INVESTIGAÇÃO
Português mais rico do mundo oculta grande parte da fortuna
Nas semanas que antecederam e sucederam a invasão da
Ucrânia, Roman Abramovich escondeu bens numa estrutura “obscura” de offshores.
Paulo Curado
17 de Maio de
2023, 6:02
Logo após a
invasão russa da Ucrânia, a 24 de Fevereiro de 2022, e antes de ser sancionado
pelo Governo britânico, a 10 de Março, com o congelamento de milhares de
milhões de euros, Roman Abramovich ocultou 760 milhões de libras (874 milhões
de euros) num complexo emaranhado de estruturas offshore. Abramovich é
português desde 30 de Abril de 2021, ao abrigo da Lei da Nacionalidade, que
concede a naturalização aos descendentes de judeus sefarditas que receberam
ordem de expulsão de Portugal no final do século XV.
É o próprio
Governo do Reino Unido a confirmar esta ocultação, numa circular do Ministério
dos Negócios Estrangeiros, de 12 de Abril, onde é ainda referenciado um cidadão
cipriota, Demetris Ioannides, que trabalhou com Abramovich durante as duas
últimas décadas. As autoridades britânicas consideram que foi ele o
“responsável pela criação das estruturas offshore obscuras” para o
multimilionário russo, israelita e português esconder parte da sua vasta
fortuna.
“Face às sanções
internacionais sem precedentes impostas em resposta à invasão ilegal e em
grande escala da Ucrânia por [Vladimir] Putin — com mais de 18 mil milhões de
libras [20,7 mil milhões de euros] de activos russos e de outros países
congelados só no Reino Unido —, os oligarcas têm-se esforçado por proteger a
sua riqueza com a ajuda de intermediários financeiros, fundos fiduciários
offshore, empresas de fachada e até mesmo recorrendo aos seus familiares”,
revela a nota governamental, assinada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros,
James Cleverly.
“Os especialistas
britânicos descobriram as suas redes financeiras, localizando os responsáveis
pela facilitação da actividade e sancionando-os directamente com o congelamento
de bens, proibições de viagem, sanções de transporte e sanções de serviços
fiduciários”, prosseguiu o governante, confirmando que entre os sancionados
está Demetris Ioannides, assim como outro contabilista, Christodoulos
Vassiliades, neste caso envolvido com o oligarca russo Alisher Usmanov.
Usmanov é um dos
homens mais ricos da Rússia, com uma fortuna estimada em 14,4 mil milhões de
dólares (13,2 mil milhões de euros), pela revista norte-americana Forbes,
especializada em negócios e economia. Já a riqueza de Roman Abramovich e da sua
família situa-se nos 9,2 mil milhões de dólares (8,5 mil milhões de euros),
segundo a mesma publicação, que tem os dados actualizados. Valores que fazem de
Abramovich, de longe, o português mais rico do mundo.
Estamos a fechar a rede sobre a elite russa e sobre aqueles
que tentam ajudá-la a esconder o seu dinheiro para a guerra. Não há lugar para
se esconderem. Continuaremos a cortar-lhes o acesso a bens que pensavam estar
escondidos com sucesso
James Cleverly, ministro dos Negócios Estrangeiros do
Reino Unido
“Estamos a fechar
a rede sobre a elite russa e sobre aqueles que tentam ajudá-la a esconder o seu
dinheiro para a guerra”, concluiu James Cleverly: “Não há lugar para se
esconderem. Continuaremos a cortar-lhes o acesso a bens que pensavam estar
escondidos com sucesso.”
O contabilista
Demetris
Ioannides, nascido em Limassol, a segunda maior cidade de Chipre, a 28 de
Setembro de 1943, é um contabilista certificado que abriu a sua própria
empresa, a MeritServus, em 1988, em parceria com a empresa de auditoria global
Deloitte. Em 2005, a empresa tornou-se independente com a designação
MeritServus HC Limited.
No site da
empresa explica-se que “uma sociedade holding cipriota é a porta de entrada
perfeita na UE [União Europeia]”. Nos anos seguintes, em conjunto com outros
contabilistas, advogados e bancos em Chipre, Ioannides atraiu grandes fortunas,
em particular russas.
No início de
Abril, na sequência de mais um pacote de sanções financeiras contra a Rússia,
como retaliação pela invasão da Ucrânia, o Governo britânico acrescentou também
o nome de Ioannides e da sua empresa à lista de sancionados. O Ministério dos
Negócios Estrangeiros acusa-o de ser “facilitador de oligarcas” que operam em
Chipre, não escondendo as preocupações com o papel desta sua antiga colónia
(independente desde 1960) como placa giratória da circulação do capital russo
no passado e, eventualmente, no presente.
“Ficheiros dos oligarcas”
Esta medida foi
tomada após o jornal britânico The Guardian ter divulgado os denominados
“ficheiros dos oligarcas”, um conjunto de mais de 300 mil documentos dos
arquivos da MeritServus e de empresas associadas. Esta vasta informação foi
disponibilizada ao jornal por um denunciador anónimo.
