sábado, 24 de dezembro de 2016

Nas mãos da Alemanha e de Angela Merkel


Nas mãos da Alemanha e de Angela Merkel
Ao atacar em Berlim, os estrategos do Daesh visam enfraquecer Merkel e fazer saltar a Europa.

JORGE ALMEIDA FERNANDES
23 de Dezembro de 2016, 22:02

Que há de novo a dizer do atentado de Berlim que não tenha já sido dito neste próprio ano de 2016? O terrorismo é muito velho. Ao longo do século XX, muitos países habituaram-se a coabitar com o terror até o vencer. Depois da Al-Qaeda, o Daesh (ou Estado Islâmico) inaugurou um tipo de “terrorismo global” que se manifesta em todas as geografias. O seu êxito depende de quem o sofre e também dos tempos e lugares em que é praticado. Aqui reside a razão de analisar o ataque de Berlim: perceber que não é só a Alemanha que está em jogo, mas toda a Europa.

Devemos repetir o que já muitas vezes se disse. A resposta policial, sobretudo a preventiva, é essencial, mas o mais importante joga-se no plano dos sentimentos — na resposta ao medo. O medo visa provocar reacções de histeria e desproporcionadas que rompam os laços com as comunidade muçulmanas dos países europeus. Calcula o Daesh: entre as liberdades e a segurança, os cidadãos optarão por esta, logo pela dureza.
Há diferenças entre os países. A França tem a maior comunidade árabe da Europa, cinco milhões de pessoas. Este é um dos cavalos-de-batalha da Frente Nacional de Marine Le Pen. As redes terroristas, e em particular o Daesh, recrutam entre os jovens radicalizados da segunda geração, já nascidos ou educados na França. Não são “lobos solitários”. São dirigidos a partir de Raqqa, na Síria. Segundo Gilles Kepel, especialista em jihadismo, a estratégia do Daesh visa “desencadear uma guerra civil em França”.
Na Alemanha, a maior comunidade muçulmana não é árabe, mas turca e pouco propensa ao jihadismo. A partir de 2015, com a tragédia síria, Berlim abriu as portas a 890 mil refugiados. Tornou-se então o epicentro da questão migratória na Europa. A extrema-direita, em particular a xenófoba Alternativa para a Alemanha (AfD), lançou uma ofensiva contra Angela Merkel. A maioria dos alemães tem tido um comportamento cordial perante os refugiados. Mas também medo. Uma sondagem de Agosto indicava que 71% dos inquiridos temiam que entre os refugiados viajassem terroristas. Tinham razão, e a polícia falhou. Noutra sondagem, 40% pediam o encerramento das fronteiras alemãs aos refugiados.
Voltando ao medo. A primeira observação a fazer é o facto de os atentados jihadistas dos últimos anos coincidirem com uma vaga populista, com uma grande componente xenófoba, que estimula o medo e dele se alimenta politicamente.

Merkel e Hollande
Na França, François Hollande declarou o país em “guerra” e instituiu medidas extremas nas ruas e nos lugares públicos, limitando as liberdades individuais. Mais do que prevenir efectivamente o terrorismo, trata-se de uma medida largamente política, visando tirar argumentos à oposição e, sobretudo, a Marine Le Pen. Na Alemanha, dizem os analistas, limitar as liberdades em nome da segurança é impossível “por razões históricas”. Note-se que, ao contrário da maioria da Europa, as redes sociais mostraram uma grande moderação nas reacções ao atentado. Apenas os dirigentes da AfD ultrapassaram a linha da obscenidade, com frases como “São os mortos de Merkel”.
No entanto, poucos dias passaram. A chanceler tomará mais algumas medidas restritivas, tentando manter o essencial da sua política. Mas, a dez meses das eleições gerais, a sua posição foi enfraquecida, O país está polarizado, o que augura o crescimento eleitoral da AfD e leva sectores da CDU, o partido da chanceler, tal como os seus sócios da CSU, da Baviera, a pressioná-la a ir mais longe, a fim de cortar o espaço à direita. Até Setembro, a AfD vai radicalizar mais o país e colocar o islão e a imigração no centro da campanha.
O desfecho deste debate é importante. “Para a República Federal, trata-se de uma cesura importante, que poderia transformar profundamente a sua abordagem em matéria de política de refugiados, de asilo e de imigração”, observa o analista alemão Hans Stark.
Outra analista alemã, Daniela Schwarzer, sublinha que tudo se vai jogar na capacidade de Merkel conseguir mobilizar a sociedade civil em torno da sua política. Frisa também a necessidade de uma forte resposta ao terrorismo baseada na cooperação europeia, até agora mais formal do que real. “Mas o maior desafio é o doméstico. Em tempos em que o medo cresce, Merkel tem de exercer uma forte liderança. Se ela o não fizer, outros ganharão terreno — propagando uma Alemanha menos liberal, mais xenófoba e mais fechada.”

A Alemanha e a Europa
“Os próximos dias e semanas serão de grande importância”, escreve o Corriere della Sera. “Para a Alemanha e mais ainda para a União Europeia, que seria infinitamente mais débil com uma Merkel diminuída ou impotente. A senhora é ainda forte, mas não é garantido. No entanto, resta indispensável para a Europa.”
Há cadeias fatais. O atentado de Berlim — e sobretudo se outros se seguirem — poderá marcar um ponto de viragem. Uma Alemanha vacilante abalará uma Europa que atravessa uma era de “crises, choques e terror”. O populismo corrói as instituições e não é um fenómeno passageiro. Os analistas prevêem mais atentados, espectaculares e letais. A eleição de Donald Trump abriu uma longa fase de insegurança política e estratégica na Europa e tenderá a estimular os fenómenos que rotulamos de populismo.
É interessante a percepção americana de Angela Merkel. O historiador Harold James, da Universidade de Princeton, faz uma curiosa análise dos actuais modelos de liderança. “Putin e Merkel representam dois pontos de referência e não só na Europa”, mas também nos Estados Unidos, onde “Trump definiu Hillary Clinton como a ‘Merkel americana’. (...) Merkel e Putin emergiram como ícones políticos no próprio momento em que a globalização se encontra numa encruzilhada. De um lado, Donald Trump, que, inspirando-se em Putin, invoca uma alternativa à globalização. Do outro, Angela Merkel, que quer salvar a globalização através de uma liderança forte e empenhada nos valores universais e direitos humanos.” Não é seguro que James tenha razão. Mas que vemos ao olhar a cena política continental?
O historiador britânico Timothy Garton Ash vai até mais longe: “À medida que subiam as águas do populismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, e na Holanda e na França, a Alemanha converteu-se cada vez mais no centro estável da Europa, e até do Ocidente. A Alemanha é o centro geográfico, económico, político e até social, e o centro desse centro é Angela Merkel.”
Em suma, o atentado de Berlim leva a fazer uma pergunta: terão os estrategos do Daesh a mesma percepção, fazendo do enfraquecimento de Merkel e da Alemanha um alvo prioritário para tentar “incendiar” toda a Europa?


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