quarta-feira, 4 de novembro de 2020

As eleições numa democracia doente // É isto um presidente americano?

 



EDITORIAL ELEIÇÕES EUA 2020

As eleições numa democracia doente


Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.

 

MANUEL CARVALHO

4 de Novembro de 2020, 21:46

https://www.publico.pt/2020/11/04/mundo/editorial/eleicoes-democracia-doente-1937999

 

A democracia na América está doente e, sabia-se, o remédio convencional das eleições jamais seria suficiente para a recuperar. Num corpo político e social com fracturas intransponíveis, sem espaço de diálogo e de compromisso, a braços com uma crise crescente de confiança nas instituições, com uma parte da população fixada na ideia de que a democracia é apenas um artifício dos políticos para lhe roubar o direito à cidade, é difícil afirmar valores morais, princípios republicanos, ideias de soberania ou de legitimidade baseadas na vontade popular.

 

A América elegeu Donald Trump com a sensação difusa de que a democracia liberal se tornara uma farsa e voltou a entregar-lhe mais de 67 milhões de votos por acreditar que essa farsa continua. Uma vitória de Joe Biden permite acreditar numa convalescença longa e penosa; a reeleição de Trump confirmará talvez a sua agonia.

 

Se os americanos elegeram em 2016 um fanfarrão demagogo e impreparado, era possível suspeitar que o fizeram por desconforto, por raiva ou, simplesmente, por protesto contra a sua adversária. Mas se tantos americanos insistiram em Trump em 2020, depois de anos de erros, de mentiras, de logros, de falsas promessas, de perturbações e ameaças, de cumplicidade com a guerra racial ou cultural, de falta de transparência em questões cruciais como os impostos, é porque a democracia se tornou uma moeda de escasso valor facial.

 

Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.

 

A responsabilidade do problema não é, como tantos dizem, da imprensa liberal, que fez o seu dever de expor mentiras, o nepotismo ou a crendice no combate à pandemia. Nem das divergências de um país de extremos, apesar das feridas abertas do racismo.

 

Na procura de uma resposta para a doença da democracia, o efeito Trump pode então ter uma utilidade – a de demonstrar que não há democracia na desigualdade extrema. Quando as classes trabalhadoras dos subúrbios empobrecem, quando 1% dos americanos controla 40% da riqueza nacional, a tolerância acaba, a revolta cresce e a democracia degrada-se.

 

É neste pântano social e político que nascem fenómenos como o de Trump. Ele, está provado, não tem soluções para o problema (até o agrava via política fiscal). Mas, ao continuar a ser capaz de captar a indignação e o descontentamento, prova que as democracias adoecem quando deixam de se preocupar com as pessoas. Mesmo que perca, a força de Trump está aí como um aviso. Deixou de ser possível vê-lo como um acidente.

 


OPINIÃO ELEIÇÕES EUA 2020

É isto um presidente americano?

 

Trump atacou o coração da democracia americana, desrespeitou o direito elementar ao voto e mostrou a quem tivesse dúvidas que, se acaso tivesse oportunidade para isso, ele seria, sem o menor sobressalto, um autocrata do tipo Putin ou Erdogan.

 

JOÃO MIGUEL TAVARES

5 de Novembro de 2020, 1:00

https://www.publico.pt/2020/11/05/opiniao/opiniao/presidente-americano-1937997

 

Há dois dias escrevi um texto a dizer que terça-feira seria o último dia de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América. Parece que me enganei por um dia ou dois, porque a vitória de Joe Biden está a demorar mais do que se previa, e a contagem arrastou-se mais do que o esperado. Mas o mais importante nesse texto não era a previsão do vencedor, mas sim a minha afirmação de que estas eleições se resumiam ao confronto entre um candidato decente e um candidato indecente, e que o desaparecimento de Trump da Casa Branca representaria também o desaparecimento de uma certa indecência especialmente corrosiva, que tem vindo a danificar os pilares da democracia americana.

 

Como prenda de despedida, e cereja em cima do bolo autocrático que Trump anda há quatro anos a cozer com a sua retórica incendiária, o ainda presidente fez o favor de oferecer mais uma manifestação das suas pulsões antidemocráticas, com uma agravante: essas pulsões foram desta vez atiradas à cara dos cidadãos americanos em plena noite das eleições, e representam um ataque frontal e nunca visto a todo o sistema eleitoral dos Estados Unidos da América, ainda por cima num ano de extraordinária mobilização.

 

Quando as más notícias para os republicanos começaram a surgir na noite de terça-feira, Trump foi logo a correr para o Twitter declarar que a eleição lhe estava a ser roubada, e depois montou uma conferência de imprensa na Casa Branca para declarar que iria recorrer ao Supremo para eliminar os votos que não fossem contados durante o dia das eleições: “Estávamos a preparar-nos para uma grande celebração. Estamos a vencer em todo lado e de repente parou tudo. Isto é fraude para com o povo americano. É uma vergonha para o nosso país.” Sendo que, ao mesmo tempo que Trump exigia a paragem da contagem de votos no Wisconsin, Michigan e Pensilvânia (onde estava a ganhar), exigia que a contagem continuasse no Arizona e no Nevada (onde estava a perder).

 

Em bom rigor, interessam-me pouco as contradições de Trump, a sua relação tortuosa com a verdade ou a forma desbocada como diz tudo o que lhe vem à cabeça. Essas características fazem dele um candidato inapresentável, o que é uma pena para os republicanos, mas apenas isso – viver em democracia significa ter de aturar as opiniões de pessoas com as quais não concordamos e aceitar a representação de gente com convicções repugnantes. Há quem por vezes se esqueça disso.

 

 Coisa inteiramente diferente é fazer o que Trump fez: não se tratou de insultar gente, aliviar-se de frases cavernícolas ou apresentar propostas abjectas, como é seu triste hábito. Tratou-se, sim, de atacar o coração da democracia americana, de desrespeitar o direito elementar ao voto e de mostrar a quem tivesse dúvidas que, se acaso Donald Trump tivesse oportunidade para isso, ele seria, sem o menor sobressalto, um autocrata do tipo Putin ou Erdogan. Para Trump, a democracia é um manifesto incómodo, à qual ele tem tristemente de se submeter por ter nascido nos Estados Unidos da América.

 

Quando, no meu artigo, contrapus o decente ao indecente, muita gente acusou-me de aderir à retórica-anti-Trump, e de – claro – ser um escravo mental da esquerda. É uma declinação da velha doutrina, eternamente popular, do “he may be a son of a bitch, but he’s our son of a bitch”. Lamento muito: não entendo que se possa apoiar a subversão da democracia em nome do combate ideológico. A indecência tem os seus limites, e Donald Trump é um deles.

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