e a desconfiança nas instituições. Os republicanos parecem tentados a sabotar o novo governo desde o primeiro dia. A nova maioria conservadora do Supremo Tribunal poderá funcionar como suplementar fonte de bloqueio das reformas programadas.

 

O intento de reunificar a América, eixo do programa de Biden, será anulado pela guerrilha que se anuncia para os próximos dias e meses. Falhou a imaginária “vaga azul” que consolidaria a nova Administração e abriria um novo período de hegemonia democrata. Desfez-se a ilusão de “enterro” do trumpismo.

 

A derrota de Trump terá um longo impacto internacional. É uma má notícia para populistas e políticos autoritários que proliferam em todos os continentes. Disse alguém que a grande novidade não é tanto o que Biden fará, mas aquilo que “a América será”. É aqui que reside o significado global destas eleições.

 

Na terça-feira à noite, a imagem da América era deplorável. Donald Trump deslegitimava as eleições, denunciava a “fraude” em curso e proclamava-se antecipadamente reeleito. Da Europa à Ásia, da África à América Latina, o mundo assistia perplexo ao espectáculo de degradação da democracia americana. Os Estados Unidos, através do seu Presidente, davam uma imagem digna de um “Estado falhado”.

 

Na véspera do voto, o analista canadiano Jonathan Kay escrevia na Foreign Policy: “O que os canadianos sentem de facto sobre os Estados Unidos já não é propriamente medo. É qualquer coisa próxima da piedade, como a crença de que os americanos podem ser arrastados para uma espécie de calamidade sócio-política, não importa quem vença a eleição.”

 

Na quarta-feira, mudava a imagem. O sistema eleitoral funcionava exemplarmente. Em plena pandemia, a América registava a maior afluência às urnas em 120 anos, 67% do corpo eleitoral, 160 milhões de cidadãos. O vencedor da eleição presidencial seria decidido pelos eleitores e não por tribunais. Os americanos seguiam com ansiedade a imprevisível flutuação da contagem dos votos. Poderá, sim, haver recontagem nos estados em que a diferença entre os candidatos seja inferior a um por cento.

 

Donald Trump não reconhece a iminente derrota, mas isso não altera os factos. Abrirá, provavelmente, um período de grande tensão. Nas 11 semanas de transição, não se prevê que coopere minimamente com a equipa de Joe Biden. Não se sabe até onde irá a sua imaginação.

 

O trumpismo resiste

Cerca de 70 milhões de eleitores votaram em Trump ­- 48% do eleitorado. Note-se que as eleições de 2020 não são as de 2016. As raízes do populismo serão essencialmente as mesmas. Mas há uma diferença: em 2020, os americanos têm quatro anos de experiência de Trump. Se o reelegessem, seria sinal de que os Estados Unidos teriam mudado mais do que pensávamos e que mais quatro anos de Trump tornariam a América ainda mais irreconhecível.

 

 

Mas a moeda tem outra face. “Os democratas americanos necessitavam de um completo repúdio de Trump, o que não aconteceu”, escreve no Financial Times o colunista Janan Ganesh. “Depois de um choque económico e na saúde pública, após um cansativo drama de quatro anos, após o impeachment, os americanos não rejeitaram categoricamente Trump e o trumpismo.” Para muitos, é chocante a impunidade política de Trump perante a sua responsabilidade nos 220 mil mortos da pandemia ou perante o seu desprezo pelos valores tradicionais americanos.

 

Gostem ou não, Trump tornou-se no líder indiscutido do Partido Republicano, que remodelou à sua imagem. Uma pequena parte da elite republicana prognosticava “um banho de sangue” nas suas fileiras no Senado. Não aconteceu. Pelo contrário, o Presidente terá sido a “bóia de salvação” dos candidatos republicanos. Por isso poderá sobreviver à derrota. Nada indica que se resigne a sair de cena.

 

 “Trump não será o último populista americano”, escrevia na quinta-feira na Foreign Affairs o economista Daron Acemoglu, autor do célebre Por que as Nações Fracassam. Permanecem as condições que o produziram. “O populismo de direita não emergiu nos Estados Unidos graças ao tresloucado carisma de Trump. (…) Está estreitamente ligado a tendências económicas e políticas que afectam grande parte do mundo. Trump e o trumpismo são fenómenos americanos, mas o contexto em que cresceram é inegavelmente global.”

 

A verdade é que Trump transformou a “coligação de descontentamentos” com que venceu em 2016 numa nova e coesa força política, que representa metade da América. É esta “surpresa” que os liberais deverão estudar nos próximos tempos.

 

O fenómeno pode ser equacionado de outra forma. Escrevia há dois dias a revista The Atlantic: “Somos dois países e nenhum deles vai ser conquistado nem vai desaparecer tão cedo. O resultado das eleições de 2016 não foi um acidente histórico nem resultado de subversão estrangeira, mas um agudo reflexo do eleitorado americano.” Hoje, “dezenas de milhões de americanos amam mais o MAGA [Make America Great Again] do que amam a democracia.”

 

Biden e as expectativas

Os Estados Unidos terão de novo um Presidente que respeita as leis constitucionais e as liberdades. E um líder que aprecia o valor das alianças. A sua margem de manobra no plano internacional é muito mais larga do que no plano doméstico. E a sua sorte decide-se em casa. Terá de mostrar um enorme talento político para sobreviver na nova “selva” política, navegando entre uma oposição republicana que pode escolher uma política de “terra queimada” e uma aguerrida e frustrada ala esquerda democrata.

 

Ao contrário de Barack Obama, Biden não suscita desmedidas expectativas, o que pode ser um trunfo. Fazem-se diagnósticos pessimistas: a ameaça de caos pode provocar um desastre nos mercados financeiros. O temos do caos pode, no entanto, ser outra arma a favor de Biden.

 

Um derradeiro factor é a forma como Donald Trump reage à derrota. Na noite de quinta-feira, perante a sucessão de más notícias eleitorais, voltou a proclamar vitória. É um mau prenúncio. Pode ser uma fanfarronice ou a simples atracção pelo abismo. Ao armar-se em fautor de caos, estará a tecer uma armadilha que lhe pode ser politicamente fatal.

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