CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
O hemisfério da direita
16 de Outubro de
2020, 10:00
ANTÓNIO GUERREIRO
https://www.publico.pt/2020/10/16/culturaipsilon/cronica/hemisferio-direita-1934984
Ainda não há
muito tempo — mas parece que passou mais de um século — ser absolutamente
contemporâneo, em termos políticos, consistia em dizer que estava ultrapassada
a visão geográfico-axial da política que designa dois territórios opostos, a
direita e a esquerda; que, por conseguinte, essa díade tinha deixado de ser
funcional quanto à articulação das diferentes opções políticas porque induzia a
decisões drásticas, como quem usa o esquema schmittiano amigo-inimigo, mas
rejeitando evidentemente qualquer afinidade com o conceito do político de Carl
Schmitt.
Para a convicção
de que estas duas categorias se tinham tornado inadequadas contribuiu em parte
a ideia de que se tinha dado um colapso intelectual, ideológico e moral da
esquerda e que se teria dado até uma inversão ou uma alternância de valores, de
tal modo que deixou de ser evidente quem estava do lado do movimento e quem
estava do lado da conservação.
Hoje, a crise
mais profunda está do lado da direita e os sinais de mal-estar vindos desse
campo — ou, pelo menos, das suas elites — começam a tornar-se públicos e a
ganhar contornos que antecipam as bases para um debate que há-de vir, se as
vozes críticas de uma pequena elite não tiverem à sua frente apenas o vazio.
Esse vazio não é de agora, nem sequer é recente, mas o andamento do mundo, que
no plano pragamático correspondeu a uma “direitização” que continua em curso,
permitiu criar a a ilusão de que desse lado quase não era preciso mexer nem
articular uma palavra para que tudo corresse sobre rodas. Era a política da
“força das coisas”. Já em 1979 o grande mitólogo e germanista italiano Furio
Jesi, que tinha acabado de publicar um livro chamado Cultura di destra (onde
estuda sobretudo o “espítito” de uma direita que se afirma na cultura de
Weimar), questionado por um jornalista do semanário Espresso sobre o que
significava, hoje (ou seja, no final dos anos 70 do século passado), a cultura
de direita, respondeu: “é uma cultura caracterizada pelo vazio”.
É esse vazio
cultural à direita que se tornou entretanto quase uma caricatura. Basta entrar
numa boa livraria em qualquer cidade para verificarmos que da enorme torrente
de livros de ensaios e estudos de ciências humanas e sociais que enchem as
bancadas e se renovam em cada estação do ano, muito pouco há vindo do campo da
direita. O individualismo liberal tornou-se a doutrina privilegiada e oficial
da direita. Foi um necessário aggiornamento, já não havia lugar para uma
exaltação dos valores e entidades escritos com maiúscula: Nação, Autoridade,
Ordem, Cultura/Civilização, Espírto, Tradição, etc. Mas a adesão foi de tal
ordem que a direita se inclinou completamente à tal política das coisas e a um
liberalismo incapaz de pensar. O pensamento de direita tornou-se assim um
realismo. Não há nada de mais obtuso do que este discurso centrado no económico
que já não traz consigo nenhuma ilusão. Esse realismo só é interrompido em
questões relacionadas com a moral. Nesse domínio, a direita não é nada realista
e, por cálculo ou convicção, aproveita as oportunidades (não todas) para
reclamar uma ordem moral (quase sempre equivalente a ordem sexual) que nenhum
realismo consegue hoje restaurar. E é assim que cai facilmente e com frequência
na caricatura e em formas de pensamento reaccionário, num tradicionalismo de
superfície completamente postiço.
Mas a fatal
inclinação para a caricatura é ainda muito mais nefasta para a direita (e é
aqui que se levantam os principais motivos para as vozes críticas) quando
hipoteca toda a tradição do conservadorismo e se dissolve no reacionarismo da
extrema-direita que atrofia todo o pensamento; e quando da modernidade parece
ter absorvido apenas os aspectos mais agressivos. Aquilo que se esperaria da
direita, um discurso coerente de restauração, conservador ou de reforma, não se
vislumbra em nenhum lado. E até a ajuda que dá a quem não faz outra coisa do
que vilipendiar as elites (em especial, as elites culturais) faria a direita
clássica, que sempre exaltou o papel das elites, corar de vergonha. Uma direita
assim é destituída de toda a dimensão intelectual que lhe permitiria ter um
discurso alternativo.
Livro de
recitações
“A direita odeia
cada vez mais a meritocracia, a globalização e defende sectores de um
capitalismo ligado ao passado”
Henrique Raposo,
in Expresso, 12/10/2020
Quem assim escreve não é uma voz de esquerda, até porque ninguém de esquerda defenderia a meritocracia, que é certamente o mais fraudulento princípio alguma vez inventado. Mas Henrique Raposo é um bom sismógrafo para percebermos os abalos tectónicos que se estão a dar no campo da direita e o mal-estar que finalmente começa a ser público e explícito. Da esquerda, disse-se muitas vezes, com boas e indesmentíveis razões, que fazia o jogo e executava a política da direita quando chegava ao poder. Agora é a direita que começa a ser acusada por alguém que lhe pertence de fazer o jogo da esquerda (ou, pelo menos, daquilo que H.R. acha que é a esquerda). Há por aqui tanta reversibilidade que deixa de ser possível classificar com rigor seja o que for em função das categorias de esquerda e direita. Henrique Raposo é um dos poucos que, nos jornais, se esforça por ter um pensamento de direita. Mas cai com demasiada facilidade num discurso tão genérico, que serve bem para uma conversa animada, mas duvido que sirva para regenerar o q


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