Para o título de
referência britânico, os documentos sugerem que, no ano passado, a empresa
ajudou Abramovich a remodelar com urgência os fundos fiduciários que o oligarca
utilizava para gerir a sua fortuna, eventualmente para evitar o congelamento de
bens, na sequência do conflito ucraniano.
Apesar de
efectivamente prestar aconselhamento fiscal e contabilístico, a parte
substancial do trabalho da MeritServus e das suas filiadas envolveria a criação
e gestão de sociedades offshore — empresas constituídas em países com
benefícios tributários e com sigilo — e trusts — onde o património de um
indivíduo é administrado por um titular formal para determinado fim específico,
ocultado o seu verdadeiro beneficiário final. A MeritServus forneceria um rosto
público de fachada como accionista e director, mas as sociedades seriam realmente
detidas pelos seus clientes que permaneceriam na sombra.
Abramovich ou “Mr. Blue”
O seu maior
cliente seria Abramovich, para quem os funcionários da MeritServus tinham um
sugestivo nome de código: “Mr. Blue”, numa provável alusão ao clube de futebol
londrino Chelsea, que foi propriedade do multimilionário até ao ano passado.
Este nome surgia frequentemente em trocas de emails a que o The Guardian teve
acesso.
A relação com o
multimilionário era antiga e terá começado em 2001, no ano que foi criada a empresa
Millhouse Capital, a sociedade que geria as participações da estrutura
empresarial de Abramovich. A MeritServus ajudaria a movimentar os milhares de
milhões do oligarca para as economias europeias, revela o jornal. Ioannides
terá estado ainda envolvido na aquisição do Chelsea, em 2003.
Em resposta ao
ponto “indicador de risco de cliente” num formulário, sem data, relacionado com
uma empresa de Abramovich — a Anadoria Investments Limited —, a MeritServus
garantiu que o seu cliente “nunca” tinha sido uma “pessoa politicamente
exposta”, termo que avalia as ligações políticas que possam tornar alguém um
risco elevado em relação a subornos e corrupção.
Isto apesar da
grande proximidade entre o empresário e o Presidente russo, e de Abramovich ter
sido governador do distrito autónomo russo de Chukotka, no extremo Leste da
federação, entre 2000 e 2008, e ter sido deputado da Duma (Parlamento russo),
eleito por essa região.
O mesmo documento
refere ainda que a empresa de Abramovich não foi identificada em países com
“níveis significativos de corrupção”.
O “aliado” Chipre
De acordo com
estimativas recolhidas pelo The Guardian, o capital russo em instituições
bancárias cipriotas representaria mais de mil milhões de euros em 2021. E,
segundo o Banco Central do país, a Rússia é ainda o mais importante parceiro em
termos de investimento interno e externo. Em 2013, o Governo do estado insular
mediterrânico abriu um esquema de “passaportes dourados”, para vender a
cidadania em troca de investimentos. Foram captados sete mil milhões de euros,
grande parte proveniente de fortunas russas.
Um ano antes, em
2012, os fluxos de capitais russos para a ilha atingiram um pico de mais de 21
mil milhões de euros, de acordo com dados da agência de notação Moody’s, o que
representaria um terço de todos os depósitos do país. Parte deste dinheiro
pertenceria a Abramovich.
Em 2012, na
sequência de uma grave crise do sistema financeiro cipriota, resultante do
colapso da dívida nacional da Grécia, em finais de 2009 e inícios de 2010, a
Rússia concedeu a Chipre um empréstimo de 2,5 mil milhões de euros, sem evitar
o resgate económico do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira.
Podemos questionar-nos sobre se Chipre foi totalmente
corrompido pelo capital russo. O dinheiro russo está tão enraizado em Chipre,
que muitos membros da elite [russa] adquiriram a cidadania cipriota
Timothy Ash, membro associado do grupo de reflexão
Chatham House
“Podemos
questionar-nos sobre se Chipre foi totalmente corrompido pelo capital russo. O
dinheiro russo está tão enraizado em Chipre, que muitos membros da elite
[russa] adquiriram a cidadania cipriota”, diz Timothy Ash, membro associado do
grupo de reflexão Chatham House, sediado em Londres, citado pelo The Guardian.
A via suíça
Os bens de
Abramovich estão ainda estão sob escrutínio na Suíça. Aqui, o caso envolve
também o banco Credit Suisse — recentemente comprado pelo banco UBS —, que
tinha entre os seus maiores accionistas a Arábia Saudita e o Qatar. De acordo
com documentos (provenientes de duas fugas de informação) obtidos pelo
consórcio de jornalistas de investigação do Organized Crime and Corruption
Reporting Project (OCCRP), esta instituição bancária, que está a atravessar uma
grave crise financeira e lutou pela sobrevivência, emprestou centenas de
milhões de euros às empresas offshore de Abramovich.
