ENTREVISTA
ELEIÇÕES EUA 2020
Anne Applebaum: “Uma derrota de Trump vai enfraquecer” os
populistas na Europa
A autora de O Crepúsculo da Democracia já esperava que
Donald Trump não aceitasse o desfecho do processo eleitoral. Se for Presidente,
Biden precisa de apostar na resolução de problemas “concretos”, mais do que em
políticas de identidade, defende.
Pedro Rios
Pedro Rios 5 de
Novembro de 2020, 20:32
Escreveu O
Crepúsculo da Democracia, editado este ano, para alertar sobre como o
autoritarismo seduziu as elites de direita, enfraquecendo o conservadorismo
democrático. A jornalista norte-americana Anne Applebaum, que já venceu um
prémio Pulitzer, tornou-se uma das vozes críticas de Trump, que, diz, passou
quatro anos a atacar às instituições americanas. Volta a fazê-lo agora ao insistir
que há fraude nas eleições. “Ele só pode sobreviver na política se as pessoas
pensarem que não há regras e que nada importa”, diz a partir da sua casa na
Polónia.
Trump está a
fazer acusações infundadas sobre a seriedade das eleições. Fala em fraude, pede
recontagens e suspensões de contagens, avança com processos judiciais. Estava à
espera disto?
Totalmente. Trump
tornou-se Presidente alimentando uma teoria da conspiração, a de que Obama
nasceu no Quénia e que, por isso, era um Presidente ilegítimo. Durante toda a
sua vida pública tentou obter e ganhar o poder minando a fé das pessoas nas
instituições democráticas. Ele só pode sobreviver na política se as pessoas pensarem
que não há regras e que nada importa.
Ele anda há meses
a dizer-nos que não vai respeitar os resultados desta eleição. Há meses! O
cenário exacto que está a acontecer foi cuidadosamente planeado. Nos três
estados no Midwest com contagens tardias, onde houve uma grande participação
eleitoral, Michigan, Wisconsin e especialmente a Pensilvânia, foram feitos todo
o tipo de esforços para impedir os comités eleitorais de contar os votos com
antecedência. Quiseram que o processo demorasse muito tempo porque quanto mais
se arrastasse mais Trump poderia usar esta retórica de “é falso”, “precisamos
de parar a contagem”. Penso que eles achavam que iam ganhar, na verdade, mas,
no caso de perderem, iam tentar roubar as eleições de formas diferentes. E
disseram-nos que o iam fazer durante meses – meses e meses.
É o corolário de
um mandato inteiro a minar as instituições, como escreve no livro?
Tivemos
discussões sobre contagens no passado, como no caso célebre da contagem na
Florida, em 2000. É um país muito grande, cada estado tem as suas leis
eleitorais e são muito complicadas. Alguns estados, como a Georgia, têm muitos
condados e cada condado tem regras diferentes. É um sistema complicado, o que
de alguma forma é bom porque faz com que seja muito mais difícil tentar fraudes
porque há tantas regras diferentes. Al Gore, quando perdeu o caso sobre a
recontagem na Florida no Supremo, admitiu a derrota, não tentou liderar um
movimento de protesto, não disse que as eleições eram falsas. Aceitou o
resultado e avançou.
E Trump vai
acabar por o fazer?
Não acredito. É
do seu interesse, político e talvez até financeiro, agir – para sempre, na
verdade – como se houvesse fraude eleitoral. Desta forma, pode criar uma onda e
angariar dinheiro. É um novo esquema vigarista para ele. Mesmo que Biden vença
claramente (e há algumas razões para que isso aconteça), Trump nunca vai
admitir a derrota. Será do seu interesse continuar a fingir que foi tudo uma
fraude.
Uma vitória não
esmagadora de Biden fragiliza-o na tarefa de curar as feridas e fazer pontes
num país muito dividido?
É preciso ter
cuidado quando se diz que não foi uma vitória esmagadora, é preciso esperar.
Mas a premissa da sua pergunta está correcta: há uma parte grande do país que
apoiou Trump e o seu assalto à democracia e que vai continuar a existir como
força política importante com a qual vamos ter de lidar. A questão é o que
acontece agora no Partido Republicano: há “trumpismo” sem Trump? Pode alguém
fazer a mesma mistura de políticas, mentiras e entretenimento televisivo depois
dele, como o seu filho, ou vamos ter uma figura do tipo senatorial, como [o secretario
de Estado] Mike Pompeo, que nos tente dar as políticas de Trump sem o seu mau
comportamento?
Há aqui uma lição
importante para os europeus relacionada com o isolacionismo de Trump: a sua
antipatia pela Europa. Apesar de as sondagens dizerem que os americanos apoiam
a aliança da América com a Europa, tal não foi suficiente para votarem contra
ele por causa disso. Espero que os europeus aprendam a lição e percebam que têm
de ter alguns elementos da sua segurança separados dos EUA.
Trump alimentou,
inspirou e validou muitos líderes de extrema-direita na Europa. Uma derrota de
Trump pode prejudicar esta espécie de internacional populista?
Absolutamente, é
muito importante. Eles vêem-no como um validador, mas também o imitam o seu
estilo, querem fazer o mesmo que ele. Estou na Polónia neste momento e esta
manhã foi patente um desconforto do governo. O governo polaco alienou-se do
resto da Europa, firmou com Trump a sua principal aliança no mundo. Uma derrota
de Trump vai ter um impacto político, vai enfraquecê-los, tal como no passado
[o seu triunfo] os ajudou. Penso que vai fazer uma grande diferença, que terá
consequências noutros movimentos de franja na Europa. Uma Presidência dos EUA
centrista vai fazer com que pareçam mais extremos e fora do normal. Joe Biden
não é, de todo, um extremista de esquerda, é um político muito de centro.
Em Outubro, o
líder do Partido Popular espanhol, Pablo Casado, rejeitou o “ódio” do Vox e
distanciou-se da extrema-direita. Os partidos de centro-direita devem fazer o
mesmo?
A melhor solução
para o centro-direita é, se tal for possível, incorporar os eleitores de
extrema-direita nos seus partidos. O melhor que pode acontecer é o
centro-direita representar um espectro alargado da opinião de direita, mas que
esteja fundamentalmente ancorada na democracia e não tenha estas tendências
populistas autoritárias. O que queremos é um centro-direita forte que sirva
essa função.
Biden precisa de
fazer o mesmo à esquerda? Escreve no livro que a direita populista também
cresce por oposição à esquerda radical ou que se foca sobretudo em políticas de
identidade. É preciso que Biden agregue a esquerda?
Sim. Não sei o
que vai acontecer com Biden. Ele vem de outra geração, não sei até que ponto
ele entende esse mundo. Mas sim, idealmente o que ele devia fazer é pôr todo o
seu partido e toda a esquerda a aplicarem a sua energia em problemas reais,
concretos, da vida real, problemas que as pessoas podem resolver. Por exemplo:
cuidados de saúde, construir mais estradas ou pontes. Quanto mais tempo
político Biden investir nesses assuntos e quanto menos tempo as pessoas
gastarem a discutir racismo, supremacia branca e políticas de identidade, melhor
é para o país e para a esquerda. Isto não equivale a dizer que não existe
racismo.
Paradoxalmente,
as soluções para o problema do racismo podem não envolver estar sempre a falar
dele, mas sim conseguir mais oportunidades económicas para pessoas que tradicionalmente
ficam de fora e dar-lhes uma voz maior em projectos reais. Honestamente, não
sei como Biden vai lidar com essa parte do partido. Sei que não é a parte de
que ele vem, ele é de uma geração mais velha.
Biden pode fazer
a ponte entre o Partido Democrata clássico e este lado mais activista?
Talvez. Ele é um
político muito popular entre os americanos negros, é muito empático, fala
facilmente com as pessoas.
Ele vivia no
Delaware, que fica a umas horas de Washington de comboio. Ele não queria mudar
os filhos para Washington. Por isso, ia de comboio todos os dias [para o
Senado] e interagia muito com as pessoas, os maquinistas e funcionários
conheciam-no. Ele vem de uma família operária. Isso faz parte do seu apelo
eleitoral e foi usado na campanha.
tp.ocilbup@soir.ordep


Sem comentários:
Enviar um comentário