ENTREVISTA
Constança Urbano de Sousa: “Sofri pressões ao mais alto
nível para não alterar Lei da Nacionalidade”
A deputada do PS fala, em entrevista ao PÚBLICO, sobre as
pressões que sofreu quando tentou mudar da Lei da Nacionalidade para apertar a
malha sobre quem poderia ter acesso à nacionalidade portuguesa. Constança
Urbano de Sousa comenta ainda as alterações recentes na legislação sobre a
nacionalidade de descendentes de judeus sefarditas.
Paulo Curado
28 de Março de
2022, 6:30
Em 2020, a
deputada e vice-presidente da bancada socialista no Parlamento Constança Urbano
de Sousa procurou alterar a “lei do retorno” dos descendentes de judeus
sefarditas, mas foi obrigada a desistir face à “enorme onda de contestação” e
às pressões de que foi alvo, inclusivamente por parte de figuras históricas do
PS, como Maria de Belém ou Manuel Alegre. Na altura alertou, para a
‘comercialização’ da nacionalidade portuguesa e para o facto de a legislação,
como estava redigida, abranger um universo incalculável de potenciais
candidatos.
Se fosse um dos
nossos parceiros europeus como reagiria ao facto de Roman Abramovich ser um
cidadão português?
Em primeiro
lugar, perguntaria como é que obteve a nacionalidade portuguesa e, com isso, a
cidadania da União Europeia. Até porque a naturalização pressupõe, em regra, um
período de residência no país onde possa vir a ser naturalizado, para existir
uma conexão, e é do conhecimento geral que Roman Abramovich residiu apenas no
Reino Unido, que já não faz parte da UE.
A nacionalidade
portuguesa de Roman Abramovich foi conhecida em Dezembro, mas até agora o seu
processo de naturalização continua envolto em mistério. Como se justifica este
silêncio?
Não consigo
explicar porque desconheço o processo. Causa-me apenas alguma surpresa.
Como especialista
em Direito da Nacionalidade como interpretou as alterações na Lei da
Nacionalidade, em 2013, que possibilitaram a naturalização aos descendentes de
judeus sefarditas expulsos de Portugal no final do século XV?
Foi um gesto
histórico e bonito que juridicamente padecia de dois vícios. Em primeiro lugar,
o respeito pelo princípio da igualdade, já que o édito de D. Manuel de 1496 não
determinou apenas a expulsão de judeus, mas também de mouros. A haver uma
reparação histórica teria de abranger todos. Por outro lado, a forma como a lei
estava redigida, permitiria abarcar um universo incalculável de pessoas.
Reparei na altura que não existiram debates nem audições a genealogistas, por
exemplo, para perceber o universo de potenciais candidatos.
Não achou
estranho esta ausência de estudos genealógicos ou estatísticos?
O processo
decorreu no Parlamento em pouco mais de um mês e meio. Existiram apenas três
pareceres, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do
Ministério Público e da Ordem dos Advogados, que considerou na altura que a
proposta de lei era inconstitucional por discriminar em função da origem
religiosa os potenciais destinatários.
Mais
determinante, enquanto especialista em Direito da Nacionalidade, foi o
desrespeito pelo princípio da nacionalidade efectiva. Um princípio do Direito
Internacional Público, também do Direito da UE, que diz que um Estado deve dar
a sua nacionalidade apenas a quem tenha com ele, ou com o seu povo, uma
qualquer conexão materialmente relevante, na actualidade.
Esta lei foi
injusta para os portugueses das ex-colónias que perderam a nacionalidade
portuguesa em 1975, por exemplo?
Devem sentir-se
extremamente injustiçados. Essa foi também uma injustiça histórica, mas muito
mais recente. Estamos a falar de pessoas naturais das ex-colónias que em 1975
estavam domiciliadas em Portugal, eram portuguesas e viviam aqui. De um dia
para o outro, por força da lei, perderam a nacionalidade, ficando muitos
apátridas, por não terem adquirido a nacionalidade dos países que, entretanto,
se formaram. Foi uma enorme injustiça. Questionei-me sobre a necessidade de se
fazer esta reparação histórica aos descendentes de judeus sefarditas, em 2013,
não se aproveitando para reparar uma outra injustiça perante pessoas que são
vivas, sempre se sentiram portuguesas e sempre viveram em Portugal e daqui
nunca saíram, assim como os seus filhos. São portugueses de facto ainda que não
o sejam de direito.
A regulamentação
de 2015 para a naturalização de descendentes de judeus sefarditas foi
insuficiente?
Na minha opinião,
o decreto-lei de 2015 tem um problema, que passa pelo Estado ter delegado
exclusivamente em entidades privadas [Comunidade Israelita do Porto e
Comunidade Israelita de Lisboa] o atestado de descendência sefardita, que é uma
parte substancial de um processo de concessão da nacionalidade. Esta é uma
matéria de soberania por essência, porque estamos a definir quem é o povo
português. O Estado desonerou-se daquela que deveria ser uma das suas
principais missões nesta matéria.
