OPINIÃO
Rui Rio: o regime inteiro resumido num único artigo
Reparem: o presidente do Tribunal de Contas, sexta figura
do Estado, personagem fulcral para controlar a bazuca dos fundos europeus, foi
escolhido numa amena cavaqueira entre Costa, Marcelo e Rio.
JOÃO MIGUEL TAVARES
10 de Outubro de
2020, 0:00
Vamos fingir que
somos todos parvos. Vamos fingir que as explicações constitucionais sobre o
mandato único para a presidência do Tribunal de Contas fazem algum sentido;
vamos fingir que o mandato de Vítor Caldeira não acabou a 30 de Setembro e que
António Costa só se lembrou de o substituir a 3 de Outubro; vamos fingir que as
palavras de Marcelo Rebelo de Sousa no domingo (“aquilo que sei é do
conhecimento público, não sei mais nada”) têm alguma coisa a ver com as
palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na quarta-feira (“a escolha foi
intencional” e não teve um só “segundo de dúvida” sobre ela); vamos fingir que
substituir pessoas que mostraram uma rara independência em nome da protecção da
independência tem algum vestígio de lógica.
Vamos fingir que
somos todos parvos para nos concentrarmos num dos mais notáveis momentos desta
ópera-bufa, que não tem tido a atenção que merece: as explicações que Rui Rio
concedeu ao Expresso sobre este caso, numa notícia de quarta-feira intitulada
“Tribunal de Contas: havia dois nomes e Rui Rio ajudou a escolher o novo
presidente”. Se aquilo que Rui Rio diz nesse artigo fosse mentira, era mau. Se
aquilo que Rui Rio diz nesse artigo for verdade – como eu temo que seja –,
então é péssimo.
Entrada do
artigo: “Rui Rio foi ouvido pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da
República sobre a escolha do novo presidente do Tribunal de Contas e concordou
com o nome de José Tavares. Não só concordou, como acabou por ajudar a
decidir.” Rio, sublinhe-se, até era a favor da renovação do mandato (“eu não
teria mudado o presidente do Tribunal de Contas”), mas tendo Costa decidido de
forma diferente, apressou-se a dizer que a decisão era perfeitamente legítima.
Esta desvalorização da sua própria opinião já é bastante bizarra, mas o que é
realmente extraordinário são as suas explicações para a escolha de José
Tavares.
Segundo o
Expresso, aconteceu isto: 1) Rio teve problemas com o Tribunal de Contas em
2008 e 2009, quando liderava a Câmara do Porto, devido ao chumbo de uma
transferência de dívidas no valor de 64 milhões de euros, por violar a lei das
finanças locais. 2) Rio contactou várias vezes com José Tavares nessa época. 3)
Rio achou-o “uma pessoa correcta, que tentava compreender as razões dos dois lados
e procurar equilíbrios”. 4) Donde, Rio optou por José Tavares para presidente
do Tribunal de Contas porque teve umas conversas simpáticas com ele quando
estava com problemas.
Desculpem-me, mas
tudo isto é de um amadorismo indigno de uma democracia consolidada. No artigo
do Expresso está resumido o país inteiro: vivemos num regime de lápis atrás da
orelha, entregues ao improviso e ao desenrascanço
Reparem: o
presidente do Tribunal de Contas, sexta figura do Estado, personagem fulcral
para controlar a bazuca dos fundos europeus, foi escolhido numa amena
cavaqueira entre Costa, Marcelo e Rio. Segundo Marcelo, a opinião de Rio foi
decisiva. Segundo Rio, o seu processo de decisão mental pode ser descrito mais
ou menos assim: há tempos falei com o Zé e ele pareceu-me um gajo porreiro.
José Tavares “ouvia os dois lados”. José Tavares “procurava equilíbrios”. José
Tavares está nomeado.
Perante isto, é
fácil de perceber porque é que o país não sai da cepa torta. Não há escrutínio
de pessoas que vão ocupar os mais altos cargos do país; não há análise
detalhada do currículo; não há audição no Parlamento; pelos vistos, não há
sequer tempo para pesquisar o nome no Google. Desculpem-me, mas tudo isto é de
um amadorismo indigno de uma democracia consolidada. No artigo do Expresso está
resumido o país inteiro: vivemos num regime de lápis atrás da orelha, entregues
ao improviso e ao desenrascanço.
Jornalista


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