Por sua vez,
estas sociedades, que tinham propriedade secreta, emprestaram somas avultadas
umas às outras, que foram depois misteriosamente devolvidas ou anuladas.
Especialistas disseram ao OCCRP, em Janeiro deste ano, que estes movimentos
poderiam ter objectivos legítimos, mas que também poderiam indiciar um esquema
para ocultar a origem dos fundos e para branquear capitais.
“Os empréstimos
sem qualquer justificação real podem ser uma forma eficaz de branquear fundos
ilícitos através de redes complexas de empresas. Se esses empréstimos forem
rapidamente reembolsados ou utilizados para transacções repetidas, como é
sugerido aqui, devem ser colocadas sérias questões sobre a sua legitimidade”,
disse à OCCRP Kush Amin, advogado da Transparência Internacional, uma
organização sem fins lucrativos anticorrupção, com sede em Berlim.
Os documentos do
Credit Suisse e da prestadora de serviços cipriota MeritServus revelam que o
oligarca russo detinha mais de 2000 milhões de euros em activos ou dinheiro no
Credit Suisse, no também suíço UBS e no britânico Barclays. No Credit Suisse, o
multimilionário detinha activos de mais de 1,4 mil milhões de euros, através
das empresas offshore, mantidas até há pouco tempo em segredo.
Ainda segundo o
OCCRP, as sociedades offshore de Abramovich detinham acções de primeira linha
de empresas americanas, que utilizariam como garantia para grandes empréstimos
no Credit Suisse. O empresário controlava, nomeadamente, participações de quase
500 milhões de dólares (460 milhões de euros) em duas das maiores empresas
siderúrgicas americanas, a United States Steel Corporation e a Steel Dynamics,
Inc. Estas participações serviram de garantia para um empréstimo de 300 milhões
de dólares (276 milhões de euros) concedido pelo banco helvético.
Abramovich
possuía ainda acções de outras grandes empresas norte-americanas, como a Uber,
a Microsoft ou a Amazon. Detinha também acções do UBS e do próprio Credit
Suisse.
“Estar nas listas
[de sanções] do Reino Unido e da União Europeia provavelmente dificulta
significativamente o seu [Abramovich] acesso ao sistema financeiro dos EUA”,
defendeu ao OCCRP Justyna Gudzowska, do grupo de defesa anticorrupção The
Sentry, sediado nos EUA: “Os bancos americanos geralmente seguem as sanções do
Reino Unido e da UE como uma questão de política, se não como uma questão de
lei.”
Para já, o
oligarca, visita frequente dos EUA antes da invasão da Ucrânia, tem escapado às
sanções do Departamento do Tesouro, que o colocou na denominada “Lista do
Kremlin”, divulgada em 2018, onde foram incluídos os oligarcas e políticos
russos com um papel significativo na economia do país e alegadamente ligados ao
poder em Moscovo.
No início deste
ano, o The Guardian — através de documentos internos provenientes do Credit
Suisse (obtidos pela start-up alemã Paper Trail Media); e de uma outra fuga de
dados da MeritServus (divulgada inicialmente pelo site de denúncias Distributed
Denial of Secrets) — revelou como Abramovich transferiu um fundo trust para o
nome de dois dos seus filhos, semanas antes da invasão da Ucrânia.
Os bancos
americanos geralmente seguem as sanções do Reino Unido e da UE como uma questão
de política, se não como uma questão de lei
Justyna
Gudzowska, do grupo de defesa anticorrupção The Sentry, sediado nos EUA
Em resposta às
questões colocadas pelo OCCRP, o Credit Suisse recusou comentar “potenciais
relações com clientes”, garantindo que opera “em estrita conformidade com todas
as leis, regras e regulamentos aplicáveis” e que tem “mecanismos de controlo
rigorosos” para evitar crimes financeiros e o cumprimento das sanções impostas.
Já Roman
Abramovich e os seus representantes não responderam a nenhum pedido de
comentário do OCCRP e do The Guardian.
Parceria com o Kremlin
Um mês antes
desta investigação, em Dezembro do ano passado, a organização de jornalistas
independentes revelara também que o oligarca tinha uma parceria secreta com o
Kremlin numa grande empresa florestal na Rússia.
Tratava-se da
Russia Forest Products, onde tinha investido 230 milhões de dólares (211,5
milhões de euros) entre 2008 e 2016, tendo o Governo russo entrado no capital
da empresa em 2013, através de uma subsidiária de uma sociedade detida pelo
fundo soberano do país.
Esta sociedade
foi conhecida após mais uma fuga de documentos, que revelaram uma estrutura
empresarial complexa que pretenderia ocultar estes laços financeiros, sempre
negados. O empresário e o Estado russo alienaram as respectivas participações
na sociedade em Janeiro de 2022, um mês antes da entrada das tropas russas em
território ucraniano.
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