Em 2020, quando
já desempenhava funções como vice-presidente da bancada parlamentar do PS,
propôs alterações à Lei da Nacionalidade. O que pretendia?
Em primeiro
lugar, fui presidir a um grupo de trabalho que estava a rever a Lei da
Nacionalidade e, apesar de ser deputada, não podia dissociar-me da minha
vertente académica e daquilo que defendo em termos de Direito da Nacionalidade.
Vi uma oportunidade de tornar a lei mais conforme às obrigações do Estado
português no domínio do Direito Internacional e do Direito da União Europeia.
Em segundo lugar, porque considerei que a forma como estava redigida a lei não
cumpria o seu objectivo. Era uma ‘lei do retorno’, como lhe chamaram os seus
autores, que implicaria a existência de uma comunidade judaica mais expressiva
no nosso país, o que eu defendo, até por razões pessoais [é casada com um
judeu]. Tenho pena que não tenha crescido assim tanto com esta lei.
Causou-me alguma apreensão ver como a nacionalidade
portuguesa estava a ser comercializada como um mero passaporte alavancado ao
facto de Portugal estar inserido na UE.
Porque grande
parte dos requerentes não veio viver para Portugal?
É verdade. Mesmo
o ressuscitar da vida judaica em Portugal foi impulsionado por um conjunto
muito significativo de cidadãos franceses, que nunca pediram a nacionalidade
portuguesa, e que se foram radicar no Porto para fugir ao sentimento
anti-semita que sentem existir no seu país. Por outro lado, causou-me alguma
apreensão ver como a nacionalidade portuguesa estava a ser comercializada como
um mero passaporte alavancado ao facto de Portugal estar inserido na UE.
Propôs na altura
a exigência de um período de dois anos de residência em Portugal para os
interessados.
Uma Lei da
Nacionalidade não é uma Lei de Imigração. A residência é um pressuposto do
vínculo jurídico da nacionalidade, não uma consequência. Pressupõe que alguém
viva numa comunidade, comungando das nossas venturas e desventuras. Por isso
tem direito a estabelecer com o Estado português o vínculo jurídico da nacionalidade.
Esta pressupõe uma qualquer conexão com o país, seja por se ter nascido em
Portugal, por aqui viver, por descender directamente de portugueses ou por via
do casamento. Uma nacionalidade não é um passaporte, que é um mero documento de
viagem.
A possibilidade
de “mercantilização” do passaporte português através desta lei não era
expectável logo em 2013?
Acho que houve
uma certa ingenuidade do legislador. Muitos dos deputados que aprovaram por
unanimidade a Lei da Nacionalidade em 2013 ficaram ‘inebriados’ com o gesto
histórico magnânimo e muito bonito do país. Estou convicta que a esmagadora
maioria dos deputados não se apercebeu de eventuais consequências daquilo que
estava a legislar.
Em Espanha, uma
lei semelhante exigia pressupostos bem mais rígidos, nomeadamente um prazo
(final de 2019) para os pretendentes requererem a nacionalidade. Por que é que
optou Portugal por outro caminho?
O processo
espanhol de reparação histórica da expulsão dos judeus sefarditas foi muito
diferente. A nossa lei, tal como está redigida, não repara apenas os
descendentes daqueles que foram expulsos pelo édito de D. Manuel, mas também
aqueles que foram expulsos pelo édito dos Reis Católicos em 1492. É impossível
recuar 500 anos e provar que determinado indivíduo descende de alguém que tenha
sido expulso exactamente de Portugal e não de Espanha. A nossa lei não exige
sequer isso.
Em Espanha, o
processo começou muito antes e foi muito mais cauteloso e mesmo assim existiram
fraudes. A discussão da lei demorou muito mais do que a portuguesa.
Entendeu-se, neste caso, que a lei de reparação histórica teria de ser
forçosamente limitada no tempo, porque diz respeito ao passado e não deve
prolongar-se pela eternidade. O legislador espanhol foi fiel à sua obrigação de
respeito pelo princípio da nacionalidade efectiva. Exigia também uma conexão ao
país, nomeadamente através do domínio da língua espanhola, um conhecimento
mínimo da sociedade e Constituição espanholas, através de um teste realizado
num dos institutos Cervantes existentes no mundo, para além das provas da sua
descendência sefardita. No final, o processo teria de ser concluído
presencialmente em Espanha. Nada disto foi exigido em Portugal.
Quando um Estado desbarata a sua nacionalidade, isso pode
naturalmente causar danos nas relações com os outros estados.
Portugal não se
deu ao respeito numa matéria tão sensível como a concessão da nacionalidade?
