quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Anne Applebaum: “Uma derrota de Trump vai enfraquecer” os populistas na Europa

 



ENTREVISTA ELEIÇÕES EUA 2020

Anne Applebaum: “Uma derrota de Trump vai enfraquecer” os populistas na Europa

 

A autora de O Crepúsculo da Democracia já esperava que Donald Trump não aceitasse o desfecho do processo eleitoral. Se for Presidente, Biden precisa de apostar na resolução de problemas “concretos”, mais do que em políticas de identidade, defende.

 

Pedro Rios

Pedro Rios 5 de Novembro de 2020, 20:32

https://www.publico.pt/2020/11/05/mundo/entrevista/anne-applebaum-derrota-trump-vai-enfraquecer-populistas-europa-1938113

 

Escreveu O Crepúsculo da Democracia, editado este ano, para alertar sobre como o autoritarismo seduziu as elites de direita, enfraquecendo o conservadorismo democrático. A jornalista norte-americana Anne Applebaum, que já venceu um prémio Pulitzer, tornou-se uma das vozes críticas de Trump, que, diz, passou quatro anos a atacar às instituições americanas. Volta a fazê-lo agora ao insistir que há fraude nas eleições. “Ele só pode sobreviver na política se as pessoas pensarem que não há regras e que nada importa”, diz a partir da sua casa na Polónia.

 

Trump está a fazer acusações infundadas sobre a seriedade das eleições. Fala em fraude, pede recontagens e suspensões de contagens, avança com processos judiciais. Estava à espera disto?

Totalmente. Trump tornou-se Presidente alimentando uma teoria da conspiração, a de que Obama nasceu no Quénia e que, por isso, era um Presidente ilegítimo. Durante toda a sua vida pública tentou obter e ganhar o poder minando a fé das pessoas nas instituições democráticas. Ele só pode sobreviver na política se as pessoas pensarem que não há regras e que nada importa.

 

Ele anda há meses a dizer-nos que não vai respeitar os resultados desta eleição. Há meses! O cenário exacto que está a acontecer foi cuidadosamente planeado. Nos três estados no Midwest com contagens tardias, onde houve uma grande participação eleitoral, Michigan, Wisconsin e especialmente a Pensilvânia, foram feitos todo o tipo de esforços para impedir os comités eleitorais de contar os votos com antecedência. Quiseram que o processo demorasse muito tempo porque quanto mais se arrastasse mais Trump poderia usar esta retórica de “é falso”, “precisamos de parar a contagem”. Penso que eles achavam que iam ganhar, na verdade, mas, no caso de perderem, iam tentar roubar as eleições de formas diferentes. E disseram-nos que o iam fazer durante meses – meses e meses.

 

É o corolário de um mandato inteiro a minar as instituições, como escreve no livro?

Tivemos discussões sobre contagens no passado, como no caso célebre da contagem na Florida, em 2000. É um país muito grande, cada estado tem as suas leis eleitorais e são muito complicadas. Alguns estados, como a Georgia, têm muitos condados e cada condado tem regras diferentes. É um sistema complicado, o que de alguma forma é bom porque faz com que seja muito mais difícil tentar fraudes porque há tantas regras diferentes. Al Gore, quando perdeu o caso sobre a recontagem na Florida no Supremo, admitiu a derrota, não tentou liderar um movimento de protesto, não disse que as eleições eram falsas. Aceitou o resultado e avançou.

 

E Trump vai acabar por o fazer?

Não acredito. É do seu interesse, político e talvez até financeiro, agir – para sempre, na verdade – como se houvesse fraude eleitoral. Desta forma, pode criar uma onda e angariar dinheiro. É um novo esquema vigarista para ele. Mesmo que Biden vença claramente (e há algumas razões para que isso aconteça), Trump nunca vai admitir a derrota. Será do seu interesse continuar a fingir que foi tudo uma fraude.

 

Uma vitória não esmagadora de Biden fragiliza-o na tarefa de curar as feridas e fazer pontes num país muito dividido?

