domingo, 8 de novembro de 2020

Biden retomou o fio condutor

 



ANÁLISE ELEIÇÕES EUA 2020

Biden retomou o fio condutor

 

TERESA DE SOUSA

8 de Novembro de 2020, 17:51

https://www.publico.pt/2020/11/08/mundo/analise/biden-retomou-fio-condutor-1938403

 

1.Quando Joe Biden acabou o seu primeiro discurso como Presidente-eleito, talvez o primeiro sentimento tenha sido o de uma continuidade retomada. Foi um discurso como os discursos de quase todos os seus antecessores de que temos ainda memória. Com a mesma evocação de um país que nunca deixa de acreditar em si e que se vê a si próprio como excepcional. Com a mesma promessa de esperança. Com o mesmo apelo à união e à reconciliação. Tocando em todas e em cada uma das cordas sensíveis que fazem da América a América, um país ao mesmo tempo único e universal. Para o qual o resto do mundo olha através de uma profusão de olhares que têm em comum uma irresistível atracção.

 

Começou pela Constituição fundadora. “We, the people”.  Terminou com os versos do hino tantas vezes entoado nas cerimónias em que a nação presta tributo aos seus heróis caídos, reafirma a sua religiosidade, se reconcilia consigo própria. Invocou o discurso inaugural de Lincoln em Março de 1861, na véspera da guerra civil: “Não podemos ser inimigos. Os acordes místicos da memória vão voltar a vibrar, tocados pelos melhores anjos da nossa natureza”. “Ponhamos fim a esta era sombria de diabolização – que ela acabe aqui e agora.” Idealista, sem ignorar as profundas feridas sociais e políticas que promete começar a “sarar”. Conciliador, estendendo a mão aos 70 milhões de americanos que votaram em Donald Trump. Humilde, lembrando a enorme dívida que tem para com o eleitorado afro-americano que lhe garantiu a vitória das “primárias”, na Carolina do Sul, e lhe ofereceu a vitória na Georgia, na lenta contagem dos votos. Verdadeiro, não escondendo as profundas divisões que dilaceram hoje o seu país e a extrema polarização política que recebe por herança. “A recusa de democratas e republicanos cooperarem uns com os outros não se deve a uma força misteriosa independente da nossa vontade. É apenas uma decisão. Uma escolha.” Unificador, quando repetiu a frase que pôs os americanos a olhar para um jovem senador negro ainda desconhecido a quem coube fazer o elogio de John Kerry, o candidato presidencial escolhido na convenção do Partido Democrata, em 2004, para enfrentar George W Bush: “Não há estados azuis e estados vermelhos, há apenas os Estados Unidos da América”. Obama nunca mais deixou de estar sob os holofotes. Biden serviu-o oito anos como vice-presidente.  O seu discurso pode não ter a magia inspiradora de Obama ou a inteligência electrizante de Clinton. Teve exactamente as palavras certas para pôr fim a uma época que foi das mais conturbadas da história recente da América, e retomar o fio da meada. Com ideias tão simples que se tornam evidências. O Financial Times diz que foi o seu primeiro discurso “bipartidário”. Não houve uma palavra de crítica ou de acrimónia em relação ao ainda Presidente, fechado no seu castelo a negar o resultado das eleições. Disse apenas que compreendia aqueles que votaram em Trump. “Entendo a vossa decepção esta noite. Eu próprio já perdi algumas vezes, mas agora é tempo de darmos uma oportunidade uns aos outros”. O Monde chamou-lhe o “pacificador-em-chefe”.

 

2.Conquistar as pessoas comuns será, provavelmente, uma tarefa fácil se comparada com as batalhas que o aguardam no Congresso, no caso de o Senado acabar por pender para o lado dos republicanos. A sua mão estendida pode deparar-se com um punho que continuará cerrado, como aconteceu durante o segundo mandato de Obama. Os republicanos também vão ter de fazer algumas contas. Os 70 milhões que votaram em Trump, foi nele que votaram no em primeiro lugar – num líder populista e radical, de características irrepetíveis, que construiu o seu mandato sobre a divisão intransponível entre “nós e eles”, que nunca passou a barreira dos 50 por cento de aprovação que praticamente todos os Presidentes antes dele conseguiram, pelo menos em momentos particulares dos seus mandatos, unindo o país em torno de um objectivo comum ou em resposta a uma adversidade. O que fará Trump dos seus votos, ainda ninguém sabe. O que fizer poderá condicionar o comportamento dos republicanos no Congresso. Ou não.

 

Seja como for, o primeiro discurso do Presidente-eleito foi o golpe de misericórdia na sua presidência. Biden virou a página. Foi isso que a América viu. Foi o que uma boa parte do mundo saudou. Já não há regresso possível. Biden fê-lo com força, determinação, cordialidade, bom senso. Sem um pingo de sobranceria ou de ajuste de contas. “Let us be the nation we know we can be.” Nada mais simples, nada mais verdadeiro.

 

3.Coube a Kamala Harris, antes dele, lembrar algumas lições fundamentais que ficaram do tempo de Trump. A primeira das quais que a democracia não nos é dada de uma vez só e para sempre. “Queria com isto dizer que a democracia americana não está garantida, é tão forte quanto a nossa vontade de lutar por ela.” “E quando a nossa própria democracia estava em perigo nesta eleição (…), com o mundo a olhar para nós, vocês asseguraram um novo dia para a América.”

 

O seu discurso foi também o de quem finalmente quebrou o tecto de vidro que até agora impedia uma mulher de chegar à vice-presidência. O facto de ser filha de imigrantes e de não ser branca dá-lhe uma dimensão particular. Retoma um duplo fio condutor: de Obama e de Hillary. As mulheres foram decisivas para a vitória de Biden – incluindo as que pertencem à classe média branca relativamente próspera e educada dos subúrbios, que ajudaram à eleição de Trump em 2016.

 

A América talvez tenha regressado finalmente à sua tradicional normalidade. Que é sempre excepcional.

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