Quando um Estado
desbarata a sua nacionalidade, isso pode naturalmente causar danos nas relações
com os outros estados. Portugal é signatário da Convenção Europeia da
Nacionalidade que é muito clara a esse respeito. Os outros estados só são
obrigados a reconhecer a nacionalidade que Portugal confere a outra pessoa se
forem respeitados os princípios do Direito Internacional em matéria de
nacionalidade, onde está consagrado o princípio de nacionalidade efectiva.
A publicitação
dos benefícios do passaporte português por advogados e agências internacionais
deixam uma imagem negativa do país?
A imagem é
terrível e afecta-nos gravemente, porque no fundo é a mercantilização de um bem
que não é transaccionável. Algo que também fizeram países como Malta ou Chipre
que tanta oposição causaram na União Europeia, quando adoptaram programas de
cidadania por investimento, como acontece nos paraísos fiscais. No fundo, uma
pessoa paga por uma cidadania. Mas, se existe esta possibilidade, não condeno
quem a aproveite. É perfeitamente legal.
A proposta de
alteração à lei que promoveu em 2020 foi ferozmente atacada, inclusivamente por
figuras históricas do PS, acabando por a deixar isolada e a desistir da
proposta. O que se passou?
Houve uma enorme
onda de contestação. A proposta exigia um período mínimo de residência prévia
em Portugal de dois anos. Um regime muito mais favorável do que o existente
para os imigrantes que já aqui residem. Não se exigia sequer conhecimento da
língua portuguesa. Os proponentes da legislação de 2013 falavam numa ‘lei do
retorno’ que pretendia reparar um erro histórico e restabelecer as comunidades
judaicas que o país perdeu. Algo que seria cumprido com a proposta que defendi,
tornando a lei mais fiel ao seu objectivo.
Devido a pressões
ao mais alto nível, acabei por recuar duas vezes. Primeiro, deixei cair a exigência
de dois anos de residência, substituindo este requisito por uma qualquer
conexão relevante a Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui também
obrigada a desistir desta proposta.
Devido a pressões
ao mais alto nível, acabei por recuar duas vezes. Primeiro, deixei cair a
exigência de dois anos de residência, substituindo este requisito por uma
qualquer conexão relevante a Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui
também obrigada a desistir desta proposta.
Como interpretou
então as críticas públicas? Chega a ser acusada de anti-semitismo.
Quando comecei a
ver críticas virulentas e insultuosas na comunicação social, fiquei mais
alertada para a realidade. Achei que muitas pessoas se estavam a sentir
afectadas do ponto de vista pessoal, mas também patrimonial.
Sentiu que estava
a afectar um negócio?
Por vezes as boas
e nobres intenções podem ser desvirtuadas e acho que foi o caso.
Surpreenderam-na
mais as críticas dos seus pares socialistas?
Alguns dos
chamados ‘senadores’ do PS, como Maria de Belém [autora da Lei da Nacionalidade
de 2013], Vera Jardim, Manuel Alegre e Alberto Martins nunca falaram comigo,
mas moveram nos órgãos de comunicação social, e provavelmente fora deles,
mundos e fundos para evitar qualquer alteração a esta lei. Curiosamente, há
pouco tempo, li no jornal Expresso declarações de alguns destes ‘históricos’ a
abrirem a possibilidade a uma alteração legislativa.
Particularmente
espantosas são as declarações de Manuel Alegre, que insinuou em 2020 que eu era
uma anti-semita, e defende agora que a lei deveria ser temporária. Ou seja, que
deve ser revogada. Ou estamos no reino da hipocrisia ou não sei como explicar
esta mudança profunda de opinião. Bastante insultuoso nos meios de comunicação
social foi também José Ribeiro e Castro [ex-líder e ex-deputado do CDS], um dos
proponentes desta lei. No desespero de a defender escreveu um artigo de opinião
publicado no Observador onde demonstra um total desconhecimento da legislação.
Particularmente extraordinário para alguém que é apresentado no seu escritório
de advogados como um dos pais desta Lei da Nacionalidade, sendo um dos seus
domínios de especialização o Direito da Nacionalidade.
As alterações na
regulamentação da lei, com mais exigências para a sua aplicação, aprovadas
recentemente por decreto-lei do Governo, promulgado pela Presidência da
República, são suficientes?
Melhoram a
regulamentação ao exigir que qualquer requerente à nacionalidade tenha de facto
uma relação efectiva a Portugal. O processo torna-se bastante mais rigoroso e
vai reduzir drasticamente os casos de aquisição da nacionalidade por pura
conveniência.
Defende a
revogação da lei para que seja introduzida um limite temporal?
Enquanto jurista,
acho que uma ‘lei de reparação’ nunca pode ser eterna, por definição. O
legislador português deveria ter seguido o exemplo do legislador espanhol.
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