OPINIÃO
De onde vem tanta raiva?
O que faz a raiva, literalmente raiva, da “base” de
Trump, reproduzida de forma menos perfeita pelos partidos populistas europeus?
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
10 de Outubro de
2020, 0:05
https://www.publico.pt/2020/10/10/opiniao/opiniao/onde-vem-tanta-raiva-1934671
Pode haver
sociedades com absoluto consenso, em que todos “remam para o mesmo lado”, em
que todos os conflitos são sanáveis? A resposta é um claro não, não há
sociedades sem divisões, mais ou menos agudas, mais ou menos conflituais. O que
não existe é um estado “zero” de conflitualidade nem mesmo à força, nem nas
democracias, nem nas ditaduras, nem na anarquia, nem na teocracia, nem no
comunismo nem na mais pacífica, civilizada, ordeira, moderada,
social-democracia. A única verdadeira TINA (there is no alternative) é esta, o
resto são ficções políticas legitimadoras, ou subprodutos disfarçados de
inevitabilidade. A questão não está em não existirem conflitos, está em saber
como é que se formam os ciclos de conflito, e como é que eles se tornam numa
tempestade perfeita, que é o que se está a passar nos dias de hoje. É isso
compatível com a democracia, em que o voto é suposto dirimir todos os
conflitos, ou pelo menos mitigá-los? É, de forma imperfeita, mas é. Mas o
espaço para a democracia alarga ou encolhe conforme os tempos, e agora está a
encolher, e não encolhe sempre da mesma maneira.
A outra TINA, que
está por detrás da primeira, foi identificada por Marx, e repetida e analisada
por muitos outros teóricos, longe de serem marxistas, e tem a ver com a desigualdade
e os mecanismos da desigualdade – uns têm e outros não, seja de forma física,
material ou simbólica, ou quase sempre combinando as duas, primeiro a primeira,
depois a segunda. Porém, se sabemos isto há muito tempo, não chega, porque os
mecanismos que “ferem” os indivíduos e os levam ao sentimento da desigualdade,
agudizando o ressentimento e provocando a revolta, mudam com o tempo e
manifestam-se de formas diversas.
No mais
importante laboratório social do mundo, os EUA de Trump (o outro é o capitalismo
na China gerido por um partido comunista), está a emergir com clareza um outro
padrão de divisão que se tem agudizado nos últimos tempos. O que faz a raiva,
literalmente raiva, da “base” de Trump, reproduzida de forma menos perfeita
pelos partidos populistas europeus? Uma das coisas, não a única, mas uma das
mais poderosas como geradora de ressentimento, é a percepção de muitos
trabalhadores fabris de que é o seu trabalho que suporta a sociedade, e não tem
o reconhecimento que lhes é devido, não apenas em termos salariais, mas em
termos de prestígio social, daquilo que antes se chamava a “dignidade”. Os
culpados são os “políticos” e todos aqueles a quem um diploma traz um título
apenso, que os coloca na elite.
Quando Hillary
Clinton os chamou de “deploráveis”, num excelente exemplo de como uma única
frase pode destruir uma campanha, transformou-os numa coisa que até então não
existia: a “base” de Trump. Deu-lhes identidade. Foi para essa “base” que Trump
subiu à varanda da Casa Branca imitando à letra Benito Mussolini a fazer de
imperador romano, com ar de mau e face de bronze. Mesmo que Trump perca as
eleições, essa “base” vai continuar a mudar a política americana e não é num
sentido muito democrático.
A fractura
eleitoral mais aguda nos EUA nas eleições de 2020 é a que separa os eleitores
brancos sem escolaridade de todos os outros. Para os “deploráveis”, há aqui
duas perdas: ser branco e já não ter os privilégios de o ser, face aos negros,
aos latinos e a todos os “não americanos”; e ser trabalhador manual, não ter um
diploma e por isso ser marginal na sociedade, estar fora da elite. Sendo assim,
a escolaridade tornou-se hoje mais do que um factor instrumental no acesso ao
emprego e no valor do salário, mas no local onde passa uma fractura social
entre os que têm e os que sentem que não têm ou não têm mesmo.
Sem a tribalização da verdade, a perda do valor dos
factos, a indiferença pela realidade objectiva, não haveria a “base” trumpiana
e os seus émulos nacionais. E este estado de coisas agravou-se pela cobardia de
quem devia defrontar a mentira e tem medo de ter a matilha das redes sociais
atrás de si. E por isso se dobram, de políticos a jornalistas
Parece irónico
escrever-se isto em Portugal quando por todo o lado se repete o lugar-comum da
“geração mais bem preparada”, num país onde os fenómenos populistas também
crescem com os mesmos mecanismos de ressentimento antielitista. A questão é que
o diploma sem as vantagens económicas e sociais está longe de ser percebido
como um diploma, pelo que tê-lo é a mesma coisa ou pior do que não tê-lo, e não
esbate o sentimento de que na sociedade são eles que fazem todo o trabalho duro
e não uma elite com o “dr.” antes. Nós desprezamo-los mesmo inconscientemente,
eles respondem-nos à letra.
O lubrificante
deste ressentimento são as redes sociais, porque dão um meio de expressão e
contacto para todos aqueles que se sentem excluídos do discurso respeitável e
encartado. A ignorância agressiva que pulula nas redes, o desprezo pelo saber
profissional e pelas hierarquias assentes no conhecimento, cujos efeitos vão
desde a disseminação das terias conspirativas até aos comportamentos
anticientíficos, é impulsionado pelo igualitarismo das redes sociais: porque eu
posso escrever aqui o que quiser, o que eu digo tem o mesmo valor de tudo o
resto, diga ou não a verdade, tenha ou não fontes fiáveis, tenha ou não algum
conhecimento sobre aquilo que escrevo. Sem a tribalização da verdade, a perda
do valor dos factos, a indiferença pela realidade objectiva, não haveria a
“base” trumpiana e os seus émulos nacionais. E este estado de coisas agravou-se
pela cobardia de quem devia defrontar a mentira e a opinião comum e circulante
cara a cara e tem medo de ter a matilha das redes sociais atrás de si. E
por isso se dobram, de políticos a jornalistas.
Historiador



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