OPINIÃO
O jornalismo ganhou e Ivo Rosa perdeu (outra vez)
É excelente vivermos num mundo cheio de liberdades e
garantias – mas convém não adormecer em cima delas.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
15 de Outubro de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/10/15/opiniao/opiniao/jornalismo-ganhou-ivo-rosa-perdeu-1935291
Foi conhecida
esta quarta-feira mais uma derrota do juiz Ivo Rosa no Tribunal da Relação de
Lisboa, o que não é propriamente uma novidade (são pelo menos 17 desde 2017).
Só que desta vez foi uma derrota a triplicar e é sobre um assunto que me é
bastante caro: o acesso dos jornalistas ao debate instrutório da Operação
Marquês, que no final do ano passado o juiz Ivo Rosa decidiu barrar de forma
inconcebível e, como agora triplamente se comprova, de forma ilegal.
Na altura escrevi
um artigo sobre isso (“Ivo Rosa e a expulsão dos assistentes/jornalistas”),
onde denunciava o facto de o juiz ser demasiado selectivo no rigor com que
analisava certos casos e certos factos. Se, por um lado, quando se tratava de
apreciar prova recolhida pelo Ministério Público, ele era mais escrupuloso do
que um fariseu niquento, já quando se tratava de atirar com jornalistas (que se
tinham constituído assistentes no processo, como a lei permite) para fora de
uma sala de tribunal, apenas por ele entender que não deviam estar lá, Ivo Rosa
dava mostras de uma criatividade jurídica digna de Sherazade.
Pior: Ivo Rosa
impediu Felícia Cabrita de escutar o depoimento de José Sócrates já depois de o
Tribunal da Relação ter declarado que a jornalista podia assistir a todas as
sessões da fase de instrução, aproveitando o facto de essa decisão ainda não
ter transitado em julgado. Mais tarde, com o trânsito em julgado do acórdão,
Ivo Rosa decidiu resolver o problema removendo o estatuto de assistente aos
três jornalistas que o possuíam. Se os assistentes tinham de assistir, então os
jornalistas deixavam de ser assistentes – um método extremamente bruto e
despachado para um alegado picuinhas do Código do Processo Penal.
Essa criatividade
foi suficiente para impedir os jornalistas do Sol, Correio da Manhã e
Observador de estarem presentes nos depoimentos fundamentais de José Sócrates e
de Carlos Santos Silva, o que teve como consequência sermos informados do que
lá se passou através das versões interessadas dos advogados, sopradas aos
jornalistas. Mas se tal método foi suficientemente criativo para isso, não o
foi para convencer os juízes desembargadores das suas razões. Os três
jornalistas recorreram da decisão de Ivo Rosa (que foi acompanhada pelo
Ministério Público, note-se) e os três jornalistas ganharam na Relação.
Tudo isto teria
sido evitado se o juiz Ivo Rosa tivesse feito o que se impunha: abrir a fase de
instrução à comunicação social, dado o seu manifesto interesse público. Porque
é que não o fez? São os próprios juízes da Relação de Lisboa que indirectamente
sugerem as razões, ao afirmarem que “as instituições democráticas e os seus
servidores” – o que inclui os juízes, claro está – “estão sujeitos ao
escrutínio pela própria natureza das suas funções”, e por isso “não podem, nem
devem, intervir para contribuir para a opacidade de tal exercício de poder, e muito
menos devem contribuir para o que possa parecer o temor do seu próprio
escrutínio”.
O acórdão,
assinado pelo juiz Ricardo Cardoso, até cita William Blake: “Quando a imprensa
não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala-se o povo.” Blake
viveu entre os séculos XVIII e XIX, que talvez por serem tempos em que as
liberdades de expressão e de imprensa estavam diariamente em causa, estes
princípios básicos eram um pouco mais valorizados. É excelente vivermos num
mundo cheio de liberdades e garantias – mas convém não adormecer em cima delas.


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