É preciso ter cuidado quando se diz que não foi uma vitória esmagadora, é preciso esperar. Mas a premissa da sua pergunta está correcta: há uma parte grande do país que apoiou Trump e o seu assalto à democracia e que vai continuar a existir como força política importante com a qual vamos ter de lidar. A questão é o que acontece agora no Partido Republicano: há “trumpismo” sem Trump? Pode alguém fazer a mesma mistura de políticas, mentiras e entretenimento televisivo depois dele, como o seu filho, ou vamos ter uma figura do tipo senatorial, como [o secretario de Estado] Mike Pompeo, que nos tente dar as políticas de Trump sem o seu mau comportamento?

 

Há aqui uma lição importante para os europeus relacionada com o isolacionismo de Trump: a sua antipatia pela Europa. Apesar de as sondagens dizerem que os americanos apoiam a aliança da América com a Europa, tal não foi suficiente para votarem contra ele por causa disso. Espero que os europeus aprendam a lição e percebam que têm de ter alguns elementos da sua segurança separados dos EUA.

 

Trump alimentou, inspirou e validou muitos líderes de extrema-direita na Europa. Uma derrota de Trump pode prejudicar esta espécie de internacional populista?

Absolutamente, é muito importante. Eles vêem-no como um validador, mas também o imitam o seu estilo, querem fazer o mesmo que ele. Estou na Polónia neste momento e esta manhã foi patente um desconforto do governo. O governo polaco alienou-se do resto da Europa, firmou com Trump a sua principal aliança no mundo. Uma derrota de Trump vai ter um impacto político, vai enfraquecê-los, tal como no passado [o seu triunfo] os ajudou. Penso que vai fazer uma grande diferença, que terá consequências noutros movimentos de franja na Europa. Uma Presidência dos EUA centrista vai fazer com que pareçam mais extremos e fora do normal. Joe Biden não é, de todo, um extremista de esquerda, é um político muito de centro.

 

Em Outubro, o líder do Partido Popular espanhol, Pablo Casado, rejeitou o “ódio” do Vox e distanciou-se da extrema-direita. Os partidos de centro-direita devem fazer o mesmo?

A melhor solução para o centro-direita é, se tal for possível, incorporar os eleitores de extrema-direita nos seus partidos. O melhor que pode acontecer é o centro-direita representar um espectro alargado da opinião de direita, mas que esteja fundamentalmente ancorada na democracia e não tenha estas tendências populistas autoritárias. O que queremos é um centro-direita forte que sirva essa função.

 

Biden precisa de fazer o mesmo à esquerda? Escreve no livro que a direita populista também cresce por oposição à esquerda radical ou que se foca sobretudo em políticas de identidade. É preciso que Biden agregue a esquerda?

Sim. Não sei o que vai acontecer com Biden. Ele vem de outra geração, não sei até que ponto ele entende esse mundo. Mas sim, idealmente o que ele devia fazer é pôr todo o seu partido e toda a esquerda a aplicarem a sua energia em problemas reais, concretos, da vida real, problemas que as pessoas podem resolver. Por exemplo: cuidados de saúde, construir mais estradas ou pontes. Quanto mais tempo político Biden investir nesses assuntos e quanto menos tempo as pessoas gastarem a discutir racismo, supremacia branca e políticas de identidade, melhor é para o país e para a esquerda. Isto não equivale a dizer que não existe racismo.

 

Paradoxalmente, as soluções para o problema do racismo podem não envolver estar sempre a falar dele, mas sim conseguir mais oportunidades económicas para pessoas que tradicionalmente ficam de fora e dar-lhes uma voz maior em projectos reais. Honestamente, não sei como Biden vai lidar com essa parte do partido. Sei que não é a parte de que ele vem, ele é de uma geração mais velha.

 

Biden pode fazer a ponte entre o Partido Democrata clássico e este lado mais activista?

Talvez. Ele é um político muito popular entre os americanos negros, é muito empático, fala facilmente com as pessoas.

 

Ele vivia no Delaware, que fica a umas horas de Washington de comboio. Ele não queria mudar os filhos para Washington. Por isso, ia de comboio todos os dias [para o Senado] e interagia muito com as pessoas, os maquinistas e funcionários conheciam-no. Ele vem de uma família operária. Isso faz parte do seu apelo eleitoral e foi usado na campanha.

 

tp.ocilbup@soir.ordep

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