terça-feira, 26 de maio de 2020

Carta aberta põe em causa restauro dos Painéis de São Vicente. Museu desvaloriza críticas




ARTES
Carta aberta põe em causa restauro dos Painéis de São Vicente. Museu desvaloriza críticas

Signatários defendem que o restauro em curso pode pôr em risco a integridade da pintura. Director do MNAA assegura que não: “Vamos avançar com muito cuidado, devagar.” E sem teorias em mente. Será a obra a ditar o que fazer a cada momento.

Lucinda Canelas 26 de Maio de 2020, 22:21

No rosto da figura mais à esquerda são visíveis várias manchas mais escuras resultantes de retoques de Luciano Freire feitos há mais de 100 anos, hoje muito degradados CORTESIA: MUSEU DE ARTE ANTIGA

Quando o Museu Nacional de Arte Antiga decidiu avançar para o restauro dos Painéis de São Vicente (c. 1470), de Nuno Gonçalves, depois de o preparar durante mais de dois anos, já contava com vozes críticas. Os seus conservadores estão habituados a que quaisquer projectos que envolvam a mais importante pintura portuguesa do século XV suscitem debate e, muitas vezes, até posições extremadas. O que talvez não esperassem é que essas críticas surgissem mesmo antes de os técnicos terem oportunidade de fazer qualquer intervenção na obra.

Uma carta aberta datada de 21 de Maio, que acaba de chegar aos jornais, dá conta de que há um grupo de 24 cidadãos — historiadores, jornalistas, professores de Direito, escritores, ensaístas, editores — preocupado com a “integridade patrimonial dos Painéis de São Vicente” em face do restauro em curso.

Nesta carta, dirigida ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, à ministra da Cultura e à Fundação Millennium BCP, mecenas do complexo projecto de conservação e restauro que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) terá em curso durante os próximos dois anos (pelo menos), os signatários dizem temer que a intervenção venha a apagar elementos essenciais à interpretação dos Painéis.

Classificando este restauro como “inesperado”, apesar de ter sido já anunciado há um ano, quando o conservador de pintura Joaquim Caetano assumiu o cargo de director do MNAA, os signatários defendem que é “susceptível de ser, afinal, a repintura de um elemento decisivo da nossa iconografia”.

Estão preocupados com esta “repintura” nos seis painéis, mas em particular na zona que permite, de acordo com a tese de Jorge Filipe de Almeida, co-autor de Os Painéis de São Vicente (Verbo, 2000), recuar a datação da obra para 1445 e atribuir a sua autoria, sem grandes margens para dúvidas, a Nuno Gonçalves, pintor de Afonso V.

“O problema [da ‘repintura’] emerge para o conjunto dos Painéis mas coloca-se com particular acuidade em pormenores, nomeadamente as letras e números pintados no botim do adolescente no ‘Painel do Infante’. Eles contêm a datação dos Painéis (1445) e a sua autoria, um pintor cujas iniciais eram NG e que só não será Nuno Gonçalves se em 1445 houvesse outro pintor régio cujas iniciais fossem também NG. Estes elementos decisivos para a autoria e datação dos Painéis são uma pequena área, fácil de repintar numa ‘melhor’ decoração. Houve quem entre os nossos respeitados historiadores de arte classificasse aquelas letras e números de ‘decoração’.”


Jorge Filipe de Almeida, cujo nome é mencionado nesta carta aberta, não é um dos signatários. A sua tese, que defende também que as duas figuras centrais nos painéis maiores não representam São Vicente e sim o D. Fernando, o Infante Santo, foi amplamente discutida no MNAA há precisamente 17 anos e não mereceu aprovação nem de historiadores de arte especializados nos Painéis e em pintura antiga portuguesa, nem de paleógrafos. A maioria considerou que o que Jorge Filipe de Almeida identificava como inscrições indicadoras de data e autor eram, na verdade, elementos decorativos.

Contactado pelo PÚBLICO, este professor universitário diz não ter assinado a carta ao lado da historiadora Irene Pimentel, do especialista em relações internacionais Carlos Gaspar ou do cientista social Luís Salgado de Matos porque não lhe propuseram que o fizesse, algo “de bom tom”, já que o seu nome é referido.

“Mas no geral concordo, naturalmente, com o que lá vem dito”, diz. “O que me causa ansiedade, preocupação, é a conjugação de dois factores: o melindre de qualquer restauro em pintura antiga e o processo de ocultação da inscrição no botim do adolescente [com a data de 1445 e a assinatura] por parte do museu.”

Total desconhecimento
Joaquim Caetano, historiador de arte e director do MNAA, reage à carta com serenidade e satisfeito com o facto de o termo de comparação com o que ali se pretende fazer seja o restauro da Adoração do Cordeiro Místico, o retábulo de Van Eyck para a catedral de Gent, “o mais rigoroso e discutido das últimas décadas”.

“Esta carta contém um chorrilho de dislates e revela total desconhecimento do que aqui se vai fazer”, diz o director, garantindo que o estudo e a intervenção serão conduzidos com recurso à mais moderna tecnologia, contando com técnicos experientes, com o acompanhamento de dois laboratórios de conservação e restauro portugueses de “elevada qualidade” e com uma equipa de consultores internacionais “que é do melhor que há quando se trata de olhar para pintura antiga”. Uma equipa que inclui especialistas do Museu do Prado (José de la Fuente), do Metropolitan de Nova Iorque (Maryan Ainsworth e Michael Gallager), do Instituto Central de Restauro da Bélgica (Hélène Dubois), da National Gallery de Londres (Ashok Roy) e da Universidade de Gent (Maximiliaan Martens).

“As pessoas que escrevem esta carta e que a assinam — curiosamente não há nenhum historiador de arte — não se deram sequer ao trabalho de ver a mesa interpretativa que o museu tem junto dos Painéis há mais de um ano para todos os visitantes. Se o tivessem feito veriam que, de acordo com as radiografias e textos que nela se apresentam, não há qualquer repinte, qualquer alteração, na zona da bota que tanto os preocupa.”


Nessa área específica, garante Joaquim Caetano, o que as conservadoras-restauradoras farão é retirar o velho verniz, amarelecido, e pôr um novo. “A bendita bota continuará a ser pasto para novas interpretações nos próximos 100 anos. Eu só lá vejo elementos decorativos, mas se alguém vê mais qualquer coisa, muito bem.” O director do MNAA costuma dizer que “é um direito constitucional de cada português ter uma teoria sobre os Painéis de São Vicente”.

A intervenção neste retrato colectivo que é absolutamente singular mesmo no contexto da arte europeia do século XV foi determinada, garante Joaquim Caetano, pela necessidade de travar a “degradação cromática e material do restauro feito há 100 anos” pelo pintor Luciano Freire. “É a materialidade da obra que orienta a intervenção e não interpretações que sobre ela possamos fazer ou teorias mais ou menos delirantes. Já o disse muitas vezes: vamos avançar com muito cuidado, devagar, e sabendo que não vamos poder devolvê-la ao estado original em que o pintor a deixou há mais de 500 anos. Se o fizéssemos a sua leitura não seria a mesma, haveria muitas lacunas.”

O que o escritor Nuno Júdice, um dos signatários da carta aberta, quer salvaguardar é precisamente a imagem com que a obra vai ficar depois de terminada a intervenção. “Sabemos que a imagem que temos hoje dos Painéis pode ter sido um pouco refeita pelo Luciano Freire, mas é esse arquétipo que a pintura portuguesa absorveu, é essa imagem que faz parte da nossa memória cultural”, ressalva. “Espero que no final a obra se mantenha como a reconhecemos. Não tenho razões para pensar que será diferente nem para desconfiar da competência da equipa do museu. Só quisemos dizer, ao assinar a carta, que estamos atentos ao que ali se está a passar”

António Valdemar, que há 50 anos estuda esta pintura, também vai acompanhar, “com grande entusiasmo”, o restauro. Conviveu com muitas das personalidades que nesse lapso de tempo “se entregaram à questão dos Painéis” — João Couto, Belard da Fonseca, Adriano Gusmão, José de Bragança, Dagoberto Markl e, naturalmente, José de Almada Negreiros — e considera “fundamental o trabalho que está a ser feito sob orientação de Joaquim Caetano”.

Pelo que leu diz estar reunida “uma equipa séria, com competências específicas e de grande confiança”. António Valdemar, autor de Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo (Assírio & Alvim), espera até que, terminado o trabalho, haja “novos contributos” para o estudo da obra. “Seria bom saber algo mais nesta questão que está em aberto há mais de 100 anos.”

Para Joaquim Caetano a prioridade deste restauro não é trazer “novidades” sobre a obra e o autor ou autores, mas intervir para evitar que a imagem que dela temos seja cada vez mais diferente daquela que Nuno Gonçalves nos deixou. “Haverá sempre perguntas por responder nestes Painéis.”

tp.ocilbup@salenacl

Sem comentários: