Teresa de Sousa
ANÁLISE ELEIÇÕES
EUA 2020
Os Democratas viraram à esquerda? Ou apenas evoluíram?
A pandemia acelerou as grandes tendências que agitavam um
mundo já em profunda transformação, que questiona o papel da América perante a
emergência de uma nova superpotência rival. Uma nova geração que está a emergir
no Partido Democrata terá de receber a herança de Obama e adaptá-la a estes
novos desafios.
17 de Outubro de
2020, 7:02
https://www.publico.pt/2020/10/17/mundo/analise/democratas-viraram-esquerda-apenas-evoluiram-1935561
1. Coube a Bill
Clinton levar a cabo o aggiornamento do Partido Democrata, acertando o relógio
pela hora da pós-revolução conservadora de Reagan e Thatcher nos anos 1980.
Tirou o mais velho partido político americano do seu enquistamento no “grande
governo”, depois de Reagan ter anunciado que “o governo era o problema”.
Anunciou uma visão diferente do Estado social, que se tinha perdido em alguns
excessos. Fundou os “Novos Democratas”. Como quase sempre acontece, a corrente
da “terceira via” que, em finais da década de 1990, haveria de influenciar os
partidos de centro-esquerda europeus a partir de Londres e de Tony Blair,
nasceu do lado de lá do Atlântico e consolidou-se através da parceria política
entre o Presidente americano e o primeiro-ministro britânico. Nunca como então,
nos dois lados do Atlântico Norte, a social-democracia pareceu tão forte e tão
prometedora.
Foram necessárias
três derrotas presidenciais humilhantes para que os democratas estivessem
maduros para esta revolução política e doutrinária. Em 1992, a ruptura de
Clinton compensou, oferecendo-lhe uma vitória improvável contra George Bush
pai, que tinha conduzido o mundo nos anos de transição da Guerra Fria a partir
da Casa Branca. Clinton cumpriu dois mandatos, reformando o Estado social – de
acordo com a célebre fórmula “from welfare to workfare” –, tirando a economia
da recessão e gerando 20 milhões de empregos. Os democratas teriam de esperar
por dois mandatos de Bush filho para regressar à Casa Branca.
2. O século XX
americano foi marcado por duas grandes eras políticas: a era do democrata
Roosevelt, com o “New Deal” que lançou as bases do Estado social; e a era do
republicano Reagan, que colocou a ênfase na responsabilidade individual, na
critica ao “grande governo” e na ideia de que os mercados eram a forma perfeita
de alocar recursos. Viveu duas guerras mundiais e uma Guerra Fria. Terminou
antes do calendário, com a queda do Muro de Berlim.
Na primeira
década do século XXI, a América viu-se violentamente sacudida por dois
acontecimentos que se repercutiram a nível internacional e que marcaram uma
profunda viragem na política interna e na política externa da ainda única
superpotência. O 11 de Setembro (2001) foi visto como um segundo Pearl Harbor,
pondo em evidência a vulnerabilidade de um país que se considerava invulnerável
e mostrando o lado mais negro da globalização. A queda do Lehman Brothers, em
Setembro de 2008, e a implosão do sistema financeiro americano abriram as
portas à Grande Recessão, com repercussões mundiais que não pouparam ninguém.
É nesse caldo de
cultura que emerge o fenómeno Obama, provando ao mundo inteiro que a América é
sempre capaz de renovar o sonho americano. Obama manteve os democratas na sua
versão centrista e moderada. Hillary Clinton, a sua rival (derrotada) nas
“primárias” do partido, ocupava exactamente a mesma posição. Em 2008, durante a
campanha eleitoral, Obama afastou-se da vitimização das minorias (incluindo a
sua), porque sabia que esse caminho nunca o levaria à Casa Branca. Reivindicou
a herança optimista de Reagan (irritando a família Clinton), mas fez do
Obamacare a sua batalha mais emblemática, pela qual os Democratas lutavam há
décadas. Foi alvo da mais furiosa campanha identitária, conduzida pelos
republicanos, que culminou com a polémica sobre a sua certidão de nascimento.
Mas Obama via para além do somatório das múltiplas identidades que constituem a
América.
Oito anos depois,
quando Hillary Clinton se apresentou às eleições presidenciais de 2016 como a
candidata finalmente escolhida pelos democratas, a América tinha mudado e o seu
partido também. A disputa das “primárias” já não foi, como em 2008, entre dois
moderados. Foi entre ela e Bernie Sanders, representante da ala mais radical do
partido. A sua vitória quase inevitável transformou-se numa derrota perante o
mais impensável dos candidatos republicanos: Donald Trump. O partido entrou em
ebulição. Sem liderança, sem rumo e sem entender o que estava a acontecer à
América. Transformou-se num somatório de facções.
As “primárias” de
2019 traduziram esta proliferação num vastíssimo leque de candidatos. Dois
deles, colocando-se abertamente na ala mais à esquerda do partido – Bernie
Sanders e Elizabeth Warren. Os restantes (11 no total) reflectiam um partido
que tinha virado (um pouco) à esquerda, mais ou menos moderados, mas
demarcando-se da visão dita “progressista” ou “liberal” dos dois primeiros.
Depois de um início de campanha para a escolha do candidato sem que ninguém se
destacasse em particular – o único que chegou a parecer imparável foi
justamente Sanders –, Joe Biden acabou por confirmar as sondagens de opinião,
que o davam como o que tinha maior probabilidade de derrotar Donald Trump. O
vice-presidente de Obama vinha da ala moderada do partido, com um curriculum de
mais de 40 anos na vida política activa. Muito longe do carisma de Clinton ou
de Obama, oferecia a garantia de conseguir unir os democratas para além das
suas facções e atrair o voto centrista e moderado que ainda domina o eleitorado
americano apesar da polarização política, quase tribal, em que o país
mergulhou. William Galston, da Brookings Institution, descreve-o como uma
“figura de transição” que pode chegar à Casa Branca mais velho do que Reagan
quando saiu, mas que se afirma como “decente, bastante normal e ligeiramente
antiquado”. Galston também acrescenta que a unidade que conseguiu criar à sua
volta “é mais uma trégua do que uma paz final”.
Biden escolheu
para candidata a vice-presidente uma das suas rivais nas “primárias”, mulher e
negra, na enorme amplitude que o termo tem nos EUA, que vem de uma das
tendências que convivem no Partido Democrata e que Perry Bacon Jr., do
FiveThirtyEight, designa de “nova guarda progressista”. Que não é ideológica
como Sanders, que inclui figuras tão promissoras como Cory Booker, Pete
Buttigieg, a própria Kamala Harris ou Beto O’Rourke, mas que representa um novo
aggiornamento que provavelmente dará os seus frutos no futuro. E que pode estar
em linha com a própria evolução da sociedade americana. Para que tudo siga o
seu percurso normal é necessário que Biden vença as eleições.
3. A questão
seguinte é saber se o Partido Democrata consolidou uma viragem à esquerda ou se
os seus valores de referência apenas acompanharam a evolução da sociedade
americana nos últimos 30 anos. Ou seja, se essa viragem é mais aparente do que
real.
Num artigo
publicado em Dezembro do ano passado no site FiveThirtyEight, especializado em
estudos de opinião, Maddi Sach recorre aos dados do General Social Survey, um
programa da Universidade de Chicago que avalia a evolução da opinião pública
sobre o papel do governo em diferentes domínios de 1986 a 2018. Esses dados
mostram que os eleitores democratas se tornaram mais liberais (no sentido
americano do termo, portanto, mais à esquerda) sobretudo em questões
relacionados com a raça e a imigração. Aumentou significativamente – cerca de
20% – a percentagem de pessoas que consideram ser obrigação do governo ajudar a
melhorar o nível de vida dos negros. Do mesmo modo, subiu a percentagem de inquiridos
que consideram que os EUA podem receber mais imigrantes – de 10% em 2004 para
35% em 2018. Houve também uma evolução em relação ao papel do governo na saúde,
que não é tão relevante porque, neste capitulo, os números foram sempre
elevados. Maddi Sach concluiu que, em geral, os americanos se tornaram mais
liberais nas duas questões que estiveram no âmago da campanha eleitoral de
2016: a imigração e o racismo. Por exemplo, o preconceito racial desceu
significativamente entre os brancos que votam democrata e entre os brancos, em
geral.
Outra evolução
interessante da sociedade americana diz respeito ao papel que o governo deve
desempenhar na redistribuição da riqueza. Em 1986, 39% dos americanos
consideravam que o governo tinha uma responsabilidade na redução das
desigualdades. Hoje, são 44%.
Esta evolução da
sociedade explica a viragem à esquerda do Partido Democrata? É a questão
seguinte. De acordo com dados recentes do Pew Research, 53% das pessoas que se
identificam com os democratas consideram-se moderadas ou mesmo conservadoras –
39 por cento e 14 por cento, respectivamente, para 46 por cento que se
consideram liberais. Mesmo assim, ainda de acordo com o Pew, a partir de 2003,
a tendência é para um crescimento significativo dos que se consideram liberais
(de 29 para 46), um ligeiro decréscimo dos moderados (43 para 39) e uma queda
mais acentuada dos que se vêem como conservadores (24 para 14).
4. Última
questão: onde podem os democratas ir buscar os votos que lhe garantam uma
inequívoca vitória no dia 3 de Novembro?
A primeira vez
que Obama entrou no debate das “primárias”, quando ainda estavam em campo quase
todos os aspirantes a candidatos, foi para rejeitar “a noção disparatada de que
os democratas são obrigados a escolher entre apelar aos votos da classe branca
trabalhadora ou aos votos de cor, das mulheres ou dos americanos LGBT”.
“Ganhámos, acrescentou, porque chegámos a toda a gente, competindo em toda a
parte e combatendo por cada voto”.
Isso não quer
dizer que a base eleitoral dos democratas não tenha, também ela, mudado com a
passagem do tempo. Basta lembrar que a classe trabalhadora branca “já foi a
espinha dorsal da coligação democrática”, que sofre há décadas um declínio
constante e que se transferiu em massa para Trump, como refere o analista
político Ronald Brownstein, num texto publicado no site da CNN em Fevereiro do
ano passado. “A zona de crescimento para 2020 será mais feminina, mais educada
e mais diversa”, diz o mesmo autor. “O campo mais numeroso de candidatos
presidenciais da história dos democratas enfrenta o eleitorado mais diverso que
o partido alguma vez teve de atrair.”
Biden e os
democratas não têm dificuldade em atrair uma maioria significativa do
eleitorado negro e têm visto cair a sua capacidade de atrair os eleitores de
origem hispânica, cuja comunidade tem crescido acentuadamente nas últimas
décadas. Mas quem verdadeiramente deu a vitória a Obama em 2008 foram as
classes médias que vivem nos subúrbios das grandes cidades – brancas, mais
educadas, com melhores rendimentos.
5. Para além do
próprio “factor Trump”, a pandemia e a crise económica são, em 2020, factores
adicionais que podem baralhar o jogo eleitoral. Uma maioria de americanos
continua a considerar que Trump gere melhor a economia. Em contrapartida, uma
maioria ainda maior considera que geriu muito mal a pandemia. Nos Estados
Unidos, quem perde o emprego, perde o seguro de saúde. O Obamacare serviu para
corrigir esta profunda desigualdade de acesso, alargando o seguro a mais 40
milhões de pessoas. O acesso à saúde foi um dos temas que mais dividiu os
candidatos durante as “primárias” democratas – entre os defensores da
preservação do Obamacare (Affordable Care Act) e os que, como Sanders e Warren,
defendiam um sistema de saúde mais próximo do europeu. Banal deste lado do
Atlântico, mas que faz toda a diferença para um americano com uma visão da vida
muito diferente da europeia.
A pandemia
acelerou as grandes tendências que agitavam um mundo já em profunda
transformação, que questiona o papel da América perante a emergência de uma
nova superpotência rival. Mas também acelerou as mudanças politicas, económicas
e sociais que a crise financeira de 2008 pôs em marcha, anunciando o fim de uma
era em que os mercados eram soberanos e as desigualdades mais toleradas. Uma
nova geração que está a emergir no Partido Democrata terá de receber a herança
de Obama e adaptá-la a estes novos desafios. Domésticos e internacionais. Mais
à esquerda ou mais ao centro? A questão é menos relevante do que